As cidades são o lugar privilegiado de encontro e convívio entre pessoas diferentes e os mais diversos tipos sociais. Ao longo do século XX, as cidades brasileiras viveram uma explosão demográfica que acentuou o nível de conflito entre essas diferentes populações, gerando uma lógica de segregação espacial em seus mais variados níveis. Seja no estabelecimento de favelas e de loteamentos irregulares e informais para moradia das populações menos privilegiadas, seja na construção de condomínios cercados, ou mesmo na ocupação irregular de áreas de preservação ambiental para a construção de suntuosas mansões, essa segregação ilustra o grau de desigualdade do país. Ligando esses diferentes tipos de ocupação deveriam estar os espaços públicos para serem usufruídos por todos. A lógica da desigualdade que gera a violência classista no Brasil, porém, reforça o estigma de que as ruas, as praças, os parques, as praias são locais violentos e frequentados por pessoas “diferenciadas”, com as quais as elites não devem se misturar, dando mais uma volta no torniquete das desigualdades espaciais e sociais nas grandes cidades.
Essa situação não é particularmente nova e atrai os olhares de artistas desde pelo menos fins do século XIX. Muitos foram os que se lançaram a investigar ou a representar os usos variados dos espaços públicos desde que, na modernidade, a arte se libertou de suas funções ritualísticas. É a partir da segunda metade do século XX, no entanto, que há uma verdadeira explosão de artistas que se dirigem de diferentes maneiras às formas de ocupação e construção das cidades modernas em diferentes trabalhos e meios. Desde os Situacionistas em Paris, na década de 1950, que com suas derivas buscavam novas formas de vivenciar o espaço urbano, muitas foram as práticas que procuraram ativar essas zonas em favor de uma vida menos dirigida pelos imperativos produtivistas da sociedade de consumo espetacular.
Robert Smithson, ao passear em sua Passaic natal, já falava dos monumentos entrópicos que canos despejando esgoto no rio, estruturas de obras abandonadas, tratores e gruas representavam, nesse contexto de uma cidade em plena mudança de uma base de produção industrial para uma de serviços (SMITHSON, 2009). Poucos anos depois, seu admirador e amigo Gordon Matta-Clark também realizaria um exaustivo levantamento e proposição de ações que modificassem as relações estanques presentes nos usos da cidade e da arquitetura – conformadora que é dos espaços urbanos. Em uma cidade como Nova Iorque, onde a retícula das quadras se impõe como abstração territorial por meio de seu ordenamento supostamente racional, Matta-Clark procurou intervir nos espaços de desordem e conflito, buscando ativar populações marginalizadas ou expondo a irracionalidade por trás do loteamento das regiões onde a retícula não foi implementada. Em Reality Properties: Fake Estates (1974), o artista comprou microparcelas de lotes inacessíveis no bairro do Queens colocadas em leilão pela prefeitura da cidade. Expunha assim a arbitrariedade presente na demarcação dos lotes onde deveria imperar o máximo da racionalização, mesmo que com vistas apenas ao melhor aproveitamento financeiro da terra. Uma maneira de “atacar a estranheza das linhas de demarcação das propriedades existentes”, ao “designar espaços que não poderiam ser vistos e certamente não poderiam ser ocupados” (BEAR, 2003, p. 164). Do mesmo modo, o artista sonhava em criar jardins públicos comunitários que surgissem da noite para o dia em terrenos baldios para que a população se apropriasse deles e desenvolvesse suas próprias formas de utilizá-los (CRAWFORD, 2010, p. 48). Esse projeto nunca chegou a ser realizado, mas seus frutos hoje são colhidos por uma geração de artistas que cresceu em meio ao caos das grandes cidades e à arbitrariedade que o uso capitalista da terra urbana impõe ao espaço construído. Esses artistas buscam ressignificar ou tornar esses espaços mais presentes na vida “comunitária”.
A artista espanhola Lara Almárcegui é um bom exemplo de uma artista com uma prática voltada para a recuperação do valor paisagístico e social de terrenos baldios e edifícios abandonados ou em vias de demolição. Um trabalho que a artista realizou em diversas cidades ao redor do mundo, incluindo São Paulo, quando da residência para a 27a Bienal de São Paulo, em 2007, é um guia de terrenos baldios “interessantes” que podem despertar o interesse da população para serem ativados (ALMÁRCEGUI, 2006). Nesse caso, trata-se de um mapeamento “passivo” que busca apenas lançar luz sobre esses espaços abandonados, mas cheios de potencialidade em meio às massas cinzas de concreto e asfalto que caracterizam nossas cidades rodoviaristas. Em outros trabalhos, a artista tem uma participação mais ativa e agregadora em relação à comunidade local. Em Hotel de Fuentes de Ebro, Estación de tren de Fuentes de Ebro, Zaragoza (1997), por exemplo, Almárcegui se apropriou de uma estação de trens abandonada havia décadas e a transformou em um hotel temporário e gratuito por uma semana, atraindo grande público e deixando como fruto para a população local o desejo em reativar aquele espaço de maneira permanente (ALMÁRCEGUI, 2008). Mais importante ainda é o fato de que os moradores da região puderam experimentar um outro uso daquela construção e, a partir dessa experiência, desenvolver seus próprios projetos e explorar suas próprias necessidades locais e comunitárias.
Muitas propostas semelhantes ocorrem no Brasil e no mundo em sentidos que vão desde hortas comunitárias realizadas pela população local até práticas arquitetônicas mais ou menos participativas que (re)ativam espaços urbanos abandonados ou marginalizados. Louise Ganz é uma arquiteta e artista que desenvolveu diversos projetos de ativação dos espaços públicos urbanos e rurais nos últimos anos em parceria não só com outros artistas, mas também com profissionais de áreas diversas que contribuem com seus conhecimentos específicos na produção do trabalho.
Em Lotes Vagos: ação coletiva de ocupação urbana experimental (2005-2008), projeto realizado em parceria com Breno Silva, os artistas mapeiam terrenos baldios com potencialidade para receberem novos usos e negociam com seus proprietários períodos para ocuparem aquele espaço. Normalmente, a ocupação do local tem origem em diálogos com a população da região. Assim, um terreno abandonado cercado por muros altos, onde só brotavam ervas daninhas, é aberto para o lazer comunitário. Nele, são realizadas festas, encontros, ficando disponível também para momentos de contemplação, ressignificando aquele local mesmo que por um curto espaço de tempo. As sementes ali plantadas podem germinar em usos mais livres desses locais estanques, em meio à aridez da cidade demarcada por lotes mercantis.