Mas como esperar salvar-nos naquilo que há de mais frágil?
Italo Calvino, Seis propostas para um novo milênio, p. 18.

Nada é suficiente.
Daniel Maclvor, A primeira vista; in on it, p. 75.

1. Incêndio

Quando a biblioteca de seu pai pegou fogo, em 2010, escrituras e leituras de uma vida inteira desapareceram. Foi a bituca do cigarro de um dos assaltantes que provocou o incêndio, disseram os especialistas. Eles até tentaram apagar com uma mangueira, mas fugiram antes de serem apanhados. Deixaram para trás a gaiola e o som velho que gostariam de ter levado. O fogo já tinha subido aos céus, quando os vizinhos se deram conta. “No momento em que vi tudo destruído, quis fotografar”. Foi meio automático, diz Mayra,1 ao olhar a série de onze cartões-postais chamada Penúltimas (2011).

Entre as fotografias de vistas gerais do incêndio, alternam-se registros de emaranhados de restos de livros e páginas soltas queimadas, de detalhes do caminho do fogo nas paredes e nos móveis de madeira. Cada cartão-postal isolado – chamado Penúltima – parece dissolver a gravidade do evento. A ruína da biblioteca do pai de Mayra possui uma beleza constrangedora. “Lembro que depois de um tempo olhei para essas imagens e achei tudo muito bonito, apesar de existir também uma dor enorme: nunca mais poderei entender como meu pai organizava sua biblioteca”.

Essa série de postais é um nó cego da produção de Mayra. Por um lado, o ano de Penúltimas marca tanto o fim das proposições e publicação em pequena tiragem, de Histórias de observatórios,2 como o começo de um conjunto de experiências visuais relacionadas ao papel da escuta, desenvolvidos inicialmente na residência artística Nuvem (2012) e expostos ano passado na Galeria Ibeu, no Rio de Janeiro.3 Por outro lado, Penúltimas parece ser uma espécie de ponto de inflexão de sua produção na medida em que aponta para características vitais de seus trabalhos de maneira singular: a importância do lugar, da literatura, do silêncio.



2. Prospecção sentimental

Para colher chuva no mar:
tente boiar.
O seu corpo é o papel.
(REDIN, 2013a, p.17)

Durante 2008 e 2011, Mayra desenvolve um conjunto de proposições, Histórias de observatórios, em que captura e observa por meio da montagem de superfícies distintas precipitações atmosféricas: a chuva, a neve, o sereno, a maresia. Na coleta da chuva, sua primeira proposição, Mayra ainda não sabia qual corpo ou corpos esse projeto teria. Foi apenas no Observatório de neve, proposto em uma residência na França, que o projeto de reunir um conjunto de observatórios distintos começou a ser desenhado.4 Embora não soubesse a direção que o trabalho tomaria na primeira coleta, Mayra escolheu registrar esse acontecimento por meio de sobreposições de fragmentos descritivos, pequenos poemas, imagens e sons. As superfícies transformaram-se de acordo com as coletas: para a chuva, o papel; para a neve e o sereno, o tule; para a maresia, a placa de vidro.

A criação dos observatórios e os registros múltiplos engendrados por Mayra são exercícios poéticos de desconstrução e reconstrução de coisas que percebemos apenas como um conjunto: a gota de chuva, o floco de neve, a gotícula de orvalho, a partícula d’água que se evapora do mar. Diferentemente do trabalho da artista carioca Brígida Baltar, que, entre 1994 e 2001, se propõe coletar em roupas especiais e com recipientes de vidros distintos, a neblina, o orvalho e a maresia (Projeto Umidades), os observatórios criados por Mayra não parecem travar um diálogo sobre a impossibilidade da ação. Eles são tão efêmeros quanto esses fenômenos naturais.

Daí a criação de exercícios poéticos de apreensão desses acontecimentos. Mayra torna visível o que nos parece invisível – “Ele (o sereno), ainda preso ao filó, logo mais vai se soltar e chegar à terra. Eu não vou ver este movimento.” (REDIN, 2013b, p.128). Seus escritos são anotações de um trabalho de campo sentimental. Eles narram as características dos observatórios, as aventuras das expedições em lugares distintos e, por vezes, longínquos, as condições do céu e da terra, suas sensações, com quem ela estava. O acontecimento toma forma, enfim, mediante a justaposição de imagens, de sons e de escritas. Nos trabalhos posteriores de Mayra, o lugar da palavra invade outras superfícies, ensaia novas formas de relação para além da escrita.



