Rogerio Livi1 cogitava sobre leveza quando imaginou bolhas de sabão carregando pigmento e construindo desenhos ao pousar sobre o papel. A ideia chegou num concerto de música.2 A técnica foi aperfeiçoada ao longo de anos de experimentação e a prática logo mostrou que as variações eram inerentes ao processo. Persistência e conhecimento de Física permitiram algum controle do resultado, desenhos em nanquim sobre papel com linhas muito finas, formas circulares e detalhes sutis, impossíveis de serem traçados com instrumentos usuais e difíceis de reproduzir.

Microvariações sobre um tema, obra apresentada na exposição individual de Rogerio Livi no Atelier Subterrânea em 2008,3 é uma coleção de 144 pequenos desenhos (6 x 6 cm), classificados e organizados em uma dúzia de cartelas de filatelia, cada cartela contendo uma dúzia de desenhos. O conjunto é uma grosa (12 dúzias)4 de desenhos selecionados à semelhança das classificações morfológicas de espécimes para estudos científicos.

Livi desejava o caráter de coleção para o conjunto que preparou especialmente, centrando os desenhos no papel. Buscava um modo de proteger os desenhos sem usar vidro e se lembrou de sua coleção de selos, que iniciou ainda menino. Procurou cartelas de filatelia5 e teve a sorte de encontrar o número necessário com espaços no tamanho exato para encaixar os desenhos.6

Ao entrar em uma coleção, qualquer objeto se torna um exemplar que será observado como parte de um conjunto. Quem examina um exemplar, avalia suas características em referência às do conjunto dos demais objetos que formam a coleção. Colecionar envolve, de algum modo, classificar.

Quando decidiu cortar os quadrados de papel para fazer desenhos, o artista já tinha trabalhado com bolhas de sabão por vários anos e já era evidente que o processo gerava formas de tipologias peculiares. Formatos distintos surgem conforme a maneira de elaborar as soluções, as condições do ambiente, o modo de manipular o material na intenção de obter certo resultado e de circunstâncias inesperadas ou do acaso.

Convido o leitor a examinar as fotos e criar suas próprias categorias e associações. Sugiro identificar as semelhanças entre os desenhos da mesma cartela e comparar com os das demais cartelas, cogitando como foram obtidos. O critério inicial foi inserir em cada cartela desenhos semelhantes.



Na figura 1, as quatro cartelas localizadas mais à esquerda, apresenta desenhos contendo figuras circulares com segmentos radiais distribuídos ao redor, que parecem cílios, que foram gerados quando a bolha estourou. As variações nos desenhos da mesma cartela se devem principalmente ao acaso, que tem papel preponderante quando a bolha estoura.




Cartelas diferentes contêm conjuntos de tipologias diferentes, definidas principalmente pela intenção do artista. A experimentação se infere da diversidade dos resultados, da precisão e sutileza das linhas e da necessária dedicação para obter tantos desenhos. Livi enfatiza essas características de seu trabalho na palestra “A arte do efêmero”.7

No texto "A ação programada em uma poética artística", a artista Paloma Chagas de Leon (2012, p.37) compara as formas obtidas por Livi com as dos pingos de tinta com que constrói suas próprias pinturas: "a partir da visualidade produzida, é possível perceber uma relação formal com obras do artista plástico Rogério Livi", e continua, "em relação à forma das impressões que se originam em ambos os processos". Segundo ela, no caso da produção de Rogerio Livi "o que se vê é também em parte acaso, mas repentino e muito delicado".

O que torna o trabalho de Livi tão suave é o uso de uma forma muito leve e delicada, onde a tinta se distribui em uma superfície esférica que é gerada e manipulada pelo artista até depositá-la no papel no momento escolhido. Os respingos serão distribuídos na volta da mancha circular ao acaso. A mancha dos pingos de tinta se caracteriza basicamente pela sua cor, mas bolhas de sabão oferecem muitas possibilidades. Livi consegue, apenas com nanquim sobre papel, obter grande variedade de formas peculiares e pode, inclusive, evitar o aparecimento de respingos ou propiciar a ejeção da tinta em um sentido.



