É voz corrente, e descontente, que não há critica de arte no Brasil. É também recorrente a acusação oferecida pelos descontentes de que não existem mais espaços para a sistematização da crítica de arte no país, como outrora se encontrava nos grandes jornais e revistas. No entanto, desde que a experiência da arte migrou de um campo de proposições artísticas específicas (realizadas sobre os suportes tradicionais) para uma prática desdobrada (ou desestetizada), em que convergem linguagens e diálogos com outras esferas do conhecimento (no Brasil, por volta dos anos 1970), os meios de comunicação, inclusive eletrônicos (como atualmente essa bem vinda revista), participam com destaque na disseminação da arte e na sua consolidação pública com programas, textos e imagens.
Por outro lado, tão corrente quanto essas constatações, temos a explicação dos especialistas de que a arte mudou e a crítica de arte tornou-se ineficaz em seu modelo. Tratar-se-ia, portanto, de uma debilidade do gênero frente a uma arte plural onde a única regra universal é não submeter-se, não restringir-se poeticamente a nenhuma regra.
Pois bem, há ainda entre os descontentes com esse cenário e inconformados com a situação (globalizada, já sabemos) aqueles que acreditam na validade e na necessidade de uma retomada da atividade crítica judicativa, destinada a orientar o grande público para incentivá-lo a investir em suas próprias avaliações. E há também quem, considerando as imbricações entre os meios de comunicação e a indústria cultural, esteio para a cultura de consumo, aponte a curadoria assinada como o novo lugar da crítica: espaço de apelo público para reflexão compartilhada visualmente, presencialmente. Afinal, uma “boa” exposição pode nos fazer sentir as idéias que contém e estimular outras tantas de construção intersubjetiva. Mas será isso assim tão evidente?
Algum distanciamento dos fatos, alguma decantação dos seus efeitos e uma rápida retrospectiva dos acontecimentos na cena artística contemporânea talvez nos ajudem a compreender essas idéias que circulam e fertilizam reflexões. Assim, vejamos.
Entre as décadas de 1980 e 1990, num sentido supostamente oposto à desestetização das práticas artísticas conceituais, o recrudescimento de estéticas tradicionais, em especial a pintura, foi progressivamente englobando práticas expressivas outrora confinadas à cena underground, como é caso dos grafitti e outras intervenções urbanas. Desse modo, atendia às demandas de um mercado igualmente ampliado, porém distintivo.
Nos anos 1980, as extravagâncias de um renovado mercado de arte, amplamente exploradas pela mídia, no seio de uma ”cultura de consumo”1, foram incrementadas pela emergente atuação yuppie, símbolo do liberalismo econômico dos governos Tatcher e Reagan2. Nesse mesmo decênio o Brasil se viu às voltas com o incremento editorial para publicações sobre arte, principalmente revistas de grande tiragem, e o surgimento de novos (ou renovados) espaços de promoção artística, tais como salões de arte, galerias e espaços culturais. Fatores importantes para o surgimento de novas coleções privadas e acervos corporativos.
No Brasil, em meados da década de 1990, o poder público começou a revisar suas políticas de fomento através das leis de incentivo cultural. O florescimento quase explosivo do marketing cultural, explorando as novas estruturas mediáticas e de informação, motivava investigações e experimentos no desenvolvimento de projetos culturais que extrapolavam os tradicionais equipamentos culturais. Foi também um momento de inauguração e afirmação de muitos museus para a arte contemporânea. No entanto era, sobretudo, fora dos museus e instituições culturais que a promoção da arte contemporânea mostrava-se um filão ideal, por assim dizer, para que as empresas se comunicassem com públicos específicos e preferenciais.
Projetos artísticos começavam a pipocar em múltiplos lugares nas cidades brasileiras, amparados por patrocínios corporativos que permitiam que a arte ocupasse ambientes imprevisíveis e, sob condições ditas inovadoras, buscassem a aproximação com o público. No mais das vezes, essas iniciativas democratizantes visavam a agregar valor cultural tanto aos patrocinadores quanto aos espaços ocupados pelas exposições, qualificando-os simbolicamente.
