Corria o ano de 2007. Havia no muro da Universidade Federal do Ceará, na Av. Treze de Maio, um graffiti. Por se tratar de um trabalho muito colorido, bem produzido e situado em uma avenida com grande fluxo de pessoas diariamente, ele se tornou bastante conhecido e muito apreciado por diversas pessoas na cidade de Fortaleza, que assim como eu, o veem como uma referência no trabalho do coletivo Acidum.

Percebi a relevância desse trabalho também durante a realização desta pesquisa, onde acompanhei rodas de conversa, participei de uma oficina de stencil e outros eventos na casa do coletivo. Nessas ocasiões, ouvi não apenas os artistas do Acidum, mas também outras pessoas que estavam entre o público, contribuindo com perguntas e comentários, muitas vezes destacando esse graffiti, especificamente.

A Avenida 13 de Maio, em 2007, já fazia parte dos meus percursos diários pela cidade, como acontece ainda hoje. Portanto eu sempre passava em frente a esse mural, fosse de ônibus ou andando a pé, e ele sempre despertava diferentes sensações e sentimentos a cada vez que eu o observava novamente.


O Acidum surgiu em 2006, idealizado por Robézio Marqs a partir de ações e graffitis que ele denominava inicialmente como MetaAções, em seguida renomeado Acidum Project e finalmente Acidum e novamente Acidum Project. A primeira formação era composta por Rafael Limaverde, Leo BDSS, Robézio Marqs, Jabson Rodrigues e Henrique Viudez. Atualmente, o Acidum é formado pelo casal Robézio Marqs e Tereza Dequinta.

Aos poucos fui percebendo que a Abordagem Enativa, conceito de Barros (2010) que parte da Enação de Varela (1994), seria uma boa forma de aproximação com o coletivo, pois os métodos mais tradicionais de entrevista com questionários, perguntas e respostas bem objetivas e análises quantitativas não eram suficientes e com eles parecia impossível alcançar as sutilezas, as entrelinhas e o não verbal que se manifestariam e que poderia dizer muito mais do Acidum.

Decidi então assumir uma perspectiva Enativa durante a pesquisa. O conceito da Enação apresentado por Barros (2010) implica totalmente o pesquisador e o pesquisado, nele não há pretensão de neutralidade por parte do pesquisador, mas a sua abertura para a experiência e para as possibilidades de ser afetado.

Francisco Varela (1994) apud Barros (2010) defende a cognição como a invenção de um mundo, opondo-se à noção representativa onde existe uma realidade pré-definida a ser revelada. A autora afirma que Enatuar diz respeito ao conhecer como algo que coemerge a partir da experiência do sujeito com o meio e não está, portanto, no âmbito da descoberta, mas da invenção.

Enação é, portanto, a produção de conhecimento como modo de produção de si, de forma contínua. Na Entrevista Enativa, o pesquisador está envolvido tanto com as suas experiências, com a sua subjetividade, como também com o contexto, com a experiência e a subjetividade do entrevistado. Ele conhece a partir da intensidade dos encontros e não através da coleta de informações.

O entrevistador Enativo conecta-se ao entrevistado permitindo que os atravessamentos lhe afetem, que a sua escuta não seja pré-moldada pelos pontos de vista, se deixando tocar por aquilo que lhe chega ainda inexplicável, intrigante, que precisa de um tempo maior de espera, mas que reinventa suas marcas, suas memórias, aquilo que faz emergir algo comum entre a experiência do entrevistador e do entrevistado.

Entrevistei os integrantes atuais do coletivo, ou seja, Robézio Marqs e Tereza Dequinta; Rafael Limaverde, que fez parte do começo do Acidum e que atualmente segue como artista urbano, mas não participa de nenhum coletivo. Também entrevistei Jared Domício1 , outro artista cearense que já colaborou em alguns trabalhos do coletivo.