Na figura 4, pode-se ver que a cartela da esquerda tem desenhos muito diferentes, sem círculos. A cartela do meio tem desenhos mais variados e na da direita foi incluída cor.



Em exposição no Atelier Subterrânea, as duas cartelas com desenhos coloridos (Figura 5) completam a obra “Microvariações sobre um tema”, que ocupou uma parede. Na parede da direita há outros trabalhos, também em suportes brancos sem vidro.

O caráter de coleção é evidente e foi reforçado ao organizar os desenhos como um catálogo, em cartelas de filatelia. Visualizo esses desenhos como exemplares de seres peculiares: “espécimens”, e associo as variações entre as figuras na cartela às diferenças entre indivíduos da mesma espécie. Não consigo escapar desse viés ao olhar essa obra, cuja gestação acompanhei de perto, vendo o processo experimental de criação e festejando com o artista quando suas tentativas resultavam em novos tipos de imagens.

Bolhas de sabão aparecem na História da Arte como tema da pintura, muitas vezes incluídas nas “vanitas”, uma categoria de natureza morta que salienta a efemeridade da vida e a futilidade da vaidade humana. Também são famosas obras que representam crianças soprando bolhas de sabão.8 O pensamento de Livi não se voltava para qualquer representação: seu enfoque foi usar as próprias bolhas para criar desenhos. Quem os observa faz variadas interpretações, de seres microscópicos ao macrocosmos.

1  Rogerio Livi recebeu do III Prêmio Açorianos de Artes Plásticas (2008) a premiação de Artista Revelação e o Troféu RBS Cultura por sua exposição "Microvariações sobre um tema".

2  “Microvariações sobre um tema”, o título da exposição no Atelier Subterrânea e da obra aqui discutida é uma referência à música.

3  “Rastros da Impermanência”, texto de Helio Fervenza, aborda múltiplos aspectos do trabalho e foi escrito para a exposição “Microvariações sobre um tema”. Disponível em: http://subterranea.art.br/mostras_rogerio_livi.html.

4  Ao selecionar uma grosa, optou por uma medida tradicional comum no atacado para pequenos itens, mas atualmente pouco usada, embora tivesse mais duas cartelas e desenhos suficientes para preenchê-las.

5  Esse suporte tem qualidade “archival”, estável por longo tempo sem alterações químicas e mecânicas.

6  A distribuição em dada cartela se deu por uma escolha estética. Cada cartela foi colocada em uma caixa, sem vidro.

7  Disponível em: www.youtube.com/watch?v=SrKrn3c75ok, no evento TEDxLaçador, em julho de 2013.

8  Ver as obras “A bolha de sabão” (c.1739) de Jean-Baptiste-Siméon Chardin, “Bolhas” (1886) de John Everett Millais e “Menino soprando bolhas” (1867) de Édouard Manet.

DE LEON, Paloma Chagas. A ação programada em uma poética artística, 2012, 62f. Monografia (especialização) – Centro de Artes. Universidade Federal de Pelotas: Pelotas, 2012. Disponível em: http://wp.ufpel.edu.br/especializacaoemartesvisuais/files/2013/06/Paloma-Chagas-de-Leon-2012.pdf

Capa | Detalhe da exposição "Microvariações sobre um tema" de Rogerio Livi, realizada na Galeria Subterrânea em 2008. Fotografia: F. Zago.

1  Rogerio Livi, Microvariações sobre um tema, 2008, 144 desenhos de 6 x 6 cm cada e uma dúzia de cartelas de filatelia (detalhe). Fotografia: F. Zago.

2  A sequência de cartelas seguinte da obra “Microvariações sobre um tema”, a cartela da esquerda está na figura 3. Fotografia: F. Zago.

3  Nesta cartela, núcleos escuros se destacam no interior de círculos com cílios ao redor. Fotografia: José Francisco Alves.

4  Rogerio Livi, Microvariações sobre um tema, 2008, 144 desenhos de 6 x 6 cm cada e uma dúzia de cartelas de filatelia (detalhe). Fotografia: F. Zago.

5  Rogerio Livi, Microvariações sobre um tema, 2008, 144 desenhos de 6 x 6 cm cada e uma dúzia de cartelas de filatelia (detalhe). Fotografia: F. Zago.