Em Nada (porque o começo da palavra é esperança) (2013), Mayra apropria-se da literatura, do livro como instrumento de criação. Apaga com tinta branca todos os “jotas” da narrativa Nadja de André Breton e ressignifica esta entidade ora mulher ora desejo, por meio do sentido de vazio, do Nada. Já em Você vê que o vermelho não tem mais,5 ainda de 2013, o uso da palavra e do livro reivindica a construção de uma memória ao mesmo tempo social e familiar. Imagens da versão espanhola de O Livro vermelho de Mao Tsé-Tung sem capa nem suas primeiras páginas (arrancadas, por seu pai, para escamotear a vigilância da época da ditadura brasileira) são misturadas a relatos pontuais do pai de Mayra sobre o livro.



3. À escuta

Embora seja possível circunscrever Mayra dentro de uma trama contemporânea de artistas visuais que trabalham com a palavra e são influenciados pela literatura, como as artistas Elida Tessler (sua ex-professora da graduação), Laura Erber e Rosana Ricalde, a meu ver, são nos exercícios em que a palavra torna-se rarefeita, por vezes, ausente, que essas influências agregam uma força poética incontornável para os trabalhos de Mayra. Em Penúltimas, por exemplo, o incêndio da biblioteca, a impossibilidade real de rever os livros, manuscritos de seu pai – professor universitário aposentado que parece sempre ter militado pela educação – transforma-se em possibilidade de escrita, de envio de notícias através de cada cartão-postal da série.

Seus últimos trabalhos, relacionados ao tema da escuta, localizam-se nesse uso da palavra sempre suspensa e ilegível, além de reverberarem na sua dupla formação: Mayra é artista e psicóloga. Em 2012, na residência artística Nuvem, desenvolve uma proposição sobre a escuta: “Procure encostar sua orelha na orelha de outra pessoa. A parte da frente do seu ombro esquerdo encontra a parte da frente do ombro esquerdo de outra pessoa [...]”.6 Dessa proposição, chamada A escuta da escuta, nascem desenhos de traços delicados (piano sobre piano, casa dentro de casa, porta da casa na frente da porta d’outra casa) e ainda objetos, como as duas conchas de “orelhas” coladas uma na outra: A surdez de quem ouve (cantos) (2013).



Mayra cria imagens atreladas literalmente ao sentido de imaginário, se este é entendido como uma categoria que torna presente o que está ausente e que se realiza apenas na linguagem poética. Como seria o encontro dos sons de dois mares, de dois pianos encaixados, de duas flores, de duas casas, de duas orelhas? Ao redor desses encontros, tudo é silêncio. Por isso, A escuta da escuta é uma série sobre intimidade (orelha com orelha, ombro com ombro, pele com pele), sobre uma relação entre corpos, mas também sobre uma voz, uma forma de linguagem, ainda que possível de ser imaginada, sempre ausente. Nunca passível de ser apreendida.





Nesse sentido, a influência da literatura, da escrita e da palavra, em Mayra, parece estar próxima do que Natália Brizuela (2014) define como “uma literatura fora de si”. Em seu pequenino livro, Depois da fotografia, Brizuela analisa a literatura contemporânea partindo da Escola Dinâmica de Escritores, fundada por Mario Bellatin, em 2000, na Cidade do México. Na escola para escritores, a única interdição é não escrever. No decorrer do livro, Brizuela tece considerações mais próximas da relação entre literatura e fotografia. No entanto, o que está em debate, ali, é a dissolução das fronteiras entre artes visuais e literatura, assim como uma tentativa de dissecar novas formas de narrativas, praticadas por artistas visuais.

4. Aposta-se

Ao sair da casa de Mayra, em um dia de domingo ensolarado, reli a primeira proposta de Calvino de sua série de cinco conferências, “Leveza”. Além de dissertar sobre uma série de escritores que escrevem sobre as coisas invisíveis e leves do mundo (a poeira, os átomos, os pássaros, o ar, Mercúrio, etc.), Calvino entrelaça como nas demais conferências a leveza a seu oposto, o peso.

