Introdução

A história de Kaspar Hauser já foi tema de poesias, romances, peças e filmes. Os relatos contam que em 1828 chegou à Praça Unschlittplatz, em Nuremberg, um rapaz de aproximadamente 17 anos que não sabia se comunicar, não sabia andar e não tinha conhecimento de outras pessoas. Kaspar viveu apenas cinco anos em contato com a civilização. Em 1833, foi assassinado de maneira misteriosa, tão enigmática como a sua chegada à cidade alemã. Antes de Nuremberg, ele vivia em um porão onde não tinha contato com ninguém. Após sua chegada à cidade, Kaspar começou a aprender a se comunicar. Também tentou entender o mundo, de acordo com a sociedade na qual foi inserido; contudo, suas percepções eram muito distintas daquelas da sociedade alemã.

Werner Herzog, para fazer a obra-prima O Enigma de Kaspar Hauser, cujo nome original é Jeder für sich und Gott gegen alle (em tradução literal, "Cada um por si e Deus contra todos"), inspirou-se no relato de Anselm von Feuerbach, jurista que acompanhou o processo de adaptação de Kaspar à civilização, em sua chegada à Nuremberg (NAGIB, 1991).

Durante o longa, as músicas não estão presentes de maneira gratuita. Nas cenas, que serão abordadas nesse artigo, pretende-se mostrar que o diretor alemão faz uso de compositores, como Albinoni, Pachelbel, Mozart e Orlando di Lasso, para possibilitar a construção desse misterioso personagem.



Percepção, Sonho e Realidade

Segundo Nagib, Herzog na concepção de seus filmes prende-se ao “físico” da película: imagem e som. “Ou seja, à possibilidade de uma comunicação direta através dos sentidos (da visão e da audição), e só a seguir [...] através do pensamento ou da razão” (1991, p.19). A partir dessa avaliação, nota-se a importância desses elementos “materiais” na construção das narrativas herzoguianas. É a justaposição da imagem e do som que, como Eisenstein (2002) elucida, revela o sentido global da película.

Assim, temos uma montagem vertical de sentidos, ou seja, durante cada cena, existe um avanço simultâneo de uma série múltipla de linhas, que constroem uma imagem única para o espectador (EISENSTEIN, 2002). A sincronização entre a representação A e a representação B, dos elementos sonoros e visuais, se dá de forma simultânea e não de maneira seqüencial. E é essa verticalidade que proporciona a construção de uma imagem global do filme ao espectador. Segundo Eisenstein (2002), na tentativa de encontrar uma sincronização entre imagem e som, existe uma linguagem comum: o movimento. Através da percepção do movimento e do ritmo, tanto na imagem quanto no som, pode ser estabelecida essa sincronização de sentidos.

A primeira cena do filme já evidencia essa propriedade do movimento. O plano detalhe de um remo fazendo um movimento circular em um lago é acompanhado pela música da Flauta Mágica de Mozart. O movimento e o ritmo dos elementos sonoros e visuais que aparecem na seqüencia encontram uma sincronia. Nesse mesmo trecho, percebe-se que a técnica a qual foram submetidas as imagens também transmite uma sensação de ondulações, assim como a água.

O filme, segundo Nagib , é composto por dois níveis narrativos, o primeiro nível é objetivo, em terceira pessoa, e o segundo se forma a partir das percepções de Kaspar. Esse último é “composto de imagens desconexas e sempre submetidas a algum tratamento técnico que resulta em alterações e deformações” (1991, p. 104). Mas a diferença também se constrói no som, nesses momentos a trilha sonora também é elemento fundamental. Sobre essa primeira cena, Nagib acrescenta:

Interessante observar que Herzog utilizou uma gravação antiga da Flauta mágica, sem disfarçar os chiados e riscos de um disco gasto; justamente esses defeitos conferem um novo encanto à melodia, o que vai de par com as “falhas” do protagonista, transformadas em virtude. (NAGIB, p. 109, 1991).

A sincronização interna que Herzog encontra entre imagens e sons constroem o protagonista do filme. As cenas desconexas que aparecem durante O Enigma de Kaspar Hauser remetem o espectador ao estranhamento do próprio Kaspar ao chegar em Nuremberg. A linguagem verbal que o protagonista não possui domínio, o raciocínio lógico que se diferencia daquele da sociedade europeia, a sua ideia inapreensível de Deus, são fragmentos que no todo da obra constroem o personagem de Kaspar distinto do ambiente onde se encontra.

