O sistema da arte1 enquanto mecanismo de legitimação, junto de seus agentes, por vezes, ocasiona processos de esvaziamento do real sentido de produções contemporâneas de caráter urbano. Nos últimos anos, têm-se visto os espaços do circuito das artes apropriando-se das linguagens oriundas da rua e levando-as para dentro de museus, galerias, fundações e outros locais pertencentes à instituição-arte.

Neste texto, refiro-me à arte urbana como manifestação cultural de origem periférica que encontra nas ruas das cidades o suporte para sua criação, como é o caso da linguagem estética do grafite, do picho (ou pixo), do estêncil, do sticker, ou das aplicações de lambe-lambe. Entre esses diferentes estilos, predomina o caráter marginal, de contracultura e contravenção, mas isso não é regra. Os conteúdos variam. Trazem ilustrações de traço realista, mensagens políticas de afronta ao sistema econômico capitalista, rechaçam padrões culturais machistas, misóginos, homofóbicos, transfóbicos, racistas, pregando a luta por igualdades.



Arte como crime; crime como arte

Segundo a Lei nº 9.605 de 12 de fevereiro de 1998, pichar ou depravar por forma semelhante o patrimônio público ou privado é crime. A prática do grafite também estava sob esta condição, porém, desde 2011, não se constitui mais como ato ilícito. De fato, apesar de o grafite ter surgido do picho, existe um abismo estético entre essas expressões. O grafite se constitui de elementos visuais geralmente coloridos, formando imagens que se fundem harmonicamente com o visual urbano. Busca, em geral, a autorização, o financiamento, a consagração e o reconhecimento. É uma linguagem já institucionalizada, aceita pelo meio artístico e pelo público. Com o grafite, o Brasil já ganhou fama e exportou talentos como Os Gêmeos, Derlon, Mari Pavanelli, Alex Vallauri, Alexandre Orion e Caligrapixo. O picho, por sua vez, não busca uma reconciliação com a cidade, nem uma preocupação em ser aceito pelo circuito-arte. É justamente o contrário; a lógica é a da contravenção. A intenção dos pichadores é a do vandalismo, da anarquia, não de uma forma vazia, mas embasada numa ideologia de afronta ao sistema e seus modelos. Esses jovens da periferia, marginalizados pela estrutura social, buscam sua própria forma de inclusão ao ocuparem o espaço urbano. Assim, o picho acaba sendo o substrato visual de um universo de desigualdades de classes e de políticas sociais de segregação, permitindo a promoção existencial do sujeito, bem como a situação de adrenalina, associada ao espírito do caos. Algo como um grito de liberdade em meio a um contexto repressor.

Se por um lado temos o sistema da arte como um ralo de significação, no sentido em que esvazia a potência dessas expressões de rua, também podemos encarar o posicionamento desses lugares como um espaço de visibilidade para esses artistas.2 No entanto, é necessário ressaltar que os espaços culturais costumam evidenciar a figura do artista individual, e essas manifestações no espaço público se fazem em coletivo na maior parte das vezes. E não apenas os espaços institucionais servem como meios de legitimação; o discurso crítico também tem dado atenção à produção urbana. No momento em que se publica um texto sobre pichação, trazendo reflexões sobre suas implicações no contexto cultural, essa manifestação de caráter criminoso dá um passo para dentro do sistema da arte. Mas não significa, ainda, que a intenção de reivindicação social e artística, inerente a essas expressões, foi perdida, até por que não dar atenção para qualquer manifestação cultural antrópica é como que passar uma borracha na história.

A migração da arte urbana para a instituição-arte consagra essa produção que está às margens e agrega a ela questionamentos de origem teórica, conceitual, e mercadológica. Mas será que é essa a intenção desses movimentos: serem aderidos ao que contestam? Com certeza a ambiguidade é uma característica própria do sistema da arte, que pode matar ou engrandecer uma obra de origem urbana. É fundamental o diálogo entre os agentes culturais e o artista para que a obra desse meio, alocada na instituição, seja exposta de forma que não perca seu significado, assim se mantém preservado o “ser da obra”. No caso do picho, deve-se mantê-lo marginal, não legitimado, prezando por sua essência, ou então se perde completamente o sentido. O ilegal vira legal e este tipo de crime é necessário.

1  Conjunto de indivíduos e instituições responsáveis pela produção, difusão e consumo de objetos e eventos por eles mesmos rotulados como artísticos e responsáveis também pela definição dos padrões e limites da arte para toda uma sociedade, ao longo de um período histórico (BULHÕES, 2014, p.15).

2  Alguns exemplos em que o sistema da arte se apropriou dos movimentos artísticos da rua recentemente no RS são: a exposição Transfer, que aconteceu no Santander Cultural, em Porto Alegre, em 2008; e Xadalu – Arqueologia do presente, de 2016, no Museu dos Direitos Humanos do Mercosul. É importante lembrar também dos precursores Jean-Michel Basquiat e Keith Haring, que são considerados os primeiros artistas a fazer esse intercâmbio entre a rua e o sistema da arte.

BULHÕES, Maria, et al. As novas regras do jogo: o sistema da arte no Brasil. Porto Alegre: Zouk, 2014.

Capa  - Imagem de banheiro pichado, sem título, sem autor e sem data. Fonte: http://www.anf.org.br/

Pichação no viaduto da Borges, em Porto Alegre. Sem autor e sem data. Fonte: http://www.imaginacaofertil.com.br/

Picho contra o sistema capitalista e a relação de poder. Sem autor e sem data. Fonte: http://www.trilhosurbanos.com/