Neste ponto devemos recordar que se a ideia de um mundo constituído de átomos sem peso nos impressiona é porque temos a experiência do peso das coisas; assim como não podemos admirar a leveza da linguagem se não soubermos admirar igualmente a linguagem dotada de peso. (CALVINO, 1990, p.27).

Penúltimas e a série A escuta da escuta alcançam esse lugar, desenhado por Calvino há trinta anos, onde leveza e peso encontram-se.

Mayra Redin foi a artista escolhida pela Arte ConTexto para ocupar a seção Aposta desta edição. O objetivo da seção é escrever sobre artistas cujos trabalhos estejam atrelados à temática de cada edição – nesse caso, a relação poética existente com os espaços que nos rodeiam. Assim, é interessante retomar a etimologia da palavra aposta no intuito de suprimir seu sentido expresso frequentemente na ideia de uma jovem artista em que se prevê um futuro promissor. Aposta, etimologicamente, significa “soma ou coisa que se põe em jogo”; “coisas postas”. No caso dos trabalhos de Mayra, o que está em jogo, o que é exposto, são somas de coisas do mundo que jamais podem ser totalizadas ou completamente agarradas.

1  Mayra Redin nasceu em 1982, em Campinas (São Paulo). Atualmente, mora no Rio de Janeiro e faz doutorado em Artes, na Universidade Estadual (UERJ). Em 2014, ao lado de Manoel Ricardo de Lima, foi selecionada para o Rumos Itaú Cultural, com o projeto de residência Como rasurar a paisagem. No mesmo ano, outro projeto em parceria com os artistas Jonas Arrabal e Eduardo Montelli é selecionado para o Rede da Funarte (Transição e queda: propostas para construção de meios).

2  Em meados de 2013, Mayra publica o conjunto de proposições completo, chamado Histórias de observatórios, pela Confraria do Vento.

3  A exposição Nada, porque é começo da palavra esperança, com curadoria de Bernardo Mosqueira, esteve montada de 16 de outubro a 7 de novembro de 2014.

4  Além da publicação do livro, o projeto dos observatórios está disponível no sítio eletrônico: http://www.mayramartinsredin.com.br/index.html . Acesso em: 23 mar. 2015.

5  Assistência do poeta e professor da UNIRIO, Manoel Ricardo de Lima.

6  Disponível em: goo.gl/uYm1ZA. Acesso em: 20 mar. 2015.

BRIZUELA, Natália. Depois da fotografia: uma literatura fora de si. Tradução Carlos Nougué. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.

CALVINO, Italo. Seis propostas para um novo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

REDIN, Mayra Martins. Observatório de chuva. In:______. Histórias de observatórios. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, out. 2013a, p. 15-55. Prefácio de Daniela Mattos.

______. Observatório de sereno. In: ______. Histórias de observatórios. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, out. 2013b, p. 91-131. Prefácio de Daniela Mattos.

1  Mayra Martins Redin, Penúltimas 3, 2010, cartão postal, 10 x 15 cm. Tiragem de 100.

2  Mayra Martins Redin, Penúltimas 10, 2010, cartão postal, 10 x 15 cm. Tiragem de 100.

3  Mayra Martins Redin, Nada (porque é o começo da palavra esperança), 2013, 14,5 x 21 cm. Intervenção sobre livro: “Nadja” de André Breton, edição brasileira de 2007, Editora Cosac e Naify.

4  Mayra Martins Redin, Nada (porque é o começo da palavra esperança), 2013, 14,5 x 21 cm. Intervenção sobre livro: “Nadja” de André Breton, edição brasileira de 2007, Editora Cosac e Naify.

5  Mayra Martins Redin, A escuta da escuta (a surdez de quem ouve: cantos), 2013, objeto: conchas fixadas com cola, 14 x 15 x 8 cm. Serialização: 1/6.

6  Mayra Martins Redin, A escuta da escuta (flores), 2014, instalação, flores secas, dimensões variadas.

7  Mayra Martins Redin, A escuta da escuta (flores), 2014, instalação, flores secas, dimensões variadas.