I
Na minha casa, a sala de estar não era o lugar em que as pessoas estavam. Todos se reuniam na cozinha, em torno da mesa de jantar, próximos à televisão ou na varanda quando era ano novo e, dali, se via os fogos de artifício. Nessa casa, a casa da praia, receber visitas era rotina, parte importante no funcionamento desse espaço.
A casa da praia, por algum tempo, chamei só de casa, já que lá vivia metade do ano. Pouco me lembro desses dias. O que mais recordo são as coisas, os detalhes. O fusca azul-calcinha, o muro de tijolos e os portões de madeira, pontas circulares e pintados de preto. Lembro-me de deitar na rede na varanda de frente pro quarto da minha vó, com quase nada de espaço para me balançar, ficava com as pernas na parede e dobrava os joelhos pra ir e vir. Lembro meu quarto com paredes cor salmão e janelas basculantes que só se mantinham abertas com apoio das raquetes de pingue-pongue do meu irmão. Dos azulejos pretos e brancos do banheiro da minha mãe que pareciam tabuleiro de xadrez, de brincar no primeiro andar vazio do restaurante que tivemos ali, um espaço amplo igual à casa no piso superior, porém sem divisórias de paredes. O riacho que dividia o terreno em dois – o lado da casa e o lado do mato e das bananeiras que brotavam e morriam sem ninguém colher seus frutos. O jambolão que fazia sombra nas tardes de churrasco e nos manchava as roupas com seus frutos roxos parecidos com jabuticabas. O flamboyant que entrava pela janela do quarto dos meus pais, e tornava a casa reconhecível de longe na rua pelas flores vermelhas, das alamandas amarelas, dos limoeiros, do brinco-de-princesa, do araçá, das laranjas-do-céu, das laranjas-de-umbigo e tudo que lá foi cultivado.
A eterna construção na qual a casa se encontrava fazia com que entrássemos pela cozinha, no segundo andar e aos fundos. Dali se via o morro tomado de árvores, o riacho que vinha da lagoa – a lagoa ficava do outro lado desse morro, o pátio da vizinha Berenice e, mais importante, o céu. Viam-se as estrelas e, lá, aprendi a identificar o cruzeiro do sul. Na cozinha tínhamos um freezer branco sujo onde ficavam muitos picolés do carro do picolé (“está passando na sua rua o carro do picolé!”) e a caneca de plástico com água dentro que meu pai usava pra tomar cerveja. Ao lado do freezer, a antiga geladeira vermelha. O fogão era azul como o fusca. Os espaços de cozinha e de jantar eram divididos por um balcão, onde se tomava café da manhã, com bancos altos e um grande rádio encostado na parede. A grande mesa da sala de jantar era usada só pra jogos de cartas ou bingo com a vó.
A sala só era lembrada depois das refeições, no horário da sesta. Como toda sala na praia, os móveis eram de segunda mão, a TV velha (com Bombril nas antenas), os sofás mais duros e o colchão mais velho, no chão, pra caber todo mundo. Ali, a TV permanecia ligada quase o dia todo: desenhos animados pela manhã, no almoço o noticiário (noticioso, meu pai dizia); de tarde, filmes antigos e dublados; ao anoitecer, minha vó assistia à novela. A vida na casa seguia um ritmo natural medido pelas refeições, pela programação da televisão, pelo horário que se pode ou não sair ao sol. Parecia vivo, um organismo em que suas diferentes partes sabiam onde deveriam estar em determinados momentos. O convívio nesse espaço gerava uma forte sensação de pertencimento – a maior que já senti. A casa é mesmo produtora de afetividades.
II
Palomar é um homem que vê. Observa. Possui o mesmo nome de um telescópio, e talvez por isso, seja desses que contempla, investiga, e se concentra nos detalhes das coisas e das superfícies do mundo. Diferente de Palomar de Italo Calvino, os pensamentos que o distraem são os que me movem. Esses que se ligam à memória afetiva me questionam e me deixam sem certezas. Acontece que essa ideia fixa, esse estranhamento perceptivo me leva a realizar a maioria dos trabalhos. A inquietude se acalma quando produzo algo com isso. Porém, nem sempre é de maneira ansiosa, como parece. Algumas vezes convivo anos com algo sem saber exatamente o porquê, esperando que o tempo aja trazendo uma resposta. Alguns objetos só foram lembrados depois que comecei a trabalhar com vídeo, e neles percebi uma nova maneira de ver as coisas.
O trabalho Dança das Cadeiras (2014) surgiu de um encontro fortuito1. Quando me mudei da casa da minha mãe, levei comigo um par de cadeiras que tínhamos na praia, que ficavam na sala, e das quais sempre gostei. Mas elas vieram meio sujas, com cupim, precisando de uma nova pintura e um novo assento. Pensando em aproveitar o tecido cor-de-rosa que encapava o assento das cadeiras, resolvi tirá-lo. A cada tecido que removia, outro surgia. Observando os percevejos tomados de ferrugem e o pó de cupim que parecia areia, areia de ampulheta, comecei a me questionar sobre essa materialização da passagem do tempo. Como materiais tão ordinários poderiam guardar tanta carga temporal? De que maneira isso poderia virar um trabalho? Que trabalho posso fazer que seja tão fascinante quanto a ação dos anos sobre esse objeto? Porém, optei por não fazer mais do que já havia feito, mostrar aos outros o que vi.
Dança das Cadeiras é processual. Mostra como se faz, no seu tempo quase real (os cortes são limitações do equipamento, e tudo é filmado). Utilizo uma linguagem simples: a câmera é fixa, centralizada, sem edições, de cima, plongé, minhas mãos e o objeto sobre uma mesa branca. Por isso, muitas vezes dá a impressão de ser um vídeo que poderia ser realizado por qualquer um, distante da ideia de que arte é técnica, e assume uma arte do fazer, de momentos do cotidiano.
O assento da cadeira é um desses objetos que narram sua própria história, e a ação que realizo propõe mostrar as mudanças, reconfigurações e modificações, através da qual é possível imaginar as inúmeras situações que presenciou. Escolher esse assento, fascinar-se com ele, é perceber no banal uma potencialidade que muitas vezes é desprezada ou ignorada. Tem também a mesma vontade de romper o cerco da invisibilidade, o estudo da pesquisadora Luce Giard (1996, p. 217):
Portanto, voltar o olhar para as pessoas e as coisas do presente, para a vida comum e sua diferenciação indefinida. Reencontrar ‘o gosto da germinação anônima inominável’ e tudo o que constitui o vivo do sujeito. Ver o gelo frágil dos hábitos, o solo movediço dos partidos tomados onde se incisam circulações sociais e costumeiras, onde se descobrem atalhos. Aceitar como dignas de interesse, de análise e de registro aquelas práticas ordinárias consideradas insignificantes. Aprender a olhar esses modos de fazer, fugidios e modestos, que muitas vezes são o único lugar de inventividade possível do sujeito: invenções precárias sem nada capaz de consolidá-las, sem línguas que possa articulá-las, sem reconhecimento para enaltecê-las; biscates sujeitos ao peso dos constrangimentos econômicos, inscritos na rede das determinações concretas.
Meus trabalhos recentes2 têm, na maneira de fazê-los, o ato de voltar o olhar ao invisível anônimo. Os estímulos que o ambiente da casa produz, insignificantes a primeira vista, são formadores de identidade e interesses. Parto desse lugar onde a maneira de organizá-lo, dispor os móveis, sua distribuição, sua escolha, já fala por si própria, têm suas próprias convenções. Esse lugar que pode narrar sua história traz consigo um tempo, perdido ou que ainda virá.