"O mundo existe a fim de terminar num livro”, disse Stéphane Mallarmé, poeta do século XIX que em sua produção “refletia sobre a materialidade do ato de escrever” e pensava o livro “como uma forma tridimensional, com profundidade, espessura, solidez” e que, portanto “sente a necessidade de compor espaço” (PANEK, 2006, p.104).
As experimentações advindas da poesia concreta e neoconcreta instauram uma nova forma de relação entre o objeto livro, o autor e o leitor, explorando a tridimensionalidade na palavra e o poema como forma visual e abrindo as portas para o surgimento de novos movimentos e novas formas de se fazer e entender o campo artístico, como o Fanzine1 e a Arte Postal, "atuações que se inscrevem no extenso campo dos escritos de artistas ou, melhor, na tomada ativa da palavra pelo artista na formulação dos destinos da arte” (FERREIRA, 2010, p. 5-6).
Na década de 1960 um extenso número de publicações surgiu na produção de muitos artistas, o grupo Fluxus talvez tenha sido um dos que produziram com maior intensidade, criando um circuito através de envio pelo correio, distribuição gratuita entre amigos e o mais singular de todos, as Lojas Fluxus que funcionavam como um circuito paralelo para venda e circulação desses trabalhos de arte. Por muito tempo o Fluxus funcionou como um coletivo de artistas de diversos países que se reuniam ao redor de um novo jeito de pensar e viver a arte, intercambiando através da sua rede, trabalhos e propostas. (MELIN & DIETRICH, 2010, p.3).
Sim, afinal tudo pode acabar em livro: ideias, projetos, imagens, texturas, e por que não som, cheiro, sabor? Os livros de artista, por sua vez, instauram um universo de possibilidades para experimentação dos deslimites do que pode caber ou constituir um livro. Para além de seus aspectos construtivos, os livros de artista e as publicações de artista múltiplas, por seu caráter abrangente, vêm também instaurando novas formas de recepção, fruição, compreensão e circulação do trabalho artístico.
[...] indo além dos circuitos institucionais, tais publicações podem ser abordadas como espécies de estratégias expansivas, as quais os artistas empregam em suas poéticas. A noção de unicidade, valoração e maleabilidade da obra são atualizadas por produções de tiragens múltiplas, possibilitando, ao trabalho artístico, uma porosidade em relação ao seu caráter institucional e geográfico. (ZÓZIMO, 2011, p.13).
Este tipo de trabalho pode ser compreendido também "enquanto espaço expositivo", por se tratar de um "dispositivo capaz de prolongar a efemeridade do tempo de uma exposição” (MELIN, 2010, p.7), pela possibilidade do espectador poder levar o trabalho para casa, experimentá-lo mais de uma vez, tocá-lo, cheirá-lo.
É difícil definir os limites do que pode ser considerado livro de artista, por este possuir a forte característica do hibridismo de linguagens e infinitas possibilidades de procedimentos, apresentação e formatos. Diante de tantas classificações secundárias, interessa-me, por ora, enfatizar as diferenças entre duas destas categorias: únicos e múltiplos.
Os livros de artista únicos podem ser compreendidos como aqueles realizados em um único exemplar, sem edições. Os múltiplos se configuram por livros e/ou publicações em grandes ou pequenas tiragens e que possuem a importante característica de disseminação da obra de arte, sobre a qual a nadifúndio baseia suas produções e seus desdobramentos.
O nada desses nadifúndios existe e se escreve com letra minúscula 2
A leitura, além de hábito constante em casa, sempre foi para mim uma grande paixão, que acabou impulsionando, por sua vez, uma paixão também por escrever. Uma vez cursando Artes Visuais na Universidade Federal de Pelotas, logo percebi que a palavra estava presente de muitas formas na realização de meus trabalhos e, ao longo destes anos de formação, procurei entender como se comportavam as relações entre as áreas da Literatura e das Artes Visuais em minha produção artística.
Em 2013 foi criado, na Universidade Federal de Pelotas, o grupo de Pesquisa [Lugares-Livro]: dimensões poéticas e materiais, coordenado pela professora Helene Sacco, que pretendia discutir o livro de artista e suas possibilidades, do qual comecei a participar. Impulsionada pelas discussões e pelas leituras proporcionadas pelo grupo de pesquisa, e decidida a voltar minha produção para os livros de artista, criei, em julho do mesmo ano, a editora nadifúndio, uma editora independente cujas principais propostas eram e continuam sendo fazer livros em forma de arte e arte em forma de livros, assim como também investigar diferentes formas de se pensar o formato livro.
Desde então venho, por meio da editora, dedicando-me a produzir e a pesquisar o largo campo dos livros de artista múltiplos, além de pensar estas produções enquanto dispositivos relacionais, já que quase sempre estas se ramificam em proposições e atividades coletivas. A escolha por pesquisar o livro de artista múltiplo deu-se em primeiro lugar por parecer importante voltar os olhos com mais atenção para este tipo de produção, que tem como característica também a disseminação da obra de arte, tornando-a acessível a um público mais vasto.
Decidir transformar em livro algum trabalho ou projeto artístico significa esbarrar em algumas questões, perguntas que norteiam as experimentações realizadas na construção de cada nova publicação: como criar formatos interessantes e condizentes esteticamente com a proposta temática ou teórica do trabalho? Como cada livro poderá criar uma experiência única com o leitor? Como criar formas viáveis de produção em larga escala, levando em consideração o fato de a produção ser inteiramente artesanal, desde a impressão até a finalização de cada detalhe (sem terceirização em gráficas)? Como manter o desafio de conseguir tiragens em torno de 100 exemplares em cada edição?