Antes de entrar em contato com o coletivo pessoalmente e de começar a “Enatuar” com eles, a pesquisa já havia tido início de outros modos, como através do contato com as imagens por eles criadas e que estão espalhadas pela cidade, através da busca de seus trabalhos e vídeos na internet, através da conversa com pessoas próximas a eles, etc.

Enatuar com o Acidum significava perceber a pesquisa como uma criação coletiva, onde não existe um princípio causador e, assim, permite-se abandonar os pontos de vista pré-concebidos possibilitando-se a emergência de algo a partir da experiência comum.

Através da pesquisa, fui me aprofundando em alguns trabalhos do Acidum como a intervenção Preda, Prego, Otário (2009), que já vinha sendo observada durante os meus percursos pela cidade. Ele se localiza no muro do IFCE (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia) em frente à Praça da Gentilândia. Esse trabalho ainda não foi apagado, ou seja, ele permanece na cidade por cinco anos, embora agora ele esteja bastante deteriorado, parcialmente coberto por algumas pichações e alterações na parede.

Essa intervenção foi realizada no bairro Benfica durante o SAUB – Semana de Arte Urbana do Benfica com o grupo Meio Fio2. Nela o coletivo problematiza o uso do crack. Sobre o processo de criação de Preda, Prego, Otário, Robézio Marqs afirma:

E a gente fez esse trabalho, né, tem, é... Preda, Prego, Otário. Preda errado mesmo, como a galera fala às vezes pra comprar o crack. E ali tinha a galera que consumia ali perto e ali, a gente tinha feito o trabalho e depois a gente foi filmar outro dia, a gente não tinha uma imagem geral do trabalho, e a gente filmando e esse cara entrou na frente da câmera e começou a traduzir o trabalho, assim e a gente diz que ele fez uma “análise curatorial” (risos) melhor do que muita gente, né, que tinha feito que não tinha entendido muito o trampo, assim. (Transcrição da fala de Robézio Marqs em Roda de Conversa3 em 04.07.2013).

Paralelamente à realização do graffiti foi produzido um vídeo4 ao qual Robézio se refere nessa fala. Sendo assim, temos como ‘resultado’ da intervenção tanto um graffiti como uma produção audiovisual, cada um com as especificidades da sua linguagem e mantendo uma relação híbrida.

Em relação à associação do graffiti com a produção de imagens digitais, noto que a experiência diante de cada uma dessas imagens é bem diferente. A imagem fotográfica é na maioria das vezes editada, o que torna as cores mais nítidas e visualmente mais atraentes. O graffiti na sua versão digitalizada pode se manter sempre jovem, sempre belo, ele pode ser eterno, enquanto o graffiti na parede vai envelhecendo, quando não é logo apagado, e a experiência com ele é modificada pela ação do tempo, ele pode ser coberto total ou parcialmente, ou apagado, etc.

No vídeo vemos a execução do graffiti pelo Acidum, assim como a realização de outras intervenções de outros artistas que participavam da SAUB, não apenas produzindo graffiti, pois havia também um baterista tocando durante a intervenção.

O hibridismo de linguagens presente nessa intervenção que não era apenas do Acidum, mas também de outros artistas, ou não artistas, considerando que outras pessoas que aparecem no vídeo tem a sua parcela de participação, aproxima esse trabalho inclusive da performance, que entendo aqui a partir da concepção de Glusberg (2012), tanto pelo seu caráter híbrido como por criar algo que pode mobilizar afetos e olhares nos transeuntes que circulavam naquele espaço na ocasião.

Não se tratava apenas de deixar uma marca na parede, mas também de comunicar um ato. Havia toda uma movimentação nesse dia, que incluía fotógrafos, pesquisadores, artistas, um músico e todas as pessoas que porventura transitassem naquele espaço.

