Em 2012, o cheiro de aipim amanteigado e uma amiga filósofa tentavam me convencer de que era impossível ensinar a alguém a escrever poemas. Em 2009, eu fazia parte de um grupo de Letramento Literário tendo à frente um historiador e antropólogo que nos convidou a trabalho na favela de Acari. “Onde há vida, há inacabamento” (FREIRE, 2010, p. 50). Uma ars poética por vir. Só é possível alfabetizar diante do reconhecimento de um analfabetismo maior. A, bê, cê... É possível ensinar a ler? Penso no tom direto e cortante de Pound, o epifânico inventor fascista. O primeiro livro publicado de Freire foi a Pedagogia como prática da liberdade; no Chile, vinha educando, lutando, ao lado do Movimento de Reforma Agrária da Democracia Cristã. Em 2001, eu tentava aprender melhor o nome das cores. Nunca reconheci por completo meu daltonismo, por isso não aprendi, guardei um choro por quinze anos, libertado pela experiência nomeadora da artista plástica Virgínia Mota. Não sei bem ler o que ela me disse. “Na solidão de indivíduo / desaprendi a linguagem / com que homens se comunicam” (DRUMMOND, 2012, p. 256). Não, não é bem isso.

Não há muitas bibliotecas ou livrarias nos principais bairros em que passei a minha infância, entre a zona norte e a zona oeste do Rio de Janeiro. Méier, Vila Valqueire, Senador Camará... O primeiro livro a que tive acesso, depois da bíblia (os livros da escola não contam, eu sempre colei nas provas de literatura), foi O Livro de Ouro da Mitologia. Por causa dos Cavaleiros do Zodíaco. Do livro, roubei meu primeiro poema; uma cópia para impressionar a namorada, também exilada das estantes. Não me lembro de sua reação ao ver seu nome figurar ao lado de epítetos greco-romanos. Alguns anos depois, li biografias que contavam sobre como poetas liam Rimbaud aos 13 anos, e filósofos participavam de grupos de estudo de Kant aos 14. Ubiratan,1 ex-aluno meu no Estado do Rio de Janeiro, em Irajá, afeito ao grotesco e à profusão dos detalhes, teria, uma vez dada a oportunidade, gostado do Inferno de Dante? Das algaravias de Waly Salomão? Teria concordado com Auerbach sobre o legado realista do cristianismo? E Geise, negra, lésbica, forte e extremamente sentimental, teria lido Sapho com entusiasmo? Teria gostado das traduções experimentais para o inglês e para a linguagem dos subterrâneos da autora grega feitas por Anne Carson? A questão não é essa, é mais grave.

Um amigo filósofo entrou em crise depois de operar como mediador em uma de nossas oficinas. Quis jogar tudo para o alto. O reconhecimento dos pares o aliviou e deu sentido para a andança. Às vezes, manda notícias das transformações em sua prática pedagógica. Um refrão dos irmãos Campos (2013, p. 30): “A flor flore...” (continua). Na proto-história das oficinas, está o estabelecimento das guildas, na Baixa Idade Média. Funcionavam como uma espécie de espaço de convivência, aprendizado, com maior ou menor rede de proteção mútua. Com as oficinas, após a Revolução Industrial, a vivência entre artesãos, mestres e aprendizes se tornou, a um só tempo, necessária e obsoleta – mas nunca desapareceram por completo, é claro. Onde quer que haja ameaça, aí haverá oficinas. Quando crianças de uma mesma família se reúnem para discutir qual a melhor maneira de burlar as regras contra pais e mães, elas estão participando de uma oficina.

Sergei Tretiakov (1923) acreditava que existem dois tipos de escritores: o operativo e o informativo. O primeiro não apenas relata, como participa, não apenas engendra espectadores, mas combatentes. Precisamos falar de política porque o sistema das artes, já se disse, é uma espécie de Cidade-Estado, pólis infelizmente tomada por um sistema patriarcal e escravocrata. Na década de 1930, Walter Benjamin sugeriu que:

Um escritor que não ensina outros escritores não ensina ninguém. O caráter modelar da produção é, portanto, decisivo: em primeiro lugar, ela deve orientar outros produtores em sua produção e, em segundo lugar, precisa colocar à disposição deles um aparelho mais perfeito. Esse aparelho é tanto melhor quanto mais conduz consumidores à esfera da produção, ou seja, quanto maior for sua capacidade de transformar em colaboradores os leitores ou espectadores. (BENJAMIN, 1994, p. 132).

“...o colibri colibrisa...” (continua). Pensar o lugar do “intelectual” no processo produtivo. Penso que a amiga filósofa e que aquele aipim amanteigado falavam alguma bobagem pequeno-burguesa. Mas isso seria uma rima, não seria uma solução. Por que oficinas? Pode-se ensinar a alguém a escrever poemas, ou melhor, a ser poeta? O objetivo, a frieza, o cálculo e o saber são antipedagógicos. Foi preciso um poeta de mãos trêmulas e muito ódio à dominação (uma escola injustamente recriminada) para me ensinar a verdadeira calma na sala de aula. Um cuidado de artesão. As oficinas, desde então, têm ensinado algo sobre as relações sociais em geral. Ao falar de toda essa gente penso em pagodes românticos, penso nos churrascos de família, penso em minha mãe lendo a bíblia comigo, quando eu ainda era cristão. Não, penso mesmo é nos pagodes românticos. É a trilha sonora de minha proto-história com os livros, com os poemas. Em 2015, em um debate sobre Hannah Arendt, uma senhora torceu o nariz quando vinculei o sentimento em “Pequena Eva” ao prefácio de A condição humana. Quando contei da origem da canção, na Itália da Guerra Fria, um sorriso. Não, assim não se pode ensinar a escrever poemas. Ensinamos o medo; e, em um país colonizado, ensinamos o nojo, o spray de bom ar, a camuflagem do sotaque. Não, assim não se pode ensinar a escrever poemas. “...a poesia poesia”.



