Pelotas, 15 de janeiro de 2014, verão.
Macelas louros bromélias árvores samambaias trepadeiras: brotar para resistir ao tempo.1

Havia lá não uma, mas duas casas que brotam. Em uma delas brotam macelas e louros do teto, dependurados, olhando para baixo. Esperam o tempo passar para que suas fibras se enrijeçam e absorvam então uma quase-eternidade. Essa casa brota também no parapeito que divide a varanda do solo embaixo, muito mais baixo que o nível da casa. Essa casa brota também ao redor: jardins suspensos nas paredes em seu lado esquerdo, plantas em um corredor-cômodo que não sei para onde vai (acho que não vai, apenas permanece...), uma vegetação que tanto pende quanto sobe de uma construção logo ao lado. Seus telhados em brotação. Não sei quantas espécies de plantas há ali, pendentes e crescentes.

A outra casa que brota foi um moinho, tempos atrás. Incendiou na década passada e desde então parece apenas brotar e (para?) resistir ao tempo. Não há telhados, o céu e a chuva entram com intensidade entre as suas paredes precárias e vicejantes. No alto das paredes de extenso pé direito, nascem espécies diversas, bromélias e pequenas árvores entre elas. Surpreendem-me árvores crescendo no extremo dessas paredes, que se tornam substrato, espécies de solo suspenso... Com a força de suas raízes, essas plantas escavam, quebram e transformam. Mas as paredes continuam lá, em sua precária perenidade.

Dentro, a casa foi tomada por brotações. Algumas paredes estão completamente recobertas por folhas, ramos, raízes. Inumeráveis espécies parecem conviver pacificamente, entranhadas ou em áreas perfeitamente demarcadas. O diálogo entre os infinitos tons de verde é atordoante. Há árvores já adultas dentro desse lugar. E samambaias e trepadeiras. Uma janela no alto brota de baixo para cima, desenhando em ramos contra o céu azul. Uma janela no térreo brota de cima para baixo, desenhando sobre a parede de indefinido branco e cobrindo parte do solo logo abaixo...



Post-scriptum em 26 de janeiro de 2014

Casa que brota encontrada em passeio ao Templo das Águas, na região colonial de Pelotas, em 5 de janeiro de 2014. Esta carta-relato foi escrita em 15 de janeiro, e no dia 19 do mesmo mês retornei ao Templo com amigos. Fiz registros fotográficos nas duas ocasiões. Preciso voltar lá com mais tempo e com uma luz menos intensa. H., H. e G. disseram que há outro moinho que brota no caminho que fizeram pelo rio, entre a cachoeira que conhecemos pela trilha à direita e a cachoeira principal. Preciso retornar e fazer esse caminho com sol menos intenso.

Nesse encontro de 19 de janeiro, enquanto fazíamos essa trilha para a cachoeira à direita, pegamo-nos observando as plantas pelo caminho. Observávamos detidamente algumas espécies e mostrávamos aos outros. Também foi interessante receber coletas das mãos de pessoas amigas, colaboradores em coletas: G., H. e H. recolhiam plantas secas que achavam bonitas e me davam, interessados em partilhar esse olhar pequeno, miúdo, sobre o mundo.

Naquele momento lembrei-me do passeio ocorrido na casa de M. no interior de Santa Catarina, no início de 2013. Numa caminhada pelo leito do pequeno rio que corta a propriedade, recolhi folhas secas e depositei nas mãos de D. Eram folhas muito bonitas, desenhadas pelas intempéries, quase transparentes, pois sua carne havia se desfeito com as chuvas e restavam nelas somente os desenhos dos veios que cortam, desviam e encontram... Não me lembro se fui eu que recolhi a primeira folha para ele naquele dia, ou se ele recolheu a primeira e eu insisti com tantas outras depois. Lembro-me de caminhar olhando para o chão para recolhê-las (o chão sempre me chamou, e nisso leio Manoel de Barros e sempre me pareceu que ele consegue escrever acerca de algo que eu sempre fiz, mas nunca soube dizer muito bem: olhar detidamente coisas sem nenhuma importância...).

Nessa caminhada também recolhi folhas secas perfeitamente íntegras, com formatos estranhos, planejando desenhá-las depois. Recolhi um belo conjunto de folhas, que depois acabei me esquecendo na varanda da casa... M. surpreendentemente recolheu essas folhas, fotografou-as e produziu um livro com essas imagens. Depois, enviou pelo correio dois exemplares: um para mim, outro para D. Quando esse livro chegou às minhas mãos, eu só fazia chorar. Isso já faz um ano, mas sempre que folheio esse livro meus olhos se enchem de lágrimas. Não sei como M. conseguiu reunir tão singelamente todos os sentimentos que nos mobilizaram naqueles dias, naquela cidade do interior, rodeados pela natureza. As presenças suaves de M. e D. estavam lá, os barulhos da louça na cozinha, o silêncio do mezanino, o mover da rede, o som dos pássaros, a quietude das plantas. E a saudade. M. conseguiu registrar naquelas fotos a saudade que eu sentia daqueles dias. Daquelas duas pessoas extraordinárias.

É por isso que hoje, escrevendo acerca dessas brotações que percebo ao meu redor e dentro de mim, observando casas que brotam e lugares que brotam, coletando desimportâncias2 vegetais sem saber o que farei com elas, desenhando uma flora inventada, percebo que o meu projeto de doutorado nasceu lá, naquele dia, entre as mãos de D. e M. As folhas desenhadas que recolhi foram o meu partilhar de desenhos e afetos, que logo em seguida voltaram como partilhas de afetos ainda mais poderosas. M. produziu os livros com as imagens das folhas e os enviou para nós. Meses depois, D. devolveu-me algumas daquelas folhas dobradas como desenhos dentro de um livro de Manoel de Barros que partilhamos. Esse livro integra uma biblioteca desenhada que compartilhamos desde então. Portanto, esse projeto de doutorado, “Uma casa que brota”, nasceu naquela casa que também brota, uma casa rodeada de vegetação e água, no interior de Santa Catarina. E pelas mãos de duas pessoas vicejantes de brotações e nascimentos.

1  Esta carta-relato integra a minha pesquisa de doutoramento no Programa de Pós-Gradução em Artes Visuais da UFRGS, iniciada em agosto de 2012. Minha investigação teórico-poética se detém sobre conceitos como a efemeridade, a fragilidade, a organicidade e a lentidão Em minha escrita, traço diálogos com a literatura de Manoel de Barros e de Francis Ponge, e meus trabalhos recentes têm se relacionado com a observação das formas orgânicas presentes na natureza e, especialmente, com o surpreendente encontro com casas e lugares que brotam. Tais encontros guardam intensa carga afetiva.

2  Referência à expressão usada por Manoel de Barros (2013a, p. 30) no poema “Seis ou sete coisas que eu aprendi sozinho”.

BARROS, Manoel de. O guardador de águas. São Paulo: Leya, 2013a.

______. O livro das ignorâncias. São Paulo: Leya, 2013b.

Espécies de solo suspenso. Fotografia: Márcia Sousa.

Não sei quantas espécies de plantas há ali... Fotografia: Márcia Sousa.

“Eu precisava de ficar pregado nas coisas vegetalmente e achar o que não procurava.” (BARROS, 2013b, p. 43). Fotografia: Márcia Sousa.

4  Coletas realizadas em 19 de janeiro de 2014. Fotografia: Márcia Sousa.