No vídeo surge ainda um elemento inédito em relação ao graffiti: um sujeito que vai ao encontro do coletivo no dia seguinte à realização da intervenção, quando Robézio e Tereza voltaram ao local com uma câmera. Esse rapaz chegou até o Acidum inesperadamente, falou de si e começou a fazer uma análise da imagem produzida. Ele falou também sobre o uso do crack e da relação que ele percebia entre os efeitos da droga e a imagem do graffiti.

O coletivo considerou a participação desse sujeito bastante potente, por isso, ele acabou fazendo parte do trabalho final do vídeo após a edição. Penso que o Acidum realiza nessa intervenção aproximações com a Abordagem Enativa, pois torna-se criação também o que emerge nesse encontro da pessoa que passa com os criadores, a proposição de coautoria e coengendramento.

O rapaz torna-se mais um ator dentro da intervenção audiovisual. Um sujeito desconhecido pelo coletivo, que surge inesperadamente e desperta a curiosidade deles a tal ponto que altera a própria criação do vídeo, pois a participação dele não havia sido planejada. Essa foi a análise que ele fez:

Preda, prego, preda, prego, preda, lá no final tem otário! Aí lá em cima vem o diabo, ó, no cachimbo! Aí vem a primeira paulada ó, que o cara fica logo assim... Não, eu digo assim porque eu já fumei, aí o cara fica logo assim, com os óio arregalado, fica doidinho da cabeça. Aí a outra cabeça ali já é o cara triste, já morto... Ali já é o diabo, aí vai saindo por ali a alma dele ó. (Fala extraída do vídeo: Acidum - Meio fio - Preda, Prego, Otário).


Ele analisa a imagem trazendo também a sua experiência com a substância, as sensações e medos que ela lhe despertam. Como a adrenalina, quando ele diz “os óio arregalado”, a tristeza, a morte e a imagem do diabo que levaria embora a alma do usuário de crack. Ele interpreta os três rostos que aparecem na imagem como três estágios que ele percebe em relação ao efeito da droga: O desejo dilacerante, a tristeza e finalmente o diabo, que ao levar consigo a alma do sujeito o deixaria perdido, vazio, provavelmente em busca de outra “paulada”, como ele mesmo denominou.

Franco (2011) também faz uma análise dessa intervenção, que consta no livro publicado pelo coletivo intitulado “Entregue às Moscas”. Ele observa que o Acidum teve bastante sensibilidade ao trazer esse personagem das ruas para a obra, através do vídeo. Ele afirma ainda que o coletivo possui um perfil “romântico”:

Vendo a opinião de um humilde morador das ruas de Fortaleza, que provavelmente passou pela experiência tratada pela obra “Preda, Prego, Otário”, encontramos a sensibilidade de um grupo de artistas de perfil romântico do século XXI. Aberto para as sensações e sentimentos que a cidade oferece, tratando dos paraísos artificiais ou pesadelos que as drogas legam. O artista acertou no alvo, sensibilizou aquele que vive na realidade o aspecto representado na obra. (FRANCO, 2011, p. 84).

Franco (2011) afirma que o Acidum conseguiu sensibilizar o espectador, justamente aquele que é tema da obra, o usuário de crack. Embora ele utilize o termo representar, que vai por um caminho diferente da análise que aqui faço, onde prefiro pensar em “inventar”, pois considero que a intervenção Preda, Prego, Otário não se trata de uma representação de algum aspecto da realidade, no caso o crack, mas da invenção de modos de se olhar para esse aspecto. Onde inclusive o rapaz que assume que já fez uso do crack, passa a compor a obra. É nesse sentido que compreendo essa intervenção. O modo como o rapaz que aparece no vídeo analisa a imagem cria uma narrativa e traz outra perspectiva de olhar para a mesma. Ele cria elementos que podem alterar os modos de se perceber a intervenção. Trazendo o conceito de afecções em Deleuze (2002), penso como esse sujeito modificou a experiência com a obra, ao compor o vídeo gravado pelo coletivo, ele afetou a obra ao ser afetado por ela.