O movimento também se torna evidente como elemento comum entre imagem e som em uma das cenas iniciais. As imagens mostram um campo de trigo que acompanha o movimento do vento, juntamente com o Canon de Pachelbel. O baixo contínuo presente nas composições barrocas que dá ritmo a música entra em sincronia com o movimento repetitivo do trigal sendo levado pelo vento.

Apesar de essa cena não fazer parte do segundo nível narrativo do filme, o das percepções de Kaspar, ela é acompanhada pelo texto “Esses gritos assustadores ao redor são o que chamam de silêncio?”. O silêncio que é elemento fundamental na construção de sentidos em qualquer linguagem, mas que no seu absoluto é assustador.

Após Kaspar ser retirado do calabouço onde vivia, mais um momento das percepções do protagonista é apresentado. Imagens de campos e prédios acompanhadas por uma música de Orlando di Lasso, revelam o primeiro olhar de Kaspar para o mundo. “É realmente notável a intuição de Herzog ao tomar essas imagens, acompanhando um olhar que ainda não sabe se deter nas coisas segundo sua importância” (NAGIB, 1991, p.109).

Essa “desordem” mostrada é acompanhada da música. A música, que também é uma linguagem, e que ordena o mundo, faz um contraponto à narrativa desconexa da percepção da personagem sobre o mundo. “As sociedades existem na medida em que possam fazer música, ou seja, travar um acordo mínimo sobre a constituição de uma ordem entre as violências que possam atingi-las do exterior e as violências que as dividem a partir do seu interior” (WISNIK, p. 34, 1999). A música como elemento da civilização lembra o espectador, que, apesar da ignorância de Kaspar sobre o mundo, todas as potencialidades de um indivíduo social estão presentes no protagonista.

Em outro momento, no qual o espectador pode entrar em contato com as visões do protagonista, novamente a música aparece como narrativa sonora. Kaspar está escrevendo uma carta à Daumer, o professor que lhe acolheu em sua casa, enquanto isso o Adagio in G Minor de Albinoni acompanha a cena. Com a trilha presente por aproximadamente 5 minutos, Kaspar conta na carta que plantou agriões na forma do seu nome, contudo eles foram destruídos, então ele os plantou novamente. Essa seqüência de cenas acaba com mais uma daquelas imagens que compõem o segundo nível narrativo do filme, na qual Kaspar fala de um sonho que teve para o professor Daumer. As imagens novamente são sujeitas a uma técnica que difere do restante do filme.

Pode-se perceber que nesse caso as imagens do sonho de Kaspar se inserem na narrativa do filme de uma forma mais linear, pois Kaspar está explicando o sonho que teve e, logo após, o sonho é mostrado. “Existe uma certa progressão no desenvolvimento das imagens, que acompanham o processo de adaptação de Kaspar no novo ambiente” (NAGIB, 1991, p.108).

Nas cenas das “visões” de Kaspar, o conceito que também se cria, através da imagem sonoro-visual, remete o espectador àquilo que talvez mais tocou o protagonista ao entrar em contato com a cultura de Nurembeg: a música. “A música soa forte no peito”, ele diz ao professor que lhe acolhe na cidade. É essa música que acompanha todos os momentos em que o espectador entra em contato com os olhos do protagonista para o mundo, revelando a identificação da personagem com esse modo de expressão e linguagem.

Novamente a Canon aparece, mas, dessa vez, acompanhando a narrativa de uma visão que Kaspar teve e que é contada ao professor Daumer. A visão consiste em pessoas subindo uma montanha em procissão, no fim da montanha estava a morte. É importante ressaltar que antes Kaspar não conseguia diferenciar seus sonhos da realidade, apenas após de um desenvolvimento de suas capacidades cognitivas ele vem a adquirir essa aptidão. Contudo, agora ele está desligado do que antes era uma coisa única. “É este desligamento que o irá conduzir à morte – ‘no topo, estava a morte’, diz Kaspar” (NAGIB, 1991, p.110).

Na última visão mostrada no filme, Kaspar, no seu leito de morte, conta uma história que criou, porém ela não possui fim. A música que acompanha esse momento, não é uma erudita, como nas outras visões, mas sim uma música folclórica. A mesma que o personagem Hombrecito toca. Esse personagem é um índio que aparece em um circo, no mesmo “número” em que Kaspar participa, antes de ir morar com o professor Daumer. Hombrecito toca uma flauta, caso ele pare de tocá-la, segundo o dono do circo, todas as pessoas da cidade morrerão. A história de Kaspar não tem fim, assim como a música de Hombrecito.

De fato, a atividade irradiadora de bens simbólicos da indústria cultural instala o paradoxo da utopia moderna5 (o ideal de democratização) com suas formas de acesso aos bens culturais universais. Isso porque, sendo o consumo massivo também o objetivo da indústria cultural, por mais erudito que seja o produto, sua difusão massiva o expõe a uma espécie de livre assimilação (ou tradução). Alguns dirão re-significação e pluralismo semântico. Assim, a grande oferta que parece estimular a liberdade individual é, antes, a modelização de subjetividades induzidas6. Ou seja: produz liberdade programada. Como tal, fica o fruidor (consumidor) eximido do desenvolvimento de pensamento crítico, liberado da apreensão de um sentido comum e social construído. Enfim, veremos mitigado o efeito e o desejo de participação na esfera pública, premissas da democracia moderna7, agora já substituídos pela exortação de uma performatividade espontânea e individual.

No campo artístico, apesar do desejo de autonomia, moderno e emancipador, a extensão de critérios estéticos fixados por artistas e críticos foi diminuída, consideravelmente, pelas determinações, também modernas, de um mercado expansionista atuando sobre a produção artística e submetendo o juízo estético a demandas alheias ao campo da arte. O que faz com que, hoje, principalmente para sua promoção e difusão, a arte dependa, em grande medida, de fatores extra-artísticos.

Nas artes visuais a mercantilização do mundo só não extingue completamente a “autonomia” do campo artístico porque este se subordina as leis globais do capitalismo, estabelecendo laços sempre renovados entre a indústria cultural e o sistema das artes. Ambos partícipes da complexidade pluralista e polissêmica das sociedades contemporâneas.

Podemos encontrar exemplo recente disso quando nos anos 80 se fortaleceu o chamado mercado de arte internacional8. A operação desse mercado internacional, seguindo a lógica comercial das grandes galerias dos Estados Unidos e da Europa, valeu-se da legitimação das instituições culturais, do marketing e da publicidade para mostrar ao mundo o que era a arte do momento, gerando o chamado boom internacional da pintura “neo-expressionista”.

Por fim, a derrocada da esfera pública burguesa que transferiu suas responsabilidades políticas ao capital e ao Estado, também pulverizou a função social da arte e da cultura. Isso, como afirma Hal Foster9, “reduziu o papel da cultura a uma forma de mediatização entre os interesses públicos e privados e expandiu-a como uma forma de consumo e de controle, cujo último efeito público, hoje em dia, é a arte vista, sobretudo, como diversão ou espetáculo” (1996, p.21). Nesse contexto, apostar na crítica de arte serviria para quê?



Elementos da Paisagem Sonora na Narrativa

Schafer (2001) define paisagem sonora como qualquer campo de estudo acústico. Quando se trata de som, não existe nenhum equipamento com a capacidade da fotografia em capturar instantaneamente paisagens visuais. Dessa forma, o estudo do campo acústico é muito difícil. A música pode ser definida como uma paisagem sonora, assim como um programa de rádio ou qualquer outro ambiente acústico.

Schafer identifica vários elementos da paisagem sonora natural, entre eles a água e o vento. “Qual foi o primeiro som que se fez ouvir? Foi a carícia das águas” (2001, p. 33). A mitologia grega conta que o homem nasceu do mar. O ser humano tem uma relação intima com a água que está ligada ao seu nascimento. “À medida que o feto se move no líquido amniótico, seu ouvido se afina com o marulho e gorgolejo das águas” (SCHAFER, 2001, p. 33).

A primeira cena do filme O Enigma de Kaspar Hauser como já referida é um plano detalhe de um remo na água, a imagem faz parte da série de visões de Kaspar. Logo após o plano detalhe, abre-se um plano geral, no qual Kaspar está remando em um lago. A imagem sonora que acompanha a cena, não é a do barulho da água, mas sim a Flauta Mágica de Mozart. Apesar de não escutarmos o barulho do contato do remo na água, a conexão desses elementos é propiciada, devido à música e à memória auditiva que o espectador possui. A água por sua vez remete, como Schafer (2001) aponta, a componentes elementares da paisagem sonoras naturais e da existência do homem. Kaspar Hauser em breve irá nascer para o mundo e para a civilização.