Menos do que perguntar se todos farão arte de qualidade e se o sistema das artes sobreviverá, é preciso perguntar o que significará tornar todo mundo um potencial colaborador. Pode ser que a importância deste processo se dê em outras esferas, afetando a vida como um todo.

É por isso que precisamos ser francos. Sem história, sem política, não é possível. O que, exatamente, não se ensina? Se a escritura for comunicação da humanidade essencial, não se ensina. Se se referir a uma espécie de abertura do ser, também não. Qualquer legado aristocrático deve ser rechaçado ou transformado. Um saber que consolidou a dominação não pode ser ele mesmo libertador. Se a escritura for uma tarefa por uma outra socialização, outra coisa pode ser ensinada. Não se contam, nos salões das letras, dos professores particulares de português, das aulas de ópera na infância, dos ambientes burgueses de fabricação da imaginação, nem de seus derivados contemporâneos... porque, se quem escreve realmente estiver interessado em experimentar, jogará, ou pensará ter jogado, tudo isso fora. Penso nos meus péssimos poemas de amor e nos poemas políticos terríveis que escrevi em 2006. Se os tivesse escrito com a caneta da pizzaria do Mineiro, em Senador Camará, se tivesse dedicado ali os joelhos machucados depois das corridas de patins, ou as humilhações diárias diante de certos professores... O que, disso, poderia ter sido ensinado? Certamente, eu não precisaria sequer questionar sobre a sua suposta qualidade.

Haroldo de Campos sonhava com um laboratório de textos. Penso em fábricas geridas pelos trabalhadores, penso na reforma agrária, na expropriação dos meios de produção e na sua socialização. Vamos falar em relações literárias de produção. Uma amiga, em uma das oficinas que ministrei no Centro Municipal de Artes Hélio Oiticica, travou a mão, parecia não querer ou poder tentar o poema. De tudo, guardou a sentença: “não me faltam ideias, me faltam palavras”. Desde então temos pensado muito na presença do material. Falta o material a muita gente. Há muito pouca honestidade e generosidade naquele aipim amanteigado. Certa vez me impressionei com alguém que assistiu Paulo de Oliveira (vivido por Tiefenthaler, em Larica Total, no Canal Brasil) dizendo que, se não aprendeu a cozinhar, venceu o medo da cozinha. Uma pedagogia da autonomia, como em Paulo Freire. Não por acaso, Paulo O. ensinava uma cozinha de guerrilha. Não se ensina a escrever, mas se quem escreve não for vietcongue, não saberá dos túneis da guerrilha mais do que os turistas do primeiro mundo. Heyk Pimenta, um dos poetas fundadores da OEP, defendeu, por algum tempo, que mantivéssemos, em torno de nossa oficina, uma cultura de compartilhamento de cadernos com nossos processos artísticos. A explicitação dos bastidores deveria ser a primeira medida de qualquer grupo “artístico” (junto à conversão em grupo de convivência pedagógica) que queira buscar a criação como prática da autonomia. Que quer quem cultua o gênio antipedagógico? Consumir ou viver experiências?

Oficinas precisam engendrar autonomia. Oficineiros e participantes podem, aos poucos, ter as fronteiras apagadas – se não as funções, ao menos a constância de quem as encarna. Isso não se dá imediatamente; mas a tarefa se impõe de maneira imediata. “Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém” (FREIRE, 2010, p. 107). Sócrates (penso naquele do Banquete, que aprendeu com a mediadora Diotima) foi um dos primeiros oficineiros. O espanto e a assunção da própria ignorância são fundamentais. É sobre o solo da falta de ar e da incapacidade de ensinar o outro que pode surgir uma pedagogia da escrita. Trata-se da explicitação de um processo do sistema das artes cujo ocultamento serviu para que determinadas classes se preservassem no poder do modo de produção literário. Os grupos que se sintam “sem uma cena”, na qual atuar, podem procurar seus pares e criá-la. Cultivar a palavra franca sobre seus processos e produtos, organizar debates, convidar outras pessoas para falar de seus trabalhos. O cuidado de si fomentado pela manutenção do coletivo poderá se mostrar valioso até mesmo para artistas ingênuos da arte pela arte. Por aqui, temos gostado da expressão borracharia e lanternagem. Achamos bem acertada.

1  Os nomes foram trocados e são fictícios.

ANDRADE, Drummond. Mundo grande. In: Sentimento do mundo. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 255-257.

BENJAMIN, Walter. Eduard Fuchs, historiador e colecionador. In: O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2012, p. 123-164.

__________. O autor como produtor. In: Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 120-136.

CAMPOS, Haroldo. A educação dos cinco sentidos. São Paulo: Perspectiva, 1985.

FREIRE, Paulo. Pedagogia como prática da Liberdade. São Paulo: Cortez, 1995.

__________. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e terra, 2010.

PLATÃO. O Banquete. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: Ed. UFPA, 2011.

POUND, Ezra. ABC da literatura. São Paulo: Cultrix, 1977.

TRETIAKOV, Sergei. Art in the Revolution and the Revolution in the Art (Aesthetic Consumption and Production). October 118 (Fall 2006) [1923], p. 11-18.

Capa  - Gaya Rachel, Poetas, aquarela.

Gaya Rachel, Free style, aquarela.