A paisagem, seja essa qual for – uma metrópole urbana ou um pastoril bucólico –, aciona maneiras de nos conectarmos com o espaço. Ela nos desperta. Nos coloca em uma situação de contraste entre homem e entorno. Não se trata aqui de uma paisagem pictórica emoldurada à nossa frente, distante e intocável, mas do próprio chão no qual pisamos – do canteiro verde que corta a rodovia de asfalto; do prédio puído abandonado que se avizinha ao frescor da arquitetura que foi recém levantada; ou mesmo dos túneis ermos e subterrâneos por onde passam o trem do metrô. Se observarmos atentamente, qualquer pequeno pedaço de território pode ser um local fértil para análise. Ele traz consigo suas particularidades sociais e dele podemos extrair sentidos subliminares sobre as dinâmicas humanas, sobre as conjunturas espaciais, podemos avaliar o contato com o natural, observar relações de troca e de intimidade ou, até mesmo, apreender as hierarquias de poder que estão ali demarcadas.

Teresa Siewerdt percebe esses espaços. É o interesse por essas questões que embala a concepção criativa da artista catarinense residente em São Paulo. Ela busca áreas exclusas, cantos esquecidos ou carentes que demandam algum tipo de atenção. Assim, em derivas pela cidade, no perambular vago e flutuante que se alarga pelo tecido urbano sem muito destino certo, debruça seu olhar sobre zonas que sinalizam alguma fragilidade, mas que despertam uma vibração familiar. Ao construir uma relação de proximidade e de pertencimento com um determinado sítio, Teresa se dedica a um estudo empírico e contingente e busca alternativas para acionar e potencializar espaços sociais.

Na cidade de São Paulo existem hoje centenas de espaços vazios, abandonados, em estado de ruína, onde não vive ninguém e nada acontece, espaços que parecem abrigar uma outra temporalidade reversa à dinâmica do resto da cidade. São espaços fascinantes que chamam a atenção e instigam nossa imaginação. No projeto Jardim Parasita nos apropriamos de um edifício já existente, cuja construção foi interrompida no final da década de 1970, para ali hospedar um jardim. (SIEWERDT, 2016a)

Em seu trabalho Jardim Parasita (2014), constrói a ilusão de um jardim imaginário que toma conta de um velho edifício abandonado em meio ao crescimento frenético dos quarteirões paulistas comprometidos com o lucro imobiliário. O jardim fictício de Teresa, ilustrado em materiais publicitários, entregues a transeuntes que por ali caminham, representa quase que um oásis de vegetação instaurado dentre o concreto cinza que predomina pelas ruas da cidade. Ele dá vida a uma realidade imaginária, um tanto quanto onírica, onde o verde – símbolo de florescimento e de fertilidade – invade os escombros de um prédio fantasma, negligenciado pela conjuntura urbana, e dá sentido de ocupação aos espaços arquitetônicos falidos e inutilizados.

O cultivo do jardim como prática simbólica associada ao caráter da transmutação foi também explorado em outros momentos por artistas como Adam Purple, ativista nova-iorquino, ou pelo grupo inglês APG (Artist Placement Group, fundado por Barbara Steveni e seu marido John Latham), ambos atuantes na década de 1970. No caso do grupo APG, que defendia a função artística como um dispositivo de recursos humanos, os artistas se preocupavam com os sintomas provocados pela exploração das grandes organizações industriais e buscavam alternativas, partindo da premissa de que, para qualquer melhoria, o que deve ser modificado, em primeira instância, é o próprio olhar. Na incumbência de solucionar uma área contaminada com grandes pilhas de resíduos da mineração, espalhadas pelas montanhas escocesas, o grupo britânico se propôs a transformar aquela paisagem. Alastrou pelo terreno sinalizadores visuais e deu um novo sentido àquele local, batizando-o como um espaço de arte. A partir de então, Artist Placement Group reverte uma zona de descarte, desabitada pela comunidade, para um local de interesse cultural e de visitação artística. Adam Purple também partiu de um cenário de abandono, local de dejetos e entulhos acumulados pela vizinhança, para construir um jardim colaborativo. Foi aí que nasceu seu projeto Jardim do Éden, que substituiu a zona árida do bairro por uma área de quatro terrenos com mais de 40 árvores plantadas, entre frutíferas e nogueiras, elaborado no próprio complexo comunitário onde habitava, em Lower East Side, Manhattan. A noção de cultivo coletivo substituiria, metafórica e literalmente, o ambiente de despejo e sucateamento. A ação de repotencializar um espaço de deserção atravessa o tecido social como um vetor simbólico de transfiguração e ainda ativa o espírito de coabitação entre moradores, apurando o local de convívio e a visualidade daquele lugar.



A prática de ressignificação de espaços e de laços de convivência como proposição relacional voltada a experimentações de sociabilidade vem ganhando cada vez mais força nos dias de hoje. Mas apesar de representar um sintoma global dentro da expressão histórica artística, essas propostas em geral apresentam um caráter local, interessado nas particularidades relativas à comunidade. É com esse cuidado, voltado às demandas latentes de recantos omitidos e às urgências dos sujeitos que por ali circundam, que Teresa Siewerdt permite que seus projetos tomem forma.

Dentre suas proposições, a artista configura um jardim humano, vivo e inusitado dentro da linha de ônibus Terminal Santo Amaro (São Paulo, 2015), fazendo uso da ação performática como condutora para a intervenção no ambiente urbano (Jardim de Passagem1). A cada parada feita pelo ônibus, uma pessoa sobe segurando um vaso de planta. Quase como uma cena surrealista ou como um episódio situacionista no plano contemporâneo, o ônibus começa a se entulhar de folhas, flores e arranjos, carregados por aparentes desconhecidos. “Uma espécie de jardim vai se formando à medida que cada participante embarca no ônibus. Todos descerão na mesma estação, provocando um efeito de esvaziamento; [...] fim da microutopia que foi criada” (SIEWERDT, 2016a).