Na cena que antecede aquela já citada onde Kaspar está escrevendo a carta ao professor Daumer, o protagonista também está em um barco em um lago. Esse momento lembra o espectador da primeira cena do filme.

Este plano, aliás, é a visualização de uma imagem utilizada por Feurbach: “Sua mente (de Kaspar) se assemelha à superfície espelhada de um lago, na calma de uma noite de luar” (NAGIB, , 1991, p.107).

Outro elemento das paisagens sonoras naturais aparece logo no início do filme, na cena já citada, onde o trigal balança com o vento. A imagem sonora é o Canon de Pachelbel, contudo a imagem visual do trigal em movimento é capaz de proporcionar ao espectador atento a memória do som do vento. A cena que é acompanhada pelo texto “Esses gritos assustadores ao redor são o que chamam de silêncio?”, contrasta com esse elemento natural. “O vento é um elemento que se apodera dos ouvidos vigorosamente. A sensação é táctil, além de auditiva” (SCHAFER, p. 43, 2001). O vento é percebido pelos ouvidos e pelo tato, por meio da vibração, assim como o som. Além da masmorra onde Kaspar encontra-se, o silêncio não é absoluto.

Pode-se observar que as músicas que acompanham as visões de Kaspar, com exceção da última, fazem parte daquelas que se escuta de maneira concentrada na sala de concentro, são músicas eruditas dos períodos Renascentista, Barroco e Clássico. Esse tipo de música

contrasta vividamente com a música planejada para ser executada ao ar livre, como a música folclórica, que não necessita de grande atenção para os detalhes, mas que traz para a execução o que poderíamos chamar de “audição periférica”, semelhante ao modo pelo qual o olho perambula por uma paisagem interessante. (SCHAFER, 2001, p.107).

Esse tipo de composição, a folclórica, aparece na última visão de Kaspar que o filme relata, quando o protagonista conta a sua história que não possui fim. A música folclórica que não necessita de atenção para os detalhes, mas que traz para execução a audição periférica vem ao encontro das características de percepção da realidade que o protagonista possui.

É, em resumo, na identificação dessa falta que Herzog descobriu um sinal de vida, que acusa uma essência ao mesmo tempo divina e profana, ilusória e real do ser humano. A falta é o corte doloroso que expõe à luz o interior romântico da realidade. Foi assim que Herzog compreendeu a visão de Feuerbach e a transpôs naquilo que considero seu filme mais rico até aqui. (NAGIB, 1991, p.102).


Considerações finais

Longe de tentar esgotar as possíveis análises sobre imagem e som do filme O Enigma de Kaspar Hauser, esse artigo pretendeu refletir sobre alguns de seus aspectos. A presença dos elementos sonoros que, junto com os visuais, são capazes de transmitir uma imagem única ao espectador foi fundamental na construção do protagonista do filme.

Já na primeira cena, na qual uma gravação arranhada da Flauta Mágica é usada como trilha, percebemos as “falhas” de Kaspar transformadas em virtude, como aponta Nagib (1991). A música presente nos momentos em que o espectador tem contato com as visões e percepções de Kaspar, transforma o seu mundo “desordenado” em coerente. Dentro de suas percepções, existe uma harmonia.

Alguns elementos da paisagem sonora também foram identificados, a água como elemento fundamental da existência humana, relacionada ao nascimento. O vento, que traz o som de maneira tátil, revela um indivíduo que sai do silêncio assustador para a civilização, a qual pode ser tão assustadora quanto o silêncio.

EISENSTEIN, Serguei. O sentido do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

MANZANO, Luiz Adelmo Fernandes. Som-imagem no cinema: a experiência alemã de Fritz Lang. São Paulo: Perspectiva, 2003.

NAGIB, Lúcia. Werner Herzog, o cinema como realidade. São Paulo: Estação Liberdade, 1991.

SCHAFER, R. Murray. A afinação do mundo. São Paulo: UNESP, 2001.

WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das letras, 1999.

1  Plano detalhe do Remo. Fonte: O Enigma de Kaspar Hauser, de Werner Herzog.

2  Trigal ao vento. Fonte: O Enigma de Kaspar Hauser, de Werner Herzog.

3  Kaspar escreve carta. Fonte:O Enigma de Kaspar Hauser, de Werner Herzog.

4  Procissão na montanha. Fonte: O Enigma de Kaspar Hauser, de Werner Herzog.