Quando abarcamos a publicação de terceiros, alargamos esta experiência, ao compartilhar com outros artistas a experiência da publicação, que envolve todas as questões já mencionadas, relacionadas aos procedimentos artísticos e ao pensamento em arte em suas mais diversas formas.
Por enquanto, a editora é formada por mim e uma impressora multifuncional, mas é difícil não falar dela na 1ª pessoa do plural, já que quando eu digo “somos” eu estou considerando todas as pessoas que se envolvem de alguma forma nas produções e ações. Por acreditar no coletivo, sinto a necessidade cada vez maior de fazer com que a editora não seja apenas uma fábrica de livros, mas que seja capaz de criar espaços de convivência e trocas.
A editora nadifúndio em ações participativas
Em menos de um ano de existência, a editora participou de diversos eventos, tal como feiras de livro, de artes gráficas e publicações independentes, "uma prática cada vez mais recorrente aqui no Brasil, onde editoras independentes e coletivos se reúnem, se encontram e trocam experiências e produções recentes, tal como se os livros fossem gomos de mexerica que se espalhassem, viroticamente, por todos os cantos e campos” (DERDYK, 2013, p. 9). Nessas ocasiões, tivemos a oportunidade de apresentar o livro de artista a um público que nunca havia estado em contato com esta linguagem artística e pudemos perceber nossas produções cada vez mais como dispositivos capazes de criar relações e refletir sobre o papel do artista, tal como apresenta Bourriaud:
A prática do artista, seu comportamento enquanto produtor, determina a relação que será estabelecida com sua obra: em outros termos, o que ele produz, em primeiro lugar, são relações entre as pessoas e o mundo por intermédio dos objetos estéticos. (BOURRIAUD, 2009, p. 59).
Quando estamos em processo de criação de uma publicação, é possível enxergá-la se desdobrando em outras ideias, como quando colocamos um talo de hortelã na água e vemos dele crescerem raízes. Apresentamos a seguir duas destas ações-ramificações.
Publicações instantâneas
Estas ações consistem em disponibilizar uma máquina de escrever e uma impressora multifuncional para que o público possa criar livros instantâneos. Numa folha tamanho A4, cortada e com dobraduras, obtemos um folheto A7 que é copiado em tiragens de 10 exemplares, os quais os participantes podem levar consigo, deixando o original como doação para a editora.
A primeira proposta de publicações instantâneas ocorreu em parceria com o artista Gustavo Reginato na Exposição-Feira [Lugares-Livro], realizada em Pelotas, em setembro de 2013. A segunda ocorreu no espaço TRIPLEX Arte Contemporânea, também na cidade de Pelotas, em julho de 2014, produzindo livros instantâneos a partir das histórias compartilhadas na proposição A condição de espera/estado de presença: ações, conversações e narrativas dos artistas Priscila Costa Oliveira e Dieizon Oliveira Rodrigues.
Por se tratarem de ações instantâneas, falta tempo para experimentar diferentes suportes e materiais, mas esta redução dos mesmos, por sua vez, também agrega à experiência, já que exige uma nova forma de olhar e perceber as impressoras caseiras e as folhas de papel ofício tamanho A4, tão presentes no nosso dia a dia. Um dos exemplos disso é a crescente curiosidade dos participantes em scannear partes do corpo como rostos e mãos, explorando o potencial das imagens instantâneas geradas a partir dessa experiência.
Biografia de espécies em invenção: Uma proposta de publicação coletiva
Convidamos, em setembro de 2014, por meio de um cartaz publicado em nossa fanpage,3 interessados em criar uma publicação coletiva envolvendo ficção, palavra, invenção ou desenho de espécies vegetais existentes ou não. A proposta era que cada participante criasse um trabalho e explorasse formas de multiplicá-lo. Em grupo, decidimos que a publicação consistiria em reunirmos as diferentes produções numa caixa de papelão nas medidas 0,20 x 0,20 cm com tiragem de 12 exemplares, a fim de que todos pudessem levar para casa um exemplar.
Essa ação, realizada ao decorrer de três manhãs, ficou marcada pelo processo de investigação fortemente presente. Com mais tempo para pensar os trabalhos e experimentar formatos, pudemos compartilhar dúvidas e testar materiais, procurando responder em conjunto àquelas mesmas perguntas apresentadas no início do texto. Outra questão importante surgida dessa vivência foi a de como transformar trabalhos e ideias originalmente criados como trabalhos únicos em trabalhos multiplicáveis? De que forma multiplicá-los? Foi interessante perceber como cada um dos participantes resolveu estas questões, mas acredito que as perguntas, mais que as respostas, acabaram por despertar o prazer pela investigação das possibilidades em livros de artista e trabalhos de arte múltiplos, e para nós, enquanto editora, este despertar é o que há de mais significativo, e cada vez mais fica evidente o quanto o trabalho artístico não está nos objetos livros, mas nestes instantes de criação e partilha.
Levando em consideração sempre a questão da recepção, percebemos o livro de artista múltiplo, especialmente aquele que contém algum tipo de palavra ou texto escrito, como potencializador de uma maior aproximação entre o público, o trabalho artístico e o artista. Devido a necessidade de uma leitura mais intimista, por requisitar uma dilatação do tempo de experiência com o trabalho e, para além de todas essas questões, pelo alargamento do acesso à arte em tempos nos quais a cada dia há mais galerias e espaços expositivos e poucas pessoas fora do âmbito artístico perambulando por eles.
Temos encontrado no livro de artista múltiplo mais do que uma ferramenta artística de invenção, reinvenção e intervenção, mas um espaço pulsante, potencializador de encontros e de novas formas de se compreender as relações entre educação, vida e arte.