Para um perseguido, para você, só há um lugar no mundo, mas nesse lugar não se vive. É uma ilha. Gente branca andou construindo, mais ou menos em 1924, um museu, uma capela, uma piscina. As obras estão concluídas e abandonadas. Adolfo Bioy Casares. A Invenção de Morel. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
I -
Em A Invenção de Morel, o museu faz parte das três construções modernas abandonadas na ilha. Porém, com uma particularidade, o museu poderia ter sido um hotel ou um sanatório. O narrador nos explica que apenas se refere àquela construção de três pisos, sem teto visível, com torre cilíndrica e uma biblioteca inesgotável mas inútil como museu porque foi assim que o italiano a nomeou. A indefinição utilitária da construção – chamada de museu –, mas que poderia ter tido na verdade outras funções, reflete inúmeros aspectos da ressignificação desse lugar na contemporaneidade.
Giorgio Agamben, por exemplo, oblitera a ideia de museu como lugar específico para examinar a museificação do mundo. Tudo seria passível de se transformar em museu: uma cidade inteira, uma região declarada parque ou oásis natural e grupos de indivíduos (representantes de uma cultura perdida). Por meio de uma ótica negativa, Agamben (2007, p.73) afirma que o museu significa “a exposição de uma impossibilidade de usar, de habitar, de fazer experiência”. O mundo entendido como um imenso museu tornaria visível coisas que perderam a dimensão subversiva do uso. Aquela do jogo de criança que transforma objetos em brinquedos: a tampa de garrafa vira instrumento musical, o pedaço de pano vira máscara, a colher vira avião.
Se, por um lado, a definição radical de Agamben parece não casar com as inúmeras discussões institucionais sobre o papel do museu contemporâneo como um organismo vivo das cidades, por outro, a importância da dimensão subversiva do uso chama atenção para um sentido utópico dos museus como uma estrutura sem fronteiras definidas de lugar, de tempo e de uso. Aqui se encontram entrelaçadas tanto práticas curatoriais experimentais (museus-laboratórios) como práticas artísticas (os museus de artista).1 Esses dois casos se definem por meio de proposições distintas da noção de museu tradicional. São representações reais ou imaginárias de outros museus possíveis, na medida em que reproduzem algo que já conhecemos de uma forma distinta. 2
II -
O projeto arquitetônico do Museu de Arte Contemporânea de Lima, desenvolvido pela Productora – um estúdio de arquitetura baseado no México –, é um exemplo singular do museu como tema de representação artística. Criado em 2002, pela artista peruana Sandra Gamarra, o LiMAC possui identidade visual, sítio eletrônico e projeto arquitetônico, mas sem estrutura física concreta. No “exercício de arquitetura”, desenvolvido pela Productora, em 2006, está sobreposto claramente ao programa exemplificado pela artista, o partido tomado pelo grupo de arquitetos.
Gamarra demanda duas premissas básicas para o projeto do LiMAC. Tanto os espaços do museu devem consistir nas formas clássicas retangulares museológicas como sua estrutura física deve desaparecer nas dunas do deserto da paisagem de Lima. A partir dessas duas premissas, os arquitetos propõem o projeto de um museu subterrâneo: “do exterior o museu só seria percebido como uma série de escavações na terra ou como superfícies quadradas, erguidas na topografia existente”.3 Segundo a justