“A desconstrução jamais se cansaria de contar aos realistas aquela história contada por Nietzsche, de como o mundo real tornou-se fábula” (John Caputo)
Em 2015 completará 40 anos desde que Letícia Parente realizou suas primeiras videoperformances. Desde 1975, com uma portapack Sony, a artista começava a filmar-se em ações que seriam o mote de um trabalho calcado na relação do corpo no espaço construído por meio da tecnologia. A imagem analógica de uma mulher, empenhada em seus gestos simbólicos, nos mostra alguém que reconstruiu sua fisicalidade por meio de um aparato até então novo, em favor de uma poética do corpo virtual – palavra que ainda não cabia na gramática dos anos de 1970. Desde Preparação I, em que irrompe na tela em uma encenação marcada, ao mirar-se no espelho de um banheiro e colar esparadrapos sobre os olhos e redesenhar o contorno dos mesmos com um lápis, em uma repetição do gesto com a boca, Letícia Parente se apropria do vídeo para ressignificar-se. A própria artista afirma a corporeidade de seu trabalho, quando relata o “corpo da mulher todo escrito com as suas fissuras, o olhar, os braços […] o contorno do corpo todo feito da própria função do corpo – não no sentido só da função física, mas de uma função social-humana”.1 Seu trabalho surge paralelo à efervescência do movimento feminista nos Estados Unidos e na Europa, em especial na discussão sobre o predomínio de homens ocupando o espaço expositivo de museus e galerias. Muitas mulheres a partir daí iriam utilizar a performance para questionar essa posição, inscrevendo seus corpos na ficcionalidade da obra.
O vídeo, enquanto linguagem artística, contribuiu para tal. Surge enquanto aparato capaz de “captar e poder ver ao mesmo tempo as imagens em movimento, ocorrendo de forma inédita na experiência artística a simultaneidade e o imediatismo de tempo entre produção e recepção da mensagem” (MELLO, 2008, p.73). No campo da filosofia, pensadores como Marshall McLuhan esboçavam teorias que se confirmariam proféticas nos dias atuais. Se os meios tecnológicos são extensões do corpo humano, o artista que se apropria do vídeo pode inscrever-se enquanto personagem no mundo, borrando as fronteiras entre realidade e ficção de sua própria vida. Ao posicionar-se sobre sua atividade videográfica, Letícia Parente dizia fazer uma arqueologia com relação ao tempo e ao espaço, em que o ponto referencial do espaço seria a própria autora como elemento ora passivo, ora ativo da ação.2
O tempo presente será o elemento norteador para a artista, pois a performance era transmitida ao vivo, na tela do monitor, enquanto realizada. Não havia a possibilidade de montagem, o que distinguia as linguagens do vídeo e do cinema. O vídeo esteve, para as artes, em uma posição marginal – ao menos nos anos 1970. E ao tentar construir narrativas apropriando-se do recurso de entrada instantânea da imagem em movimento, deixava para o corpo a função original e central: ocupar a cena; fazer-se presente em cena. Nesse caso, o aparato técnico tornava-se elemento secundário, nas palavras de Letícia Parente:
A tecnologia, representada pelo recurso sempre presente é, na maioria das vezes, um personagem visível ou invisível. Pode ser obstáculo nos cortes, ponte de união entre o perto e o longe e denotedor das distâncias, para vencê-las ou ampliá-las, entre os diversos níveis de consciência interna do personagem.3
Mesmo entre obstáculos, o vídeo enquanto interface provoca uma fissura na obra. Nas palavras da pesquisadora e crítica Christine Mello (2008, p.29), “o vídeo se coloca em contato com estratégias discursivas que não necessariamente dizem respeito à sua, produzindo, com isso, uma descontinuidade, um desvio, uma falha, uma ruptura sígnica”.
