“O vento é verde. Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio põe no colo. Eu sou donde eu nasci. Sou de outros lugares.” (ROSA, 1994, p. 408).

Era inconveniente querer se negar a ver o horizonte. Trezentos e sessenta graus de horizonte envolto em mim como a barra da saia.

O nosso trabalho era cíclico e feito de redores de casa.

O milho plantado, se às vezes nascia, via-se da janela da cozinha a crescer, florescer e engravidar. Quando tomavam forma as espigas, na altura de meninas, eram transfiguradas (num gesto tão artístico quanto infantil) em bonecas de cabelos lisos, louros ou avermelhados, e eu, em cabeleireira e mãe.



Seguindo o andamento da safra, quando secos, os cabelos embaraçavam e caíam morenos inteiros como perucas.

Então, toda a família podia roer o corpo de algumas de minhas filhas que iam para a panela como milho verde cozido. A paisagem ia ganhando tons de anemia. A palha secava, as folhas rangiam com o vento, denunciavam-nos no esconde-esconde, cortavam bem de leve os braços no embrenhar-se ao milharal. O endurecer do grão era o ponto para libertar as espigas dos pés e deitá-los ao chão. Assim, instauravam-se camas na terra e podíamos nos aleitar desfalecidos pelo sol, que quanto mais cruel fosse, tanto mais azul tornava o céu.

Ficava a terra planada a nos olhar.

O milho derrubado nos punha sob a sensação de planície e morte: colheita

Do moinho, no saco de pano, meu pai trazia nas costas a farinha de que se comia polenta todas as noites, a qual se recomia todas as manhãs, a fim de ir para a roça cedo e com o devido vigor para trabalhar o próximo milho. A esposa reclamava o divórcio: - Um dia na vida não houve, em que eu não tivesse que lavar essa polenteira! A sobra de polenta, quando houvesse, porque às vezes já estávamos muito amarelos, era um tipo de culpa jogada no pátio às galinhas e aos cachorros que, talvez mais do que nós, desejassem comer arroz.

O pátio era um tipo de habitat provisório, local de assentar os chinelos, pendurar a pele.

A roça era o principal lugar dos nossos corpos. Donde vinha a substância que os fazia crescer, para onde iam perder-se em suor.

E o horizonte, toda a melancolia que é enxergar



Um trabalho feito de redores de mim

Agora moro na cidade. Aqui chamam a roça de “lá fora”. Decerto, onde estou é um tipo de dentro. Na roça, tudo é lá fora e quanto maior o campo de visão que alguém possa ter, mais longe alcançará sua consciência de que é possível estar preso a um espaço aberto.

Em meu trabalho, o ambiente rural não é exatamente introduzido, mas é nele e em relação a ele que, naturalmente, pela sua presença na minha constituição como ser, germinam poéticas. O corpo, as vestimentas, o feminino e a natureza são alguns motivos.

A cidade de Tigrinhos, no extremo oeste de Santa Catarina, habitada por pouco menos de duas mil pessoas, figurada principalmente por paisagens de pequenas plantações de milho, as quais nem sempre permitem a subsistência, inspira muitos jovens sonhadores, como eu, a irem embora. A inexistência de barreiras visíveis, quando mesmo as delimitações de pertencimento das terras não possuem mais do que um pequeno marco fincado, é prova de que ninguém está preso ali pela clausura do espaço geográfico, mas que ainda assim, não é fácil sair da roça. As liberdades requeridas são outras, seguramente possíveis de serem exercidas sem mudar-se de cidade. Sair, nesse desejo, é “sair de si”.



“Os lugares de que falamos, os topoi, não seriam o que são se não fossem transformáveis por metáforas” (CAUQUELIN 2007, p. 159). O texto poético, na sua inclinação para ser ferramenta de elaboração de imagens, muitas vezes através de memórias, participa ativamente da construção desses trabalhos.

Manter relações com o ambiente da roça (de troca, incorporação, simbolização, personificação, esvaziamento, afeto), desde o meu corpo e outros vestígios humanos até os corpos que constituem a paisagem é uma maneira de cultivar a mim, alimentar o outro. Se ao mesmo tempo, pertencer a este local é uma necessidade ou uma inevitabilidade, tanto quanto escapar dele, tornando-o outros lugares e cruzando verticalmente a linha de suposta divisão entre terra e céu, talvez seja porque, de modo irreversível, meu corpo foi agricultado entre o milho e a erva daninha arte.

CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins, 2007.

ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Nova Aguilar, 1994.

1  Diane Sbardelotto, Para onde? Para onde?, 2013, fotografia, 35 x 50 cm. Acervo da artista.

2  Diane Sbardelotto, Boneca de milho quando jovem, 2014, fotografia, 50 x 35 cm. Acervo da artista.

3  Diane Sbardelotto, Milhorretrato, 2014, fotografia, 50 x 35 cm. Acervo da artista.

4  Diane Sbardelotto, Sem título, 2014, fotografia, 50 x 70 cm. Acervo da artista

5  Diane Sbardelotto, Pátio, 2014, fotografia, 30 x 20 cm. Acervo da artista.

6  Diane Sbardelotto, Prendedor de horizonte, 2014, fotografia, 35 x 50 cm. Acervo da artista.

7  Diane Sbardelotto, Da série Vestido de mim, 2013, fotografia, 30 x 20 cm. Acervo da artista.

8  Diane Sbardelotto, Para fora de mim, 2013, fotografia, 50 x 70 cm cada. Acervo da artista.