[...] O trabalho de André Arçari parte de coleta de vídeos desses sistemas de monitoramento e vigilância. Ele constrói seu vídeo Stalker através de narrativas feitas com recortes de imagens que toma do sistema de monitoramento de seu próprio edifício. [...]
Júlio Martins


O Projeto Stalker (2014-2015) apresentou seus resultados em uma exposição coletiva com os demais contemplados pelo Edital 011/2014 Prêmio para Bolsa em Artes Visuais – Ateliê da Secult, em data marcada em conjunto com o Museu de Arte do Espirito Santo. A exposição entrou em cartaz no dia 02/10/2015 e se manteve aberta ao público até o dia 31/01/2016. Constatou-se, durante a realização do trabalho, que os dispositivos de videovigilância existentes dentro de um país como o Brasil, e mais, em nossa cultura ocidental, tratam-se de um projeto advindo de um lugar maior, do qual não soubemos identificar a raiz do problema, mesmo porque talvez ele tenha surgido por um fluxo de alteração da vida desde a modernidade, e, juntamente com a constituição da cidade e de uma ideia de caos acoplada à vida urbana. Esses mesmos dispositivos, instalados na vida, nos espaços tradicionais de convívio do humano, espaço do real, campo do existir, se põem a monitorar os mesmos habitantes desses lugares, tomando a parte pelo todo, pondo assim em investigação um ser-no-mundo como um ser-habitante-das-regras desse mesmo lugar (o mundo), em uma constituição já dada social e culturalmente. Esta mesma vigilância atua no mundo, por exemplo, como o olho que tudo vê, também conhecido como o olho da providência, ou algo como a representação de “Deus” observando a humanidade. Entretanto, entendemos que esse mesmo “Deus” se trata de um produto constitutivo do capitalismo, pilar sociocultural no qual esses mesmos dispositivos de segurança se sustentam. Talvez, por isso mesmo, constatamos que esse mesmo sistema recluso de vigilância mais sufoca do que assegura algo, fazendo com que os seres estejam sempre em um estado de serem vigiados por outrem nesse mesmo sistema prisional. É nessa esteira que emerge, dentro da investigação, uma ideia de um panóptico, portanto, de uma cidade mais fechada em si do que aberta ao mundo. Foi o filósofo Jeremy Bentham que cunhou o termo pan-óptico pela primeira vez, em 1785, para o desígnio de uma prisão ideal, onde os prisioneiros são vigiados 24 horas, porém, sem saberem se, de fato, estão ou não sob vigilância.

Essa associação é reverberada dentro da cidade, pelas ruas, quando percebemos que essas mesmas câmeras de vigilância possuem uma estética similar a dos postes de energia pública e de outros aparatos urbano-sociais, onde estão instaladas como dispositivos-camuflados em um mundo que se pretende apreensivo por imagens-movimento. E ainda, não sabemos com certeza se essa vigilância está ocorrendo, ou está sendo meramente representada/encenada/simulada. São essas mesmas imagens produzidas pelos aparelhos que possuem a capacidade, por parte de um entendimento geral da noção de real e factual, visível e dizível, de captarem o mundo intuitivo pra si. Entende-se então que, para habitar na cidade, haveria um conjunto de regras, das quais as noções de bom comportamento e controle são reverberadas através dos aparelhos de vigiar. Vigiar e punir, a citar as noções de domesticação da vida por Foucault (1987). O pressuposto é que, através de um vigiar, o mal comportamento sempre será punido, cedo ou tarde.

