Sabemos que a cartografia, quando circunscrita a um domínio estritamente científico, responde às modulações próprias de uma forma de conhecimento marcada por princípios cartesianos, racionais e, em grande medida, coloniais. Trata-se, quase sempre, de elaborar mapas em conformidade com metodologias que visam à drástica redução dos riscos, em prol da construção de representações precisas e infalíveis dos espaços medidos. Contudo, não é no sentido dessas cartografias que se gere o processo cartográfico em questão. Interessa, aqui, mais uma sorte de procedimentos erráticos, protocolos afetivos, que tentam dar conta de uma concepção de cidade que, por muitos lados, escapa às medições normatizantes.

Em agosto de 2014, iniciei um processo cartográfico de uma região da cidade de Natal/RN conhecida como Baldo. A escolha dessa região se deu tanto por sua História em paralelo ao desenvolvimento da cidade de Natal, quanto pela história menor que define a minha relação com esse espaço. De um lado, o Baldo conta do declínio de uma experiência urbana marcada por piqueniques à beira do rio em direção à “esgotificação” imposta pelo projeto desenvolvimentista de cidade. No outro ponto dessa narrativa, existe a minha geografia sentimental particular, experimentada desde a ruína e os escombros desse mesmo projeto desenvolvimentista – com a interdição, o Viaduto do Baldo se transformou num moribundo de concreto que paira sobre a cidade e sangra pelo rio esgotificado, uma paisagem distópica que serve de abrigo a uma multiplicidade de formas de vida desterradas.

Ao método elaborado para essa cartografia eu dei o nome Programa de Reconhecimento Afetivo.1 Consistia num roteiro de ações sequenciais para serem experimentadas na região do Baldo: realizar 10 travessias no viaduto desativado, chorar uma lágrima no rio esgotificado, escrever no jornal de ontem uma pergunta sem resposta, etc. Eleonora Fabião elege a palavra-conceito “programa” para designar um “motor de experimentação” próprio ao trabalho do performer: “programas criam corpos – naqueles que os performam e naqueles que são afetados pela performance. Programas anunciam que 'corpos' são sistemas relacionais abertos, altamente suscetíveis e cambiantes”. (Fabião, 2009, p.237-238).

Arrisco um desdobramento dessa afirmação de Fabião: programas criam corpos. Criam também cidades. E anunciam que cidades, como corpos, são sistemas relacionais abertos, que, embora marcados pela áspera dureza do concreto, tornam-se suscetíveis à multiplicidade de investimentos de desejo, ativados por aqueles que a habitam na via da singularização. Habitar pode, também, ser uma maneira de invenção da cidade, e talvez a performance, com seus programas, traga em si essa potência de criar uma cidade em devir – altamente cambiante, conforme os investimentos poéticos e políticos que nela fazemos.



Ao deslocar as concepções e os modos de vivenciar a cidade, a performance aciona também outros modos de mapear os espaços urbanos. Ocorre um deslocamento da cartografia para a perfografia. E não posso deixar de registrar, aqui, que essa outra palavra-conceito foi trazida à tona pelo Coletivo Parabelo (SP). A perfografia decompõe a cidade, para testar outros arranjos possíveis. Isso fica evidente nos trabalhos que o coletivo, em rede com outros artistas, aciona pela cidade de São Paulo e também fora dela : imersão em bairros periféricos; experimentação de outras formas de se situar e de construir territórios; criação de outras est-éticas da convivência; reverberação de sinais nomadizantes pela cidade.

Volto então ao Baldo, e aos múltiplos atravessamentos que compõem essa geografia sentimental. Esse Baldo que foi, sempre para mim, um lugar-sumidouro, onde famílias inteiras agonizam calçadificadas à conversão das cidades em lugares de não viver; terra de desterrados, com os quais por tantas vezes me misturei, estrangeiro entre estrangeiros… Então: como cartografar o desterro do baldo? Como inscrever, num mapa (por mais precário que seja), esse fragmento de cidade no sumidouro?

Sinto que essas questões não se esgotam nem em minha performance nem neste texto. A cidade permanece aberta e invariavelmente resiste a toda cartografia. Assim, o Baldo escapa de muitas maneiras às minhas de tentativas de mapeá-lo; e eu mesmo, nesse movimento de apreensão do lugar pela via das afetações, escapo do programa e construo, no aqui-agora, uma escrita perfográfica que sabe dos mapas como dispositivos residuais, registros contextuais de uma experiência e de uma abordagem situada dos espaços.

Por uma escrita perfográfica da cidade – que ative tanto uma dimensão subjetiva, quanto uma parte que se materialize na própria pele da cidade: colar memórias nos escombros, riscar os muros, derramar lágrimas num rio esgotificado, escrever com sangue um conjunto de trajetórias, etc. Dar, assim, à cidade outros contornos (ou ainda: rombos nos contornos normóticos), fazer passar por ela outras intensidades, desterritorializando uns efeitos desenvolvimentistas para fazer correr o sangue vivo de uma cidade acionada não por projetos concebidos em salas frias, mas pelos desejos daqueles que nela vivem. Reterritorializar, assim, os espaços, os fluxos, as passagens. Fertilizar emergências ao mesmo tempo no corpo e na cidade, povoando-a com formas de vida que, de alguma maneira, foram sendo soterradas pela mesma racionalidade que instituiu os mapas de cartografia cartesiana como fonte única de toda verdade que se pode saber sobre o espaço urbano.

1  Para acessar o programa integralmente: http://cargocollective.com/jotamombaca/Programa-de-Reconhecimento-Afetivo-do-Baldo

2  Em 2012, por ocasião da Semana Experimental Urbana, pude participar de uma Perfografia realizada junto ao Coletivo Parabelo no centro de Porto Alegre. A experiência foi relatada pelo grupo em seu blog: http://coletivo-parabelo.blogspot.com.br/2012/12/vagabundos-vagarosos-e-vaga-lumes.html (acesso 13/02/2015, 02:26)

Coletivo Parabelo: http://coletivo-parabelo.blogspot.com.br/

FABIÃO, Eleonora. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea. Sala Preta (PPGAC-USP), v.8, p. 235-246, 2009.

1  Jota Mombaça, Programa de Reconhecimento Afetivo, 2014, performance, dimensões e tempo variáveis.

2  Jota Mombaça, Programa de Reconhecimento Afetivo, 2014, performance dimensão e tempo variáveis.