No caso de Letícia Parente, essa fissura é tida pelo próprio corpo filmado. Um organismo com suas dobras e que se dispõe ao jogo da imagem-movimento. Um “corpóreo tátil”, como frisou. Um corpo disposto pelo tempo da ação, “[um] tempo [que] resta agora “ampliado” pelo poder da máquina, como o aumento fotográfico de um detalhe. A tecnologia potencializa ao máximo, por todas as vias de acesso e por todas as vozes que acrescentam a capacidade de penetrar na ocorrência”.4
O que pode um corpo?
Marca Registrada (1975), segundo trabalho de Letícia Parente em vídeo, tornou-se o mais emblemático para toda uma geração. Não apenas por meio do choque e da dor, característico da body art, mas pela simbologia no auge da ditadura militar, em um momento marcado pela repressão da expressão artística e de imprensa. A câmera mantem-se fixa enquanto mostra a artista costurando a sola do pé com agulha e linha. Dez minutos se passam e o espectador vê escrito “Made in Brasil”. O corpo enquanto suporte para a escritura na própria pele. A câmera, como afirmou Letícia, ora invisível, ora visível, espreita um gesto seco, sem interrupções, que marca o corpo da mulher em sua identidade. O pertencer a uma Nação, ela mesma encarregada – naquele momento histórico – de exilar e sumir com corpos que contestavam o regime político.
Onde se situaria o corpo de uma mulher nessa cultura repressiva? Em que local posicioná-lo? Como introduzir a participação da mulher numa sociedade marcada pela violência iminente? O papel da arte, naquele momento, serviu de passagem para esse outro lugar. Se não havia a possibilidade do diálogo no cotidiano, a tomada do poder – enquanto discurso e linguagem – dava-se por meio da ficção. Como em uma guerrilha, o corpo se inscreve na realidade por meio da narrativa fílmica – local de liberdade. A artista afirma:
A fase do corpo que testemunha situações culturais, políticas e sociais culminou em um trabalho de vídeo que de todos foi o que conseguiu a sigla mais forte (…). Nesse trabalho eu costuro na sola do pé com uma agulha e uma linha preta as palavras Made in Brasil na pele. É uma agonia! Dá muita aflição, porque a agulha entra, fere o meu pé – só podia ser o meu próprio.5
A inscrição enquanto Sujeito no mundo, no auge da repressão, sintetiza a fala quando reitera: “Só podia ser o meu próprio”. Apenas o próprio corpo daria conta de narrar as falhas, dobras e fissuras da História naquele momento. Apenas o registro em vídeo, linguagem precária na era pré-digitalização da imagem, daria conta de responder a um ato preciso e icônico. Só a ficção consegue recontar a real história de uma sociedade.
Para Lucia Santaella, Doutora em Teoria Literária pela PUC-SP, o corpo na pós-modernidade acompanha a crise do sujeito inaugurada com o advento do avanço tecnológico. É na dobra, conceito deleuziano que combate a noção de individualidade na tradição, que se faz esse novo corpo-sujeito em expansão, tal qual as dobras da sola do pé de Letícia Parente em Marca Registrada. “[O conceito de] dobra também nos permite entender a crise que afeta diversos movimentos, desde o feminismo até certos nacionalismos, 'que enfrentam os limites, as contradições, os perigos de fazer política com a identidade (…) identidades que devem ser recuperadas, reencontradas, desveladas' ” (SANTAELLA, 2004, p. 22). Para Letícia Parente, a marca registrada se assemelha “ao ‘ferro’ de posse do animal”.6 Corpo tangenciado pela historicidade.
Fábula do Real
Como escreve Santaella (2004, p.25), “aquilo que caracteriza a máquina nos fez questionar aquilo que caracteriza o humano: a matéria de que somos feitos”. Nesse paradigma, ao analisar a produção videográfica de Letícia Parente nos anos de 1970 e 1980, observa-se que ela deixa questões em aberto enquanto autora – e se hoje a palavra autoria se tornou sinônimo de heresia no campo das artes, é nesse contexto que a artista se coloca frente à câmera. Em Chamada, de 1978, numa clara metalinguagem, ela filma sobreposições de vozes em um gravador ao mesmo tempo em que um outro aparato – a filmadora – é testemunha. Insere-se inúmeras vezes dentro de suportes técnicos, reduplicando seu nome em polifonia. O início da performance se dá quando a artista entra no apartamento, encontra um gravador e um telefone na mesa e grava sua própria voz: “Alô, é a Letícia?”. Essa pergunta se multiplica. É interrompida. Volta a fita e aciona o telefone. Sai do prédio, vai até a rua, liga para o telefone de seu apartamento. Volta para o apartamento, sobe escadas, escuta o telefone tocar e tira do gancho: “Alô, é a Letícia?”, a voz do gravador soa. “Sim, é a Letícia”, responde ela mesma à sua gravação.
Ao gerar três situações distintas de performances, cria uma trama em que se torna objeto central da ficção. O corpo ali se desloca fisicamente do cenário original e recupera a imaterialidade da voz. “Sim, é a Letícia” seria mais que o significado de um nome. Desde Preparação I (1975), passando por Marca Registrada (1975), In (1975), Preparação II (1976), até a evolução de seu trabalho em Chamada, vê-se uma artista com claras posições políticas. Tinha consciência que seu trabalho em vídeo apesar de imaterial – muitos registros se perderam – servia como rota de fuga e escoamento de uma realidade nebulosa. Já em Preparação II não há concessões. A câmera filma a aplicação de 4 injeções em uma pessoa, cada uma acompanhada de uma ficha técnica de controle sanitário. Nas fichas, os dizeres: Vacinas: anticolonialismo cultural – antiracismo – anti mistificação política – anti mistificação da arte.7
Personagem de si mesma em sua obra, reconstrói-se na ficção paradoxalmente contra as mistificações do sistema da arte que ela demonstrava entender bem. Sobre esse jogo, afirmou:
Quanto aos críticos, sempre tive dificuldade de aproximação. Sempre me mantive à distância e com horror a usar as oportunidades para “furar” os muros. (…) Mas na realidade não há como neutralizar os efeitos multiplicadores senão desmistificando a ação por um efeito de conscientização maior do próprio trabalho e uma independentização do mercado como meio de sobrevivência econômica.8
Ironicamente, alguns de seus vídeos se perderam. Como se a perda do registro da obra ajudasse ainda mais a mistificar a imagem do artista. Torna raro, escasso e fugidio. Confere, na contramão de seus conceitos e intenções, aura.
A afirmação de seu nome próprio em Chamada (1978) coloca os espectadores frente a uma charada. Quem fala? Quem escuta? O vídeo, enquanto suporte, tornou possível a ruptura, pelos artistas, da mediação com a instituição. Em contrapartida, as fitas em VHS concediam plena liberdade de atuação. E se a “não-realidade e a irrealidade precedem e tornam a “realidade” possível, tornando ao mesmo tempo possível e impossível o que quer que ouse se passar por realidade” (CAPUTO, 2002, p. 29) – no caso a feitura da obra, sua exposição no mundo dado como real – a artista lança na polifonia de vozes a reafirmação de si, enquanto tal, e revela-se e esconde-se, respectivamente, frente a esse mesmo sistema ao denunciá-lo por meio do jogo, frente à tela do monitor.
É necessário contar a história a partir do ponto em que “o mundo verdadeiro tornou-se fábula” (CAPUTO, 2002, p.30). Em um de seus últimos vídeos, Carimbo (1980), em gravação de Roberto Sandoval, Letícia Parente é endereçada, feito carimbo, para a Bienal. A foto de seu rosto estampado envolve o pacote com o vídeo do momento em que é “carimbada”, para o mesmo destino. Já na Bienal, enquanto espaço físico e institucional, é mostrado o rosto de Letícia Parente no exato momento em que remetente e destinatário se confundem. Trama de interconexões em que persona e mulher deixarão sua marca. Uma artista em busca das respostas por vir, em busca de constante ressignificação com seu tempo histórico. Como ela mesma afirmou: “estava preocupada com que as coisas tivessem vários questionamentos, porque estava interessada nas respostas”.9
Imagens cedidas gentilmente por André Parente.