De bancos a cafeterias, passando por escolas e shopping centers, vários lugares foram, a partir de então, habilitados para a exibição artística sem que isso significasse a recusa ou o desprezo às instâncias museológicas convencionais e, menos ainda, de seu status legitmador no sistema das artes. Muito embora, quando questionados sobre a não especificidade e exclusividade desses espaços para a exposição de arte, seus gestores invocavam as experiências dos anos 1960 e os movimentos da neovanguarda que propunham a integração da arte à vida cotidiana, sob estratégias de desconstrução do espaço museológico sacralizado, que superam a idéia do “cubo branco” neutral.
Não há como negar que essa prática (ainda em curso) aumentou o rol de espaços para arte. Mas, para manter a liderança, as instituições buscaram atualizar-se, ao mesmo tempo em que os curadores independentes e produtores culturais interagiam também nesses novos espaços alternativos ao museu, articulando sua institucionalização e promovendo a manutenção de um sistema que se organiza em função do capital e dos circuitos de consumo socialmente distintivo.
Do ponto de vista comercial, e nalguns casos inclusive do colecionismo, os novos (e os nem tão novos) mecenas, valendo-se do marketing cultural direto ou via leis de isenção fiscal, também souberam associar seus interesses promocionais às demandas por mais espaços de exibição e as lacunas deixadas pelos equipamentos públicos, estes sempre em crise financeira e operando com parcos recursos. Tudo devidamente registrado e publicado pela grande imprensa. Nesta, proporcionais à demanda, não são poucos os editoriais de cultura que dedicam espaço e jornalistas para apresentar exposições e eventos de arte, entrevistar artistas, curadores, colecionadores e outros protagonistas, no afã de promoção da arte.
Advém daí, textos que nem de longe lembram os primórdios da crítica de arte e os julgamentos de Diderot, nos quais, estabelecidos os parâmetros, procedia-se a apresentação judicativa das obras. No entanto, é preciso considerar que, ao contrário do que muitos esperavam, a suspensão endêmica da crítica de arte de caráter judicativo não significou o descrédito na autonomia da arte e seu métier, nem mesmo quando se tornou evidente, pela programação de muitos museus, a associação de cultura e mercado. Nos meandros da capitalização da arte contemporânea o prestígio das instituições museais manteve o peso considerável de suas tradições. E muitos destes ainda puderam incrementar suas programações e acervos valendo-se dessa associação ideologicamente programática.
Para muitos artistas e também críticos-curadores, vários espaços institucionais foram ativados e tornados visíveis (justa) juntamente com sua inevitável absorção pelo mercado, interessado em grandes platéias. Nesse objetivo final contavam ambos com estratégias comunicacionais, em especial aquelas empreendidas pelos meios de comunicação de massa.
Visibilidades
Se no período moderno a cultura se estabelece na esfera pública com a consolidação de aparelhos culturais geridos pelo Estado, tais como bibliotecas e museus, a partir dos quais se centralizava sua normatização, modelos e cânones, é também nesse período que se introduz a imprensa de massa e a indústria como partícipes das definições culturais na esfera pública.
A dinamização da informação cultural própria da distribuição industrial, junto a um mercado de bens simbólicos estimulou a autonomia da produção cultural. No campo das artes visuais isso representou transformações nas práticas artísticas e expositivas, culminando, grosso modo, no que hoje podemos chamar de práticas curatoriais e de mediação. Noutras palavras, projetos de trabalho que visam à aparição sócio-cultural, numa esfera pública, atualmente redimensionada pelos meios eletrônicos e os avanços tecnológicos para a comunicação.
Aparentemente opostos em função de seus meios e fins, a produção cultural (industrial) para consumo massivo de um lado e a produção artística (artesanal/conceitual) para o consumo exclusivo de outro, transitam no mesmo território e são difusoras de cultura. Para tanto, precisam dirigir-se a públicos segmentados. Quando nesse intuito se aproximam em métodos e fins muitos senões podem ser apontados. A começar pelo antagonismo entre autonomia e submissão da produção artística aos preceitos econômicos e de mercado; entre a suposta autonomia e isenção da atividade crítica e as mediações-regulações políticas, econômicas, de marketing e consumo.
Dirigindo-se ao campo artístico, teorias críticas apontam para os riscos de mercantilização da arte pela indústria cultural, encontro que promove desde a banalização e pasteurização até o kitsch cultivado, vide Adorno e Horkheimer. Por outro lado, e ainda na Escola de Frankfurt, se nos aliarmos a Benjamin na expectativa otimista de democratização do acesso à arte, promovida pelos meios técnicos de reprodução, nos deparamos com o paradoxo de seus efeitos, estabelecido já em sua nascente moderna3.
