Pesquisando há cerca de uma década a respeito do sistema da arte, seus agentes e mecanismos, sigo me impressionando com o descaso generalizado e certo preconceito do meio artístico em relação ao tema. Quero crer que tal atitude vem da falta de conhecimento mais aprofundado sobre as discussões teóricas que perpassam as mais banais e cotidianas ações de artistas, críticos, curadores, diretores de instituições, professores, galeristas, entre outros agentes desse sistema.
Objetivando desmistificar esses conceitos e ampliar a discussão, tenho participado de eventos, escrito artigos, dado palestras, feito provocações aos meus pares. Um dos argumentos mais recorrentes que surge nessas aberturas ao diálogo é uma demarcação de território constante por parte dos meus interlocutores, o estabelecimento de uma fronteira, o nós x eles. O “nós” sendo representado por atores que se veem excluídos – ou à margem – do sistema, versus o “eles”, o grande mainstream, materializado especialmente nas forças representadas pelo mercado de arte. O que a maioria das pessoas não percebe é que tal ideia está longe de esgotar as configurações do sistema. O mundo contemporâneo é mais complexo do que essa dicotomia simplista. O mundo das artes também.
Para início de conversa, não existe um único Sistema da Arte, com letras maiúsculas. O que realmente existe são vários sistemas da arte, conectados, sobrepostos, entrecruzados, interseccionados. Eles possuem diferentes escalas, localizações geográficas e níveis de poder de interferir no próprio sistema. Muitos desses sistemas, por isomorfismo1 (VELTHUIS, 2016), espelham-se e buscam reproduzir as instâncias e estruturas daquilo que eles imaginam ser o Sistema da Arte. Assim, museus de cidades menores ainda miram a Tate, em Londres, e o MoMA, em Nova Iorque, como os grandes exemplos a serem seguidos; bienais de países periféricos ainda se pautam por Veneza ou Kassel; novas feiras abrem semanalmente ao redor do mundo com a expectativa de que o dinheiro escorra ali como aflui nos corredores da Basiléia.
Atualizando o conceito proposto por Maria Amélia Bulhões Garcia2 no início dos anos 1990, podemos dizer que o sistema da arte contemporâneo é composto por toda uma rede de agentes, sejam eles pessoas ou instituições, que conjuntamente validam o que é considerado arte em determinado período histórico. A novidade aqui é a utilização da noção de rede (CAUQUELIN, 2005) como fundamental para a composição do jogo de forças contemporâneo. Como é quase impossível visualizar uma rede em toda sua complexidade sem estabelecer algum tipo de delimitação, continuamente propomos recortes – de ordem metodológica – para facilitar sua apreensão. Também por isso, e a partir desses recortes, podemos falar em sistemas da arte, no plural.
Mas também podemos falar em pluralidade por entender que a arte já fala, faz algumas décadas, a partir de outras vozes. Vozes essas que somente são escutadas porque novos lugares de fala foram escavados, desenhados, instituídos. Lugares que servem de amplificadores não apenas de manifestações poéticas, mas também para possibilidades de inserção, circulação e visibilidade dessa produção. Mais ainda, são exatamente esses lugares de (aparente) subversão que (em certa medida) renovam e alimentam os mecanismos de legitimação da arte contemporânea. Ou seja, somente existe mainstream porque a margem produz diferença, novidade e reflexão. Sem esse funcionamento, a arte não se oxigenaria. Estagnada, perderia a capacidade de lidar com questões simbólicas caras ao universo contemporâneo. Aos poucos, o que está ocupando posição central perderia legitimidade, valor simbólico e, consequentemente, valor financeiro.
Assim sendo, não seriam apenas as instâncias de legitimação citadas acima que comporiam o sistema da arte. Escolas de arte, instituições sem fins lucrativos, espaços independentes, projetos colaborativos, entre outros, estão constantemente desfocando e alargando as fronteiras do que conhecemos por arte. Muitas vezes sem perceber, tais esferas contribuem ativamente para o funcionamento do sistema.
Isso ocorre por uma série de razões, mas a natureza da arte talvez seja o principal elemento definidor desse modus operandi. Isso porque há outra questão fundamental para a compreensão do funcionamento dos sistemas da arte: o fato de que sua existência é baseada em uma série de narrativas ficcionais. Talvez a mais comum delas seja a de que ainda hoje a obra de arte enquanto commodity seja a principal força motriz do sistema contemporâneo. Da mesma forma que não há um Sistema da Arte, tampouco há um único Mercado da Arte. Nem se compreendermos mercado no sentido mais tradicional, aquele que abrange apenas compra e venda direta de obras, poderíamos nominá-lo no singular. Nem se olhássemos apenas para os números oficiais dos grandes leilões internacionais ou para as manchetes dos jornais durante as feiras de arte, noticiando recordes de vendas. Nem assim poderíamos pensá-lo no singular.
Isso porque o mercado de arte é um dos mercados menos regulados e opacos que existe, e os números referentes ao seu crescimento ou retração são provavelmente a maior das ficções que envolvem o sistema da arte contemporâneo. Mas, para além disso, outra grande ficção é a de que o mercado se restringe a essas transações, a esses números, quando – na verdade – o mercado de arte é sobre a monetarização de um conhecimento específico e suas formas de reprodução e circulação.
Portanto, salários de professores que ensinam arte, cachês para ministrar workshops, oficinas, palestras, edição de livros, montagem de exposições, trabalho em instituições formais ou independentes e toda uma cadeia produtiva que se utiliza desse conhecimento específico enquanto instrumento de trabalho deveriam ser contabilizados na composição do mercado de arte. Na impossibilidade de realizar esse levantamento, convivemos com dados parciais, informações que dão conta de alguns desses mercados constituídos e tomados por oficiais perante o sistema e a opinião pública.
Assim, não faz sentido falar em “nós” e “eles”. Todos fazemos parte desse sistema que legitima a produção artística contemporânea. A diferença maior reside na posição objetiva que ocupamos e na respectiva carga de poder e influência que a acompanha. Nesse sentido, e apesar da série de transformações e flexibilizações ocorridas no campo da arte e na noção de autonomia, alguns dos entendimentos propostos por Pierre Bourdieu (2010) seguem atuais. O que precisamos entender, sem ingenuidades ou rancores, nessa configuração é a partir de qual lugar cada um fala – artistas, curadores independentes, diretores de instituição, gestores de projetos independentes, arte-educadores, acadêmicos – e o conjunto de ficções que cada um desses espaços projeta no(s) sistema(s).