As instruções que abrem este arquivo integram o projeto DERIVA-SE, recentemente realizado por mim, com curadoria e interlocução de Júlia Milward,1 na Galeria Ecarta, de Porto Alegre/RS. Sobre uma mesa, o cartaz e 16 blocos destacáveis com o mapa da cidade dividido em retângulos; junto a isso, um painel inicialmente em branco contendo um segundo pedido: DISPONHA SEU MAPA AQUI. Na sala ao lado, outro painel, esse com cerca de 200 fotografias, e cópias das mesmas colocadas em três expositores de cartões-postais, disponíveis para serem manuseadas, escolhidas e levadas pelos visitantes. Tais postais formavam a série Arquivício, a partir da qual todo o projeto se desenrolou: imagens documentais de minhas fascinações pela cidade, material acumulado durante os percursos dos últimos três anos, paisagens de meu comum extraordinário captadas com uma câmera simples de filme 35mm.

Trajetos colados à vida, aos compromissos diários. Registros solitários de exclamações mentais, logo categorizados em palavras-chave que percebi guiarem minha percepção da cidade. Meus próprios pontos turísticos, meus monumentos, meu recorte do visto, o que me deixou rastro. Em contraponto, ou em complemento, uma vontade de ampliar o perímetro do andado, (re)conhecer novos territórios, estabelecer outros deslocamentos. Daí o pedido aos visitantes que marcassem no mapa suas indicações: delas sairiam tentativas para um outro tipo de deriva, que não só remetesse à ação de deixar-se ir, mas também de derivar-se de algo ou de alguém: deriva-ação da memória do outro em minha vivência, possibilidades de experiências inéditas e, portanto, de novas memórias, a fotografia postal como souvenir possível desses (des)encontros. Ambição que incorporou a falha desde sua concepção; ao mesmo tempo em que eu me dispunha a seguir os caminhos oferecidos, não intencionava prestar um fiel serviço aos propositores, o que realizaria seria antes uma atuação impregnada de mim e de minhas obsessões. Me permiti o desvio. Mesmo assim, fazia parte da proposta o desejo de devolver-lhes essa (minha) vista de seus lugares, na forma de novos postais incorporados à mostra. Dois arquivos de imagens mesclados: o meu e o meu por causa do outro. Se o visitante voltaria ou não em busca de sua vista, se a reconheceria ou não em meio a tantas imagens, talvez nem importasse, pois se tratava de assumir o jogo da falta de controle. Talvez, tudo que esse propositor-público conseguisse, ou quisesse, fosse levar consigo a captura de um não lugar jamais visto antes. Isso já estaria bem. Penso na leitura feita por Francesco Careri de La Guide Psychogéographique de Paris, de Guy Debord:

[...] trajetórias no vazio, errâncias mentais entre lembranças e ausências. Entre os bairros flutuantes encontra-se o território do vazio das amnésias urbanas. A unidade da cidade pode ser resultado exclusivamente da conexão de lembranças fragmentárias. A cidade é uma paisagem psíquica construída por meio de buracos, partes inteiras são esquecidas ou intencionalmente suprimidas para se construírem infinitas cidades possíveis no vazio.

[...] O racional e o irracional, o consciente e o inconsciente acham um território de encontro no termo dérive. (CARERI, 2013, p. 92 e 97).

Os pontos a serem seguidos, esses buracos e suas deriva-ações seguiram, seguem acontecendo após o fim da mostra. Poderia dizer que essa minha “performance que acontece no distante espacial e temporal”, como escreveu Júlia Milward no texto de apresentação de DERIVA-SE, é a questão leitmotiv do trabalho, mesmo não sendo a única. Isso porque muita coisa digna de nota acontece nesse caminhar. Nele, é onde está o risco, onde se encontram as pretensões da turista-habitante e da flâneur do impossível, onde há um roçar de acordos e desacordos entre os habitantes dos diferentes territórios e eu, que agora, fora da galeria, me torno também visitante. Uma vez na rua, tudo influi na psique de quem participa da deriva-ação: o desconhecimento de códigos territoriais, a percepção de que o caminhar sem pressa e observador pode gerar desconfianças, a certeza de que, em algumas situações, a câmera se torna dispensável, a simpatia dos que desejam contato. Caminho que se transforma em atenção, em um grande estar presente, em acontecimento invisível, porém pleno de potencial.

Nesses encontros cheios de ruídos, minha autonomia se alimenta da colaboração do outro, em um percurso feito de nós e de conversas, questionamentos, subversões da proposta, dessacralização da obra e da figura do artista. Em alguns casos, inclui depoimentos pessoais e um sentimento de comunidade entre os habitantes de uma mesma cidade reencontrados nos assuntos dos quês e porquês urbanos. A obra final é mais do que imagens, ela extrapola o vestígio material, e isso de certa forma me surpreende, pois, por muito tempo, achei que fosse uma simples série fotográfica. Aos poucos, e através do outro, cheguei mais perto da compreensão do trabalho, e parece natural que seja assim se penso que a pretensão sempre foi a de derivar-se.









1  Júlia Milward (Rio de Janeiro, 1983) é artista visual, com estudos pela Université Paris 8 (FR), mestre em fotografia contemporânea pela École Nationale Superièure de la Photographie (FR) e em Poéticas Contemporâneas pela Universidade de Brasília.

CARERI, Francesco. Walkscapes: o caminhar como prática estética. São Paulo: Editora G. Gili, 2013.

Cartaz integrante do trabalho DERIVA-SE, de Charlene Cabral, disposto na Galeria Ecarta entre 25 de novembro de 2016 e 22 de janeiro de 2017.

Mapa de Porto Alegre dividido em retângulos. Os visitantes eram convidados a escolher um deles, marcá-lo com um ponto a ser visitado por mim e dispô-lo na parede.

Lambe-lambe contendo as palavras-chave de Arquivício, série fotográfica que deu origem à exposição DERIVA-SE e que foi exposta no grande painel de cartões postais.

Sala contendo o painel de postais e os expositores.

Detalhe do painel de postais.