Por essas e outras questões mais amplas de um projeto de mundo contemporâneo, o trabalho, que intitulamos Stalker, se prestou a ser apresentado dentro de uma sala expositiva do museu – o qual, por sua vez, continha uma segunda sala menor, usualmente fechada pela instituição que recebeu o projeto. Dentro da grande sala expositiva foi exibido o trabalho tautológico de título Projeto Stalker, e, através de um acordo com os responsáveis pela pintura e serviços de ordem apriorísticos, foi realizada a instalação do trabalho no espaço. Obtivemos aprovação (junto à equipe do Museu) para abrirmos a pequena sala, que, por sua vez, recebeu como título A Zona, em conformidade com um poder crítico do espaço e de um lugar homônimo dentro do filme Stalker (1979) do cineasta russo Andrei Tarkovski, um dos pilares fundadores da pesquisa em questão. Se de um lado, o acesso público à sala menor permitia um abrir da instituição para os próprios fruidores, esses mesmos partícipes tiveram acesso às imagens do circuito interno do museu (imagens ao vivo), ou seja, eles puderam adentrar um vértice dessa mesma Instituição-Arte, cujos subsídios advêm do Estado, um espaço governamental gerido pelo poder público, e consequentemente por dinheiro arrecadado pelos impostos pagos pelos cidadãos do próprio Estado. Essa pequena sala continha imagens ao vivo das câmeras de segurança da instituição, como já citado, e eram exibidas como um mosaico em um monitor de LED. A saber, esse trabalho apresentava a cartografia do museu, como apontou Júlio Martins no texto curatorial da mostra, exibindo assim um índice do espaço físico (real) da instituição, onde era possível ter acesso a lugares nunca antes visitados pelo público em geral, como (1) a reserva técnica; (2) a sala da administração/diretoria; (3) corredores internos de acesso a esses mesmos espaços; bem como (4) as próprias salas expositivas, além de outros ambientes, como (5) as ruas (entorno) – que podem ser assimiladas como o externo da Instituição-Arte (validadora) – em que se encontram o próprio museu. Conteve então, dentro da sala principal, poucos elementos, e isso se deu, principalmente, para que fosse ressaltado uma síntese da pesquisa. A grande TV de LED instalada sob uma escultura com duas hastes de alumínio presas ao teto, apresentava um vídeo em looping com corte aproximado de 30 minutos, em que eram exibidas imagens captadas de uma câmera filmadora por uma TV, dentro do apartamento do artista, mostrando registros de imagens das câmeras de segurança do seu lugar-habitação. Essa extensão do tempo e a forma de exibição do trabalho, apenas por cortes secos (técnica de edição de vídeos/filmes) que formavam um continuum de linearidade temporal do estudo, apresentavam as imagens desprovidas de uma narrativa tradicional de cinema, apesar de conterem em essência a noção de uma imagem-movimento, pondo em prática estudos de uma teoria dessa mesma imagem elaborada por Gilles Deleuze (1985) em suas investigações sobre o fazer cinematográfico, analisadas durante a pesquisa. As placas acrílicas expositivas ressaltavam o caráter discursivo da pesquisa, pondo-a como estudo prático-teórico. Acerca dos acrílicos, sua estética inseria o texto numa condição de documento, parte integrante do todo da pesquisa, que se exibia ali fragmentária, amalgamada por aqueles elementos presentificados espacialmente. Toda a constituição da instalação, então, se oporia a uma fundamentação aurática de obra única, ao exibir seu processo e seus conjuntos de regras internos, concebidos pelo próprio artista como engrenagens que, instaladas como peças da máquina (o próprio trabalho em si), a permitiriam então se mover. Em termos gerais, o trabalho obteve êxito por explorar fragmentos desse campo, e por sua concepção múltipla ao se valer de meios como o próprio uso funcional e poético da linguagem, assim como a exploração da imagem-estática, imagem-movimento, som, discurso, instituição, arte, estética, política, cultura e identidade.







DELEUZE, Gilles. Cinema 1: a imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. [Trad.] Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.

Capa  - Stalker, 2015, imagens de circuito fechado de televisão (CFTV) do apartamento do artista, vídeo 16:9 widescreen [cor - silêncio], 25’ 28’’ [Looping].

Stalker, 2015, instalação com câmera de circuito interno, alarme, iluminação museológica, ar-condicionado, televisor LED 40’’, estrutura de alumínio sobre teto, fotografias, prateleira de madeira, texto (datilografado, carimbado e assinado) sobre papel e placa acrílica.

Stalker, 2015, instalação com câmera de circuito interno, alarme, iluminação museológica, ar-condicionado, televisor LED 40’’, estrutura de alumínio sobre teto, fotografias, prateleira de madeira, texto (datilografado, carimbado e assinado) sobre papel e placa acrílica.

Stalker, 2015, prateleira de madeira, texto (datilografado, carimbado e assinado) sobre papel e placa acrílica. 8 fotografias. Impressão laserjet sobre papel layout 120g, 29,7 x 23cm (cada).

4 e 5  Respectivamente: Texto Projeto Stalker, 2014-2015, e Texto A Zona, 2015. Texto datilografado, carimbado e assinado sobre papel e placa acrílica.

Stalker, 2015, prateleira de madeira, texto (datilografado, carimbado e assinado) sobre papel e placa acrílica. 8 fotografias. Impressão laserjet sobre papel layout 120g, 29,7 x 23cm (cada).

Stalker, 2015, prateleira de madeira, texto (datilografado, carimbado e assinado) sobre papel e placa acrílica. 8 fotografias. Impressão laserjet sobre papel layout 120g, 29,7 x 23cm (cada).

A Zona, 2015, instalação com mobiliário (assento), monitor, computador (servidor), texto (datilografado, carimbado e assinado) sobre papel e placa acrílica. Imagens de circuito fechado de televisão (CFTV) do Museu de Arte do Espírito Santo Dionísio Del Santo em tempo real.

A Zona, 2015, instalação com mobiliário (assento), monitor, computador (servidor), texto (datilografado, carimbado e assinado) sobre papel e placa acrílica. Imagens de circuito fechado de televisão (CFTV) do Museu de Arte do Espírito Santo Dionísio Del Santo em tempo real.