Esse modo de criar e de expandir a obra, aproximando o espectador, provocando afecções, se trata de algo que o filósofo francês Jacques Rancière (2005) denomina de “Partilha do Sensível”, ou seja, de um modo como a arte pode reconfigurar espaços, tempos, atividades, a participação de pessoas, etc.

É nessa capacidade de provocar alterações no sensível que se percebe a potência da arte, que cria Ficções, conceito de Rancière (2010), ou seja, que modifica a ordem das coisas, como se percebe em Preda, Prego, Otário, onde a rua no momento da intervenção deixa de ser apenas uma rua, mas se torna um palco para um baterista e para a performance de alguns artistas que pintam uma parede, ou uma tela em potencial. Os transeuntes tornam-se espectadores e de um humilde desconhecido floresce a potência de um crítico de arte.

Ficções não tratam do ato de criar algo que se oponha à realidade, mas da criação de outros modos de olhar para o que se naturalizou como dado, através de recortes que põem em relação aquilo que no mundo real não se relacionava, que alteram a percepção do sensível e o modo como este produz afetos.

Analisando a intervenção Preda, Prego, Otário, percebo que a arte pode produzir Ficções que reconfiguram as relações das pessoas com lugares, tempos e tipos de atividades. A intervenção Preda, Prego, Otário (2009) apresenta uma Partilha do Sensível, como em Rancière (2005) onde se afirma a potência da arte enquanto desencadeadora de pensamentos que podem balançar noções de mundo fixas, ou em outras palavras, pode mobilizar os sujeitos ao afetá-los.

1  Artista, curador e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Ceará, da turma de 2013, contribuiu na escrita do livro “Entregue às Moscas” (2011) e no projeto “Babélicos” (2013) ambos do coletivo Acidum. Também atuou de modo informal, contribuindo com ideias junto ao coletivo. Enquanto curador de arte, realizou em julho de 2014 a curadoria da exposição “Corpo Caboclo” na Galeria Multiarte, em Fortaleza. Em abril de 2014, expôs com mais 15 artistas na 1ª Bienal do Barro, em Caruaru, no estado do Ceará.

2  Grupo de Pesquisa Meio Fio é vinculado ao curso de Artes Visuais do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFCE).

3  Transcrição da fala de Robézio Marqs, na IX Roda de Conversa da Pesquisa In(ter)venções Audiovisuais das Juventudes em Fortaleza e Porto Alegre, amparada pelo Grupo de Pesquisa da Relação da Infância, Juventude e Mídia – GRIM, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação na Universidade Federal do Ceará – UFC, que aconteceu em julho de 2013.

4  https://www.youtube.com/watch?v=6qmw9RY8JBs. Acesso em: 2 maio 2014.

BARROS, Letícia Maria Renault de Um estudo sobre a noção de experiência no campo da cognição: a abordagem enativa. Orientador: Eduardo Henrique Passos Pereira. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de Psicologia, Rio de Janeiro, 2010, 178f.

DELEUZE, Gilles.  Espinosa. Filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.

FRANCO, Sérgio.   A Crítica de Arte que Vem das Ruas. In: MARQUES, Robézio de Oliveira. (Org.). Entregue às Moscas. Fortaleza, 2011.

GLUSBERG, Jorge.   A Arte da Performance. São Paulo: Perspectiva, 2013.

RANCIÈRE, Jacques.   A Partilha do Sensível: estética e política. São Paulo: EXO experimental – Ed. 34, 2005.

______.  O Espectador Emancipado. Editora: WMF Martins Fontes, 2010.

1  Acidum, Graffiti realizado no muro da Universidade Federal do Ceará (UFC), 2007, técnica mista, 505 x 714 cm. Imagem cedida por Robézio Marqs.

2  Acidum, Pedra Prego Otário, 2009, técnica mista, 133,4 x 176,4cm. Imagem cedida por Robézio Marqs.