I - A aula como obra fragmentada (primeiro esboço)
“Trata-se de uma visão que põe em questão o conceito de obra acabada, isto é, a obra como uma forma definitiva. Estamos sempre diante de uma realidade em mobilidade” (SALLES, 2011, p. 33). A aula como obra fragmentada. Conceber a aula numa perspectiva em que o conceito extrapole a suposta obviedade do conteúdo. Para além do conteúdo a ser trabalhado, privilegiar as relações que se estabelecem a partir do processo de criação que subsidia a aula. Primeira hipótese: há um conceito [ou conceitos] que permeia a elaboração de uma aula. Tal conceito não necessariamente está na aula. A aula pode estar fora da aula. Em outras palavras: a aula pode olhar para além dela mesma para constituir-se como aula. Não há uma noção de espacialidade posta aí, pois não basta sair do espaço físico da sala de aula para olhá-la de fora. Trata-se de torná-la porosa aos sujeitos envolvidos na sua dinâmica, enquanto território-acontecimento. [Um ateliê sem muros]. A aula/obra só se completa com a “entrada” do espectador/aluno. Segunda hipótese: a aula não pertence ao professor, posto que é constituída nas instâncias do encontro. Da mesma forma como entendemos que o artista não é o “dono” da obra – já que é perpassado por uma série de atravessamentos, contaminações e intercessores – o professor não é “dono” da aula, e é no encontro com seus “alunos” que a aula poderá ter um ponto de partida e, a partir dela, não há controle sobre seu andamento. Assim, o foco não seriam os conteúdos narrados. A aula/obra estaria insuflada pela “noção de que o que vemos é como uma projeção de nossas subjetividades, [e] se os ambientes concretos [sala de aula] são formados por relações de forças provenientes de vários corpos é possível apostar, não que a causalidade seria o fundamento do [evento/aula], mas sim na intensidade das forças que vêm de todos” (CESARE, 2015, p. 235). Constrói-se narrativas fragmentadas de percursos em aberto. A aula é passível de diferentes entradas e olhares. Para além do conteúdo, institui um espaço a ser criado e interpretado [por cada um]. Afinal, a obra só existe quando é lida.
II – Criar a aula no cotidiano. Deslocar-se na/da aula
Como criar uma aula? Como colocar a aula na instância da criação? [Escapar da mera descrição de uma estrutura imobilizada – colocá-la sob o ponto de vista dinâmico, sob o prisma do movimento]. A criação requer tempo. Tempo lento, no decorrer de gestos contínuos. [Adentrar o espaço da aula. Criar lacunas no tempo da aula. Engendrar espaços para uma conversa em devir]. Pensar a aula para além do tempo presente, como algo que poderá se prolongar ad infinitum nas relações, ressonâncias e encontros subjetivos com a matéria. Aula que extrapola a temporalidade da própria aula e se prolonga em diferentes interlocuções e aproximações. Como olhar as redes dessas escrituras? Histórias múltiplas do cotidiano. Fragmentos de trajetórias. Alterações de espaços. “Existe uma estranheza do cotidiano que não vem à superfície” (CERTEAU, 2014, p. 159), seria preciso mapear e registrar seus indícios. Nesse conjunto, podemos detectar práticas estranhas ao espaço “geométrico” ou “geográfico” das construções visuais ou teóricas que perfazem a aula. Essas práticas de espaço remetem a uma forma específica de “operações” (modos de fazer). Remetem também a “uma outra espacialidade”. Outros movimentos se insinuam no texto claro da aula planejada e “visível”. Teoria das práticas cotidianas do espaço vivido. Analisar, mapear, perceber os modos como praticamos os espaços. Perceber nossos modos de habitar os espaços. Praticar a sala de aula. Registrar gestos e relatos. [“Habitar é narrativizar” (CERTEAU, 2014, p. 201)]. Anotar os processos. Criar um arquivo particular de referências e interferências do/no cotidiano.
III – Anotar percursos. Registros do processo
A anotação se dá desde o primeiro contato com um lugar, desde a primeira conversa com uma pessoa, durante a construção das proposições e também na sua execução junto a outras pessoas, e depois, também na busca por maneiras de apresentar tais acontecimentos. Anotar, transformar um acontecimento em memória. Visualidade da anotação, espacialidade, intervalos, espaço matérico. Composição de objetos construídos pelo inesperado de partes disjuntivas, o aleatório e, sobretudo, a valorização dos objetos em declínio presentes no cotidiano. [Desnaturalizar o cotidiano da aula, perpassando-a pelo improvável, pelo acaso da criação]. Assim, o cotidiano não poderá mais ser tomado sem a tensão do inesperado, do diferente, do não coincidente. Aqui, a prática de anotar aparece no cruzamento de uma “problemática” em que temos a vida enquanto texto que é “encadeado, prosseguido, sucessivo” e também “superposto, histologia de textos em corte, palimpsesto” e o gesto de “marcar” (BARTHES, 2005, p. 37). Inicia-se aqui um movimento divergente de fragmentação da aula/obra. Trata-se de uma aula que emerge fragmentada em procedimentos, espaços, tempo e registros. Entende-se que, dessa forma, a definição do que seria uma aula pode ser aproximada de um complexo de situações, procedimentos e momentos que já não culminam, correspondem ou cabem necessariamente em uma totalidade sintética – a aula.
Fotografias, objetos, depoimentos, filmes, mapas, trajetos, anotações, escritos, projetos, entrevistas e desenhos passam a compor uma constelação de informações de natureza simultaneamente artística e documental, ou não mais artística e não mais documental, mas simplesmente elementos de proposições [...] diante da insuficiência da palavra obra [aula]. Apreende-se, daí uma possibilidade de ‘obra’ [aula] como complexidade cuja ocorrência se dará plenamente através do conhecimento e da emergência de suas partes (BERNARDES, 2004, p. 201-202).