Vai-se ao Museu d´Orsay, em Paris, consciente de que seu acervo contempla arte europeia, sobretudo francesa, do século XIX e início do XX; da mesma forma, vai-se ao MALBA, em Buenos Aires, esperando ver produção moderna e contemporânea da América Latina. Algo semelhante acontece no circuito comercial. Em Porto Alegre, o colecionador de Leopoldo Gotuzzo (1887–1983), Angelo Guido (1893–1969) e Libindo Ferrás (1877–1951) sabe que é mais provável encontrar trabalhos desses artistas na Sala de Arte de Porto Alegre; já os apreciadores de obras sobre papel procuram espaços como a Casa da Gravura ou o Museu do Trabalho; arte contemporânea, por sua vez, é na Bolsa de Arte, na Gestual e, recentemente, na Mamute. Os espaços citados, entre vários, trazem foco mais ou menos definido e construíram isso ao longo de anos: estamos falando, de certa forma, de “identidade”. A Galeria Tina Zappoli, no entanto, foge desse perfil – e incomoda.
Quando surgiu, em 1981, no mesmo endereço em que funciona até hoje – rua Paulino Teixeira, 35, bairro Rio Branco –, a então Galeria Tina Presser posicionou-se como um ambiente voltado à arte moderna e contemporânea, realizando exposições antológicas de nomes como Leonilson (1957–1993) e Daniel Senise (1955).1 Entre os artistas rio-grandenses representados, estavam Carlos Pasquetti (1948), Mário Röhnelt (1950), Milton Kurtz (1951–1996), Alfredo Nicolaiewsky (1952), Carlos Wladimirsky (1956) e Karin Lambrecht (1957), além dos já consagrados Vasco Prado (1914–1998), Xico Stockinger (1919–2009), Carlos Tenius (1939) e, sobretudo, Iberê Camargo (1914–1994), cujas obras até hoje comercializa e autentica. Com o falecimento de Iberê e a entrada de um novo sócio, o fotógrafo sergipano Marinho Neto, a mudança gradual do que parecia se configurar em perfil: foram sendo introduzidas obras de arte indígena e de arte popular, para as quais muitos observadores e mesmo frequentadores habituais torceram o nariz: “A Tina tá vendendo artesanato”.
A presença dessas peças no ambiente que, durante anos, fora a referência no comércio de arte em Porto Alegre, provocou afastamentos e cismas. Alguns se perguntavam por que a mudança de rumos; outros viam na introdução desse segmento a decadência da galeria. Como colocar, lado a lado, Iberê Camargo e ilustres desconhecidos? Que história é essa, de misturar erudito com primitivo? Perguntas recorrentes à boca pequena. A solução: o espaço se transforma em galeria de arte popular; desconforto resolvido. Mas isso não passava pela cabeça de Tina e Marinho, que optaram pela fórmula “tudo junto e misturado”. A postura sugere vários questionamentos, e talvez o mais óbvio e pungente seja: o que está por trás disso? E a resposta, igualmente mais óbvia e pungente, talvez seja: porque tudo, dependendo do olhar que se lança, pode ser arte.
Em 2012, em um artigo para o jornal Zero Hora, discuti a inserção da arte popular no circuito institucional, tomando como gancho as exposições Histoires de voir – show and tell, que acontecia na Fundação Cartier, em Paris, e Teimosia da imaginação, que tivera espaço no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, com curadoria de Germana Monte-Mór e Rodrigo Naves. Naquele momento, artistas como Cícero Alves dos Santos, o Véio (1947), Antonio de Dedé (1953) e Dona Izabel Mendes da Cunha (1924–2014) ganhavam ampla projeção, extrapolando os espaços tradicionais de reconhecimento, como o Museu do Pontal (RJ), o Museu do Homem do Nordeste (PE), o Memorial da América Latina (SP), o Museu do Folclore (RJ) e o Pavilhão das Culturas Brasileiras, junto ao Parque do Ibirapuera (SP). Circulando em ambientes umbilicalmente comprometidos com a arte contemporânea, as obras escancaravam, em seus aspectos simbólicos e formais, uma potência desconcertante, intimidando, mais uma vez, as frágeis divisas que costumam separar a chamada “arte culta” da “arte popular”. Acerca disso, tomo a liberdade de reproduzir um fragmento do citado texto:
[...] até bem pouco tempo, era moeda corrente pensar em arte popular como algo anedótico, repetitivo, inculto e sem base conceitual. Mais: parecia que os artistas populares não poderiam ser outra coisa, a não ser singelos, telúricos e líricos. Tentando enquadrá-los num esquema comparativo e excludente em relação à “grande arte”, estabeleceram-se débeis patamares, havendo de um lado primazia técnica e estética, consciência e cultura, em contraposição a aspectos como precariedade, rudeza, ingenuidade e desconhecimento. [...] Mas basta lançar um olhar desprovido de ideias feitas para encontrar, nessas e em tantas peças de arte popular, o que se espera da arte em geral: invenção e capacidade de recriar o mundo. (RAMOS, 2012)
Tal debate, é bom que se diga, não tem nada de novo. No Brasil, já nas décadas de 1950–1960, ele pautava textos, pesquisas e exposições da arquiteta Lina Bo Bardi (1914–1992), que realizou Bahia (1959), durante a V Bienal de São Paulo, Nordeste (1963), no Museu de Arte Popular do Unhão, em Salvador, e, sobretudo, A mão do povo brasileiro (1969), no MASP, em São Paulo, emblemáticas na valorização dos saberes populares do Brasil, englobando tanto produções simbólicas e artísticas, como artefatos e objetos. Mais tarde, em 1987, a antropóloga e crítica de arte Lélia Coelho Frota (1938–2010), autora do Dicionário da arte do povo brasileiro, levou para o Grand Palais, em Paris, a mostra Art populaire contemporain, assim como a arquiteta Janete Costa (1932–2008), no mesmo período, fazia questão de introduzir em seus projetos e de exibir em suas lojas a fatura popular. Curadora de dezenas de exposições, entre as quais Artesanato como um caminho (1985), na FIESP, em São Paulo, Viva o povo brasileiro (1992), no MAM do Rio de Janeiro, Arte popular brasileira (2005), no Carreau du Temple, em Paris, e Somos (2006), no Santander Cultural, em Porto Alegre, Janete Costa é lembrada como uma profissional que ensinava a olhar.
[...] Embora movida muito mais pela intuição do que pela razão, Janete pode ser considerada uma grande educadora. Clientes, estagiários, amigos são unânimes em afirmar que aprenderam a olhar, discernir e conhecer arte por meio da convivência com Janete. Vários arquitetos e decoradores, sobretudo do Nordeste, dizem pertencer à “escola Janete”, aquela em que a cultura erudita e a popular eram absorvidas em pé de igualdade. Com os clientes, nunca exerceu uma ditadura do gosto, antes os levava a uma valorização de suas próprias histórias, somadas às vivências que ela proporcionava. (BORGES, 2008)
Os nomes rapidamente mencionados evidenciam a rede que se constituiu na valorização, documentação, exibição e comercialização dessas obras; uma rede formada por intelectuais, criadores, empresários, galeristas, que trabalharam para inseri-las no circuito da arte. Nesse sentido, retomo a mostra Teimosia da imaginação e seu emocionante catálogo, que traz como subtítulo a indicação: dez artistas brasileiros. Artistas, simplesmente artistas, que produzem arte, simplesmente arte.
Tina Zappoli e Marinho Neto sabem disso. Por isso colocam Miguel dos Santos (1944) conversando com Saint Clair Cemin (1951), Fernanda Valadares (1971) com as irmãs da Família Petuba, Manuel Graciano (1923–2014) com Itelvino Jahn (1958), Marianita Linck (1924) com Sil (1979), Sergio Lucena (1963) com índios da tribo Waurá, Cabral (1948) com Resêndio (1941). A conversa é livre, solta, desprovida de discursos e retoricismos; quase iconoclasta. Se alguém perguntar ao casal pela disposição das peças na galeria ou pela escolha de uma ou de outra obra, é provável que eles respondam, de modo despachado: “É porque gostamos assim”.
Gostar, investir, promover. Uma vez por ano, Tina e Marinho percorrem o Nordeste do País atrás da inventividade que pulsa, generosa e desinibida, nas formas e cores de esculturas zoomórficas, tapeçarias de recorte, totens, trançados, cerâmicas, madeiras toscas, quase brinquedos: hoje a parcela mais provocativa e instigante do acervo de três centenas de peças. A aposta: em breve, o meio local compreenderá e abraçará essa produção. Para tanto, munem-se de livros e catálogos, reportagens em revistas especializadas, referências de nomes cujas coleções congregam antigo, moderno, contemporâneo, popular. Nessa cruzada, é importante atestar o reconhecimento internacional, apresentar o bê-á-bá de mitopoéticas tão particulares, explicar porque a obra de um sertanejo autodidata está o mesmo preço de um artista diplomado... Trabalho vagaroso, quase catequético, de formiguinha. Mas Tina e Marinho são perseverantes e crédulos. Felizmente.