Cartografando uma intervenção...

O frio nesta região do país sempre foi muito rigoroso, sempre aliado ao minuano que sopra forte e bravio, e, naquele dia em especial, ele resolveu mostrar quem é, pois castigava com muito rigor os que se atreviam a sair às ruas, que precisavam sair às ruas. A região, estamos falando do extremo sul do Rio Grande do Sul, mais especificamente a cidade de Pelotas. Era domingo, o evento – o 33º piquenique cultural – já havia sido desmarcado quatro vezes nos últimos domingos, em virtude da chuva. Mas, desta vez, tudo certo, somente o frio, mas poderíamos ao menos driblar suas investidas mais potentes e resguardarmo-nos de seu abraço nada amigável.

O professor, este que cartografa, há algum tempo tem uma pergunta que o inquieta, irriga seu pensamento com dúvidas. Algum tempo pensava, formulava, tinha ideias, uma, duas, três..., mas nada o acalmava e nunca conseguia ter/produzir/inventar movimentos que o fizesse levantar os olhos e o jogasse adiante em seu questionamento. Mas eis que surge uma proposta que lhe agrada, algo que lhe faz sorrir/pensar na possiblidade de ter pistas sobre seu questionamento. Na cartografia, ter pistas é acompanhar processos, entregar-se a algo que lhe afete e lhe mova a pensar, sentir, ser de um modo singular, eis então que ele resolve se propor a ser um “interventor-pesquisador”, ou, um “pesquisador-interventor”, mas não é isso que é um pesquisador? Um interventor? O que é interventor-pesquisador; pesquisador-interventor? Esta é uma dúvida que não pretendo responder, não é minha vontade. Minha vontade é só cartografar esta intervenção-pesquisa, pesquisa-intervenção.

Hoje, neste dia que talvez fosse o mais frio do ano, tudo está devidamente organizado, os apetrechos, a pergunta pronta na ponta da língua no limiar do pensamento, remexendo, contorcendo-se, querendo ganhar verbo, querendo explodir na boca e se fazer ouvir. Ele se põe/propõe a cartografar uma inquietação que lhe acompanha desde o tempo que, em sala de aula, propunha a seus alunos uma atividade que fazia parte de outra prática maior, que envolve a escrita de cartas. A referida atividade é bem simples, seus estudantes, de um quinto ano do ensino fundamental de uma escola técnica estadual localizada no bairro Fragata, tinham de observar, nas caixas de correio de suas casas, quais tipos de correspondências chegavam num período de trinta dias. Anotar dia a dia o que chegava e se não chegava. Algo simples, mas que comporta uma dúvida muito grande.

Por três anos, as anotações eram sempre as mesmas. Três diferentes turmas, em três diferentes períodos do ano em que esta atividade ocorria, a “pesquisa-atividade” sempre demonstrava a mesma coisa. Só chegavam faturas e boletos bancários. Nenhuma carta, nenhum bilhete de natal, ou feliz aniversário. Nada que indicasse que alguém havia dedicado um tempo a escrever, e querer saber do outro. Nada que demonstrasse que alguém tivesse tido a vontade de falar sobre si... de saber do outro. Então, surge a questão que me move a pensar sobre quem escreve cartas nos dias de hoje, quem se dedica a práticar esse exercício de entrega?

Esse questionamento irrigou forte meu pensamento e me fez pensar em como poderia tentar responder tal inquietação. Esse processo/dúvida acorreu por alguns meses, até que surgiu a ideia de me pôr a rua com uma caixa de madeira, uma quantidade de envelopes, selos, e papel, e me propor a responder tal questão.

A partir de uma ação, iria cartografar uma inquietação. A caixa, dessas bem simples que podemos encontrar em qualquer mercado, feira de legumes e verduras, algo que seria – é – o suporte, a mesa, a bancada onde iria me debruçar e escrever as cartas àqueles que queiram escrever uma a alguém. Os envelopes, os selos e o papel, esses adquiri nos correios. É óbvio, precisaria anunciar isso de algum modo, então um simples cartaz impresso na tal caixa de madeira, ou um cartaz pendurado no corpo onde digo: Escrevo cartas, já anunciaria minha vontade, meu desejo.

A partir dessa proposta de querer escrever cartas, de me dispor a escrever aos estranhos à rua, iria “talvez” descobrir quem hoje escreve cartas. Mas não seria na proposta em si, de sentar e escrever, mas no diálogo com aqueles que iriam se propor a conversar e saber sobre tal intervenção. Esta era minha vontade, dialogar com estranhos na rua. Mas por que não buscar em pesquisas já realizadas, porque não pesquisar na rede – internet, por que não trazer uma bibliografia sobre o assunto? Isso tudo será feito, mas no devido tempo. Creio que esse contato direto com o campo de investigação, com o problema de pesquisa é mais rico, produz mais sentido e promove encontros mais substanciais que à cartografia, ao cartógrafo interessa mais.

Encontros

Nesse domingo frio, no qual me propus a deixar minha caixa de madeira com seu cartaz anunciando o que pretendia fazer, tive o prazer de conhecer pessoas incríveis. Estava eu no 33º piquenique cultural na praça ao lado da rodoviária de Pelotas, junto com tantas outras pessoas que lá vendiam artesanatos, roupas, comidas de diversos sabores, cafés/chás de diversos aromas, e outras tantas que se propunham a alguma atividade cultural ou artística.

Foram quatro horas de expectativa, de ansiedade, de conhecimento e de mais indagações, e nada de respostas. Mas é isto que se propõe esta intervenção, cartografar, seguir as linhas de fuga possíveis. Nesse dia, nessa primeira intervenção, não escrevi nenhuma carta, e o fato de não ter escrito nem ao menos um bilhete, vem ao encontro das descobertas que meus estudantes já haviam feito em suas observações. Poucas são as pessoas que escrevem cartas nos dias de hoje. E nenhuma delas proporcionou um encontro comigo nesse dia em que estava eu lá, disposto a conhecê-la(s).

Mas, em meio a este estar lá, ao correr da tarde, pude ter o prazer de conhecer um professor britânico e sua família que foi ver qual era minha intervenção, e quando viu que era escrita de cartas, logo quis saber sobre o porquê de minha atividade. Conversarmos por um determinado tempo e, nesse período, surgiram falas/comentários sobre o porquê de as pessoas não escreverem cartas nos dias de hoje, inclusive a mudança que ocorreu nos modos de escrita dos e-mails.

A proposta, a qual havia empreendido esforços, ali se concretizava. Não é na escrita efetiva das cartas que as “respostas” as quais busco serão desveladas, mas, sim, na troca, nos encontros, nas possibilidades que surgem a partir desse disparador que agencia outros processos. Do desejo de querer responder uma questão, agenciamentos propuseram uma cartografia, e a cartografia só ocorre quando somos afetados por algo que nos atravesse. Desta forma, o fato de querer saber quem hoje escreve cartas me afetou, a partir de uma proposta de atividade de sala de aula, onde o diagnóstico é sempre o mesmo.

Outros encontros surgiram, mas creio que este foi o mais significativo de ser mencionado: o dessa pessoa que, durante o diálogo, disse que havia se utilizado muito da escrita de cartas para se corresponder com seus parentes. E isso, não há muito tempo, talvez uns dez ou doze anos.



DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. I. São Paulo: Ed.34, 1995.

GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolíticas: cartografias do desejo. 7ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.

ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental, Transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 1989.

PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da. (orgs.). Pistas do método da cartografia. Porto Alegre: Sulina, 2009.

Preparando a caixa.

Caixa de madeira com o cartaz “escrevo cartas”. Arquivo do pesquisador.