Nesse caso, e em alguns outros, o verde de Teresa emerge no seco, no cinza, no tumulto da correria metropolitana. Ao mesmo tempo que ele floresce, ele também resseca, some, deixa o rastro da lembrança como um desejo que se foi. Além disso, essa brevidade da ação, que marca seu trabalho, desafia a ideia de jardim como um elemento fixo. Aqui, o cultivo não se enraíza. Ele se torna erradio, fugaz. Ao aparecer e desaparecer como uma rajada de vento, inverte a experiência habitual de passear através de um jardim. “É ele quem surge e percorre pela vida das pessoas” (SIEWERDT, 2016b). Assim como os ciclos e as estações, esse jardim terá prazo de expiração; sua sobrevivência dificilmente será perene.

Ao fazer uso da performance como meio, intensifica-se a partir da própria linguagem o sentido de efemeridade. Vibra, na ação, a ideia de uma permanência instável, própria do mundo natural, que é ameaçada pela fragilidade do tempo. Essas polaridades intermitentes circundam pela poética de Teresa e nos comunicam a sensação de um trabalho em processo – um trabalho incerto, sem previsão de término. Assim como a natureza, o trabalho também é vivo.

Em sua obra mais recente, Jardim sem Governo (2016), a artista estabelece um ponto da cidade onde qualquer pessoa possa deixar uma planta que esteja carente de cuidados. Selecionando para isso um beco no bairro da Barra Funda, onde convivem catadores, funcionários de empresas, estudantes, motoristas, pessoas em situação de rua, o projeto parte da vontade de recuperação dessas plantas em situação emergencial; desses seres que beiram o descarte. O socorro prestado por Teresa, talvez esteja mais próximo à ideia de dar atenção às matérias invisíveis do que propriamente a pretensão da salvação. Não se trata da redenção, mas de um olhar de apoio, de um exercício de convivência e mutualidade que pode recorrer em algum grau de libertação. Aí, o jardim novamente paira como sugestão de um processo de metamorfose. Não necessariamente voltado à metamorfose da coisa em si, mas relativo à mutação do olhar. Percebe-se, nas práticas artísticas de Teresa Siewerdt, essa manifestação que aposta na alternação das percepções. A construção simbólica de terrenos de cultivo se familiarizam aos procedimentos das situações humanas. Se assim quisermos, ela ativa a consideração sobre o questionamento de dinâmicas e funcionamentos sociais.

Hoje demos um novo nome ao jardim do beco da rua Lopes Chaves. Pela possibilidade de ocupar, cuidar, cultivar sem controlar, sem organizar, sem governar. Apenas resistindo/existindo junto dos que ali habitam na clandestinidade. Estamos em processo ainda… e sempre. (SIEWERDT, 2016a).

Essa noção de jardinagem, que traz consigo a marca cíclica do crescimento e da transformação, bem como da ruína e do fenecimento, evoca o antagonismo que caracteriza as utopias e distopias. Ao mesmo tempo que a poética de Teresa traz um vigor otimista, já que prevê o ressurgimento de operações que elevam o sentido do amparo e da correspondência, resta aí também um tom de realismo, que nos faz lembrar das conjunturas práticas e factuais que assombram os idealismos e os devaneios. Seu jardim como metáfora atua como a ilustração de uma vontade; como uma possibilidade de escape do que buscamos combater – ou do que cansamos de combater – no dia após dia. Ao mesmo tempo, funciona como um vetor de valorização do sujeito e da criação de territorialidades. Para a artista, se pessoas e plantas são marginalizadas, o cuidado com o jardim pode ser uma alternativa simbólica de resgate. Mas a “utopia de um jardim, lida constantemente com a possibilidade de sua falência, justamente porque plantas são coisas vivas, sujeitas à decadência e à morte” (SIEWERDT, 2016a).

Com tudo isso, pode-se dizer que Teresa se debruça sobre proposições artísticas que servem como engrenagem para pensarmos o espaço social e o próprio potencial humano a partir das relações que podemos estabelecer com a paisagem que nos rodeia. Interessada pela fenomenologia dessa paisagem, busca pensá-la como um mecanismo para a construção (ou reconstrução) de elos – espaciais, políticos e culturais. Se atualmente nos encontramos imersos em conjunturas sociais que se esforçam em enaltecer o indivíduo, apagando a relevância coletiva, vale, mais hoje do que nunca, pensarmos em artifícios que suavizem os contrastes hierárquicos e instalem a consciência da assistência e da cooperação. Partindo de espaços determinados, porém incertos, encontrados através de um flanar errante, abrem-se canais de comunicação entre o campo simbólico e o domínio trivial cotidiano. É possível que Teresa amenize essas fronteiras, cultivando a perspectiva da mudança no ambiente coletivo.

1  Ação artística anteriormente apresentada nas cidades de Joenville (SC) e Lansing (EUA), em 2013

SIEWERDT(a), Teresa. Teresa Siewerdt. Disponível em: http://teresasiewerdt.tumblr.com acesso em Ago. 2016.

SIEWERDT(b), Teresa. Entrevista com a artista, concedida por skype a Paola Fabres e Talitha Motter, em 19 de junho de 2016.

Capa  - Teresa Siewerdt, Jardim sem governo, 2016

À esquerda, Adam Purple, Jardim do Eden, 1975, e à direita, Grupo APG, Five Sisters, 1975

Teresa Siewerdt, à esquerda, Jardim Parasita, 2014, e à direita, Jardim de Passagem, 2013