Momento privilegiado este em que as coisas ainda não se fizeram. Escrevo no gerúndio e parafraseio Benjamin: estou organizando uma exposição. Sim, estou. O conceito foi definido; as obras, escolhidas; a distribuição das peças já delineada. Escrevo, porém, enquanto as obras seguem naquilo que o pensador alemão chama de "suave tédio da ordem" (Benjamin, 1987, p. 227), recolhidas à reserva técnica da Fundação Vera Chaves Barcellos, em Viamão, à espera da montagem no espaço e da apresentação ao público.
Este brevíssimo texto, mesmo correndo o risco da mitificação que costuma acompanhar as narrativas sobre origens, procura traçar algo da gênese dessa exposição que ainda nem aconteceu. Antes de tudo, houve o convite da direção da FVCB para a realização de uma curadoria em sua sede, na chamada Sala dos Pomares. A mostra deveria ser em torno ou pelo menos a partir do acervo da casa. Entendi que esse seria um bom pretexto para uma reflexão sobre a própria FVCB, instituída há pouco mais de 10 anos, e também sobre aquilo que representa o gérmen mesmo da Fundação: as coleções de arte formadas por Vera Chaves Barcellos e Patricio Farías ao longo dos anos, antes mesmo da formalização desse importante centro de divulgação de arte contemporânea.
Imaginei em seguida que as obras a serem escolhidas deveriam também elas, em alguma medida, evocar o tema ou o conceito do colecionismo. Como professor pesquisador junto ao Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, desenvolvo pesquisa sobre artistas viajantes, sugerindo aproximações e contrapontos entre a tradição (séculos XVI a XIX) e a produção mais recente.1 Uma das questões caras a muitos desses artistas, seja no passado ou no presente, era precisamente a pulsão colecionista. Em seu estudo sobre a Expedição Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira (1783-1792), a historiadora Maria de Fátima Costa observa que, na maior parte das vezes, os riscadores procuravam isolar e recolher os objetos que lhes interessavam, fossem espécimes de flora e fauna, exemplares minerais ou artefatos indígenas. Sobretudo quando não obtinham muito sucesso na coleta, tratavam de desenhar (COSTA, 2001). A partir daí, a meu ver, a própria figura do artista foi se delineando como a do colecionador; as obras, como itens de coleção.
Um texto de Walter Benjamin e dois vídeos, que não fazem parte do acervo da FVCB, mas a que assisti quando começava a pensar na exposição, ajudaram a definir o norte curatorial. Em "Desempacotando minha biblioteca", o autor discorre sobre o colecionismo e, em especial, sobre as motivações do colecionador, seu fascínio em "encerrar cada peça num círculo mágico". Em uma projeção antes de tudo poética, Benjamin apresenta o personagem como um "intérprete do destino" no "mundo dos objetos". O colecionador, segundo ele, monta uma "enciclopédia mágica", cuja quintessência é o "destino dos objetos" (BENJAMIN, 1987, p.228). Daí, aliás, o título da exposição.
Um dos vídeos, Coisas que cabem em uma caixinha de fósforos (2014), de Amanda Teixeira, reproduz justamente o gesto do artista que seleciona e cataloga grupos de objetos similares no interior de uma pequena embalagem: ora pedras, ora cadeados, mínimos objetos da vida cotidiana. O outro vídeo, de autoria da mesma artista, Dança das cadeiras (2014), acompanha, com câmera fixa e enquadramento rigorosamente superior, a sucessão de movimentos em que as mãos da artista arrancam o forro do assento de uma cadeira. A remoção deixa à vista o tecido que estava por baixo, e ainda outro e outro abaixo daqueles, como quem traz à tona diferentes camadas de memória. O percurso se faz similar ao da própria escrita da História: coleção de lembranças e esquecimentos.
Definidas essas escolhas, Destino dos objetos passa a incorporar diferentes itens do acervo da FVCB que, por caminhos distintos, abordam ou reproduzem noções de coleção ou colecionismo. Alguns correspondem ao isolamento, ao recolhimento e à sacralização de uma peça específica, peça que abandona sua função original e que, embora deslocada do mundo, preserva as memórias ali entranhadas. Anota Benjamin: "Tudo o que é lembrado, pensado, conscientizado, torna-se alicerce, moldura, pedestal, fecho de seus pertences" (BENJAMIN, 1987, p.228). O colecionador não abre mão de todos os detalhes que cabem no objeto.
Outros artistas colecionadores chamam a atenção menos pela importância que conferem a cada item do que pela direção que percorrem. O que norteia seu trabalho são as noções de acúmulo, ordenamento e classificação, a insistência algo obsessiva em torno de uma imagem ou um procedimento. Interessa, antes de tudo, aquilo que se repete, não necessariamente como objeto, mas como gesto mesmo, o gesto que risca o círculo mágico da metáfora benjaminiana.
Neste momento, estou, também eu, no gerúndio, adivinhando um destino para objetos e gestos. Como diria Benjamin, sim, estou.