De fato, a atividade irradiadora de bens simbólicos da indústria cultural instala o paradoxo da utopia moderna4 (o ideal de democratização) com suas formas de acesso aos bens culturais universais. Isso porque, sendo o consumo massivo também o objetivo da indústria cultural, por mais erudito que seja o produto, sua difusão massiva o expõe a uma espécie de livre assimilação (ou tradução). Alguns dirão re-significação e pluralismo semântico. Assim, a grande oferta que parece estimular a liberdade individual é, antes, a modelização de subjetividades induzidas5. Ou seja: produz liberdade programada. Como tal, fica o fruidor (consumidor) eximido do desenvolvimento de pensamento crítico, liberado da apreensão de um sentido comum e social construído. Enfim, veremos mitigado o efeito e o desejo de participação na esfera pública, premissas da democracia moderna6, agora já substituídos pela exortação de uma performatividade espontânea e individual.
No campo artístico, apesar do desejo de autonomia, moderno e emancipador, a extensão de critérios estéticos fixados por artistas e críticos foi diminuída, consideravelmente, pelas determinações, também modernas, de um mercado expansionista atuando sobre a produção artística e submetendo o juízo estético a demandas alheias ao campo da arte. O que faz com que, hoje, principalmente para sua promoção e difusão, a arte dependa, em grande medida, de fatores extra-artísticos.
Nas artes visuais a mercantilização do mundo só não extingue completamente a “autonomia” do campo artístico porque este se subordina as leis globais do capitalismo, estabelecendo laços sempre renovados entre a indústria cultural e o sistema das artes. Ambos partícipes da complexidade pluralista e polissêmica das sociedades contemporâneas.
Podemos encontrar exemplo recente disso quando nos anos 80 se fortaleceu o chamado mercado de arte internacional7. A operação desse mercado internacional, seguindo a lógica comercial das grandes galerias dos Estados Unidos e da Europa, valeu-se da legitimação das instituições culturais, do marketing e da publicidade para mostrar ao mundo o que era a arte do momento, gerando o chamado boom internacional da pintura “neo-expressionista”.
Por fim, a derrocada da esfera pública burguesa que transferiu suas responsabilidades políticas ao capital e ao Estado, também pulverizou a função social da arte e da cultura. Isso, como afirma Hal Foster8, “reduziu o papel da cultura a uma forma de mediatização entre os interesses públicos e privados e expandiu-a como uma forma de consumo e de controle, cujo último efeito público, hoje em dia, é a arte vista, sobretudo, como diversão ou espetáculo” (1996, p.21). Nesse contexto, apostar na crítica de arte serviria para quê?
Exposições.
Seja em museus, galerias, bienais e até mesmo nos interstícios interinstitucionais, seja através das iniciativas particulares e independentes de atuação crescente, como seria a efetividade da atividade crítica no acúmulo dos encargos de uma curadoria? Ambas, crítica e curadoria são atividades autorais que, engendradas à visibilidade da produção artística a que se dedicam, se propõem a reflexões diferentes em métodos e meios. Seria possível (ou demasiado) dizer que, nesse caso, estariam elas sobrepostas em seus pontos de partida: a exposição de obras para a efetiva visibilidade da arte e eficiente assimilação social?
A estetização e a espetacularização, promovidas pelos meios de comunicação influem na nossa maneira de perceber as coisas. Alteram nossa disponibilidade para a experiência estética e, por conseqüência, alteram os modos de fruição artística. Sobre ambas incidem tanto as mediações informacionais dos meios de comunicação, quanto as mediações educativas dos agentes contratados para acompanhar exposições. Sejam estes os críticos ou os curadores, seja o crítico-curador. De qualquer forma, a mediação social que cumprem é um encargo disciplinar, integrador e reconfortante na ampliação de platéias sensíveis/sensibilizadas para a arte e seu sistema contemporâneo.
Indispensáveis intermediários entre o produtor e o consumidor, entre o artista e os outros, numa cultura de consumo os mediadores nominais atuam lá onde a indústria cultural e a produção artística juntas, precisam encontrar/ conquistar o público para dar sustentação e engajamento (material e simbólico) aos movimentos do chamado campo artístico.
Thierry De Duve9, em passagem recente por Porto Alegre, manifestou seu desejo de que os suplementos culturais dos grandes jornais estendessem seu método de avaliação de cinema e teatro – aquele de cotação por estrelinhas – também às apresentações das exposições de artes visuais. Para ele, isso já seria um grande passo para a retomada de crítica de arte. Estenderia sua relevância para fora dos circuitos acadêmicos e estimularia o juízo crítico das pessoas. Afinal, a notória segmentação da sociedade tem também públicos e opiniões segmentadas (tanto quanto a arte), às quais a evolução tecnológica dos meios de comunicação de massa tem se especializado em reconhecer e explorar.
Para uma introdução às questões que envolvem as multiplas formas de institucionalização da arte e da crítica, importa frisar que a ação dos medias ( seja um jornal, seja uma exposição) vem sempre orientada por grupos de pertencimento (político, institucional, religioso, econômico, artístico, etc.) que, no jogo das aparições públicas, se tornam líderes de opinião em nichos sociais específicos e servem para ativar e ou reforçar as opiniões dos públicos. No entanto é própria segmentação do público e suas configurações identitárias não estáveis, nem estáticas, demonstra a existência de estruturas móveis de poder, transversais ao chamado poder da mídia.
Nessa urdidura dinâmica tramam-se estratégias narrativas afirmativas que encaminham veracidade às versões dos fatos, da realidade, da verdade, enfim. Também encaminham veracidade às versões, as interpretações oferecidas pelos catálogos de exposição, pelos jornais e periódicos, pelos sites e blogs. Assim, o acontecimento (artístico ou não), que chega ao público pela reportagem do jornal ou outro veículo de comunicação é valorizado enquanto verdade, proporcionalmente a importância atribuída à mídia em cada sociedade (ou as redes sociais que nela e com ela, se consolidam).
Quando as informações (de qualquer natureza) veiculadas pela mídia/ mediação atendem as demandas e expectativas dos grupos aos quais se dirigem (ainda que não exclusivamente), segundo os códigos de cada um, são acatadas, coletivamente, como sendo a realidade dos fatos. E a decisão de noticiar algo é, em si, um ato político e de julgamento.
Obviamente que isso não implica (tampouco exclui) a circulação da crítica de arte analítica, sustentada em expertise. Mas faz circular, sim, e com enorme sistemática e convicção, julgamentos e avaliações que podem ser culturalmente obtusos, por vezes até risíveis. Por isso, apresentações, declarações e informações que à primeira vista parecem informações protocolares podem demonstrar aspectos sutis das motivações, transações e tramitações envolvidas nos acontecimentos. Tanto por parte de seus produtores/artistas, de seus agentes/promotores, quanto de seus receptores/públicos. Portanto, encontrar as possibilidades de conexão pedagógico-ideológica entre essas estruturas transversais é um dos aspectos de maior atenção quando se procura uma mediação pública para a arte.
É aí, então, que encontramos o lugar contemporâneo da crítica de arte nas curadorias assinadas. Trata-se de proposição de experiência estética por demanda (e assimilação) ética. Razão pela qual aos mediadores no campo artístico, em especial aos críticos-curadores, não caberá uma narrativa fechada, conclusiva. Apenas aquela suficiente para fazer emergir o processo instaurador de sensibilidades diferentes, e ao mesmo tempo coletivizáveis. Decisões crítico-curatoriais que façam suas idéias circular e não obstruam a experimentação estética pública e particular.
Acredito que é a mediação, sob todas as formas que conhecemos hoje, meio e fim na produção cultural. Ferramenta de institucionalização sistêmica, ela pode, ainda assim, suscitar iniciativas de resistência ideológica e questionamentos ao contexto histórico, cultural e social. Contextos, estes, donde se origina, e do qual participam o historiador, o artista, o crítico, o curador, o galerista, o colecionador, o público, o jornalista. Todos eles ao mesmo tempo produtores e consumidores culturais. Todos estes, agentes escrevendo e atuando publicamente numa espécie de mediação partilhada, que faz jus ao “esforço infindável do homem em encontrar sentido no mundo, em torno e dentro dele mesmo” (DARTON, 1995, p.172) . Esforço corroborado, acredito eu, pela crítica e pela curadoria (inclusive quando “não existem”) pois são modos de mediação convergentes, capazes de por outras idéias em circulação.