Fragmentos de um passado não encerrado. A loja de conserto de relógios efetiva a lenta sobreposição de um tempo em movimento que se expressa no acúmulo, na sedimentação do resto. Ponteiros, papéis, pulseiras e fotografias se acumulam em um pequeno espaço em que memória afetiva e coleção se entrelaçam. O colecionador é o guardião de um local secreto.

Esperávamos para poder entrar no que parecia uma loja com tom de museu, em uma galeria de um bairro nobre da cidade de Niterói – Rio de Janeiro. Relógios antigos ocupavam todas as paredes. De cima a baixo, para onde olhávamos, era difícil de identificar um conjunto de objetos singulares. Na parede, via-se as peças de um grande mosaico formado por fragmentos de números de todos os tipos, ponteiros, pêndulos, cucos, madeira, ferro, ruídos. Nesse aparente caos, uma ordenação subjetiva das peças, a trama invisível composta entre os objetos de diferentes tipologias era construída pelo percurso afetivo criado pelo colecionador.

No primeiro momento, aquela multidão de relógios e fragmentos soavam como descaso, um local abandonado e escondido no segundo andar de uma galeria de atmosfera decadente. Não havia tantas pessoas, não havia sons no corredor, havia apenas uma paisagem de obsolescência que aos poucos foi se transformando com o bater da porta. No entrar e sair dos clientes, as memórias eram revolvidas, as pessoas traziam consigo uma coleção de histórias, contavam sobre a família, as novidades das últimas férias, a viagem para o Havaí, chamavam o relojoeiro pelo nome e pareciam transferir-lhe parte do carinho que sentiam por seu pai, antigo mestre do ofício. Dessa forma, todo ambiente parecia ritmar-se como o tic-tac.

Nas diferentes materialidades dos relógios, os extratos temporais se desenham. Uma coleção involuntária traçada pela herança de um ofício e por um acúmulo de medidores de tempo, que carregam uma latência afetiva exposta na disposição de peças aparentemente desordenadas, remete à composição da biblioteca de Aby Warburg, em Hamburgo, no início do século XX. Tal biblioteca fora construída a partir das experiências etnográficas, do olhar para a cultura e para a memória e pelo gosto do colecionismo. A disposição do acervo era construída através do caminhar pelo seu labirinto biblioteconômico, em que o método tradicional de classificação, pautado em fórmulas universais, dava lugar aos rastros, aos fios invisíveis que ligavam suas coleções de livros e imagens. Esses, por sua vez, estabeleciam uma sequência própria que fugia da ordenação catalográfica, na medida em que a relação entre eles se estabelecia pela compreensão das interfaces entre os exemplares traçada por Warburg. O acervo em essência é um lugar de memória que no caso de Warburg assume uma dimensão de rememoração no sentido proustiano, a lembrança que irrompe e se mistura ao presente, um tempo impuro onde passado e presente já não são antagônicos e sim sincrônicos. Os livros da biblioteca de Warburg, assim como os relógios da loja, não são exemplares de um passado fossilizado e encerrado historicamente, mas sim uma potência que sobrevive no presente através do tom afetivo dado a essas peças que sobrevivem pelas mãos do relojoeiro: essa figura que busca por meio da delicadeza, da pequenez do maquinário dos relógios e das breves sonoridades jogar luz sobre o agora. Emergem fragmentos do passado na superfície do presente, movimento que nas palavras de Walter Benjamin consiste na “contemplação de grandes coisas do passado [...] consiste, na verdade, em acolhê-las em nosso espaço. Não somos nós que nos transportamos para dentro delas, elas é que adentram a nossa vida”. (BENJAMIN, 2009. p.240).

O relojoeiro não se intimidou com nossa presença, nos aceitou como seus antigos clientes, convidando-nos a conhecer seu mundo, partilhando de suas memórias, contando-nos os segredos de seu ofício hereditário e revelando segredos íntimos dos relógios ao expor a beleza e a simplicidade das engrenagens.

Tudo no espaço soava como coleção, sons, engrenagens, movimentos: os relógios eram multiplicados pelos reflexos de seus vidros. Olhávamos para os relógios enquanto estes nos encaravam. Um acervo é um discurso sobre o passado ou sobre o presente?

Ficamos cientes da tempestade que desabara sobre a cidade quando um novo cliente surgiu trazendo restos de chuva. Alguns minutos depois a luz piscou duas vezes para, finalmente, apagar-se por completo em toda a galeria. Nos calamos e então pudemos enxergar o que o olho não via: a todo momento estava presente ao fundo um conserto de relógios, cada um com o seu timbre e vibração. “Tenho um cliente que tem medo de passar aqui à noite”, afirmou o relojoeiro em tom jocoso. O assombro era latente, no entanto, não era tão clara sua natureza: por quantas vidas aqueles relógios já não badalaram? A vida de um relógio é maior que a vida de uma pessoa.

 
 

BENJAMIN, Walter. Passagens. Organizador da tradução brasileira Willi Bolle. São Paulo: UFMG, 2009.

DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: a história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.

Capa  Marcele de Oliveira, Colecionismo involuntário, Rio de Janeiro, 2015.

1  Luiza Amaral, Colecionismo involuntário, Rio de Janeiro, 2015.

2  Marcele de Oliveira, Colecionismo involuntário, Rio de Janeiro, 2015.

3  Luiza Amaral, Colecionismo involuntário, Rio de Janeiro, 2015.

4  Luiza Amaral, Colecionismo involuntário, Rio de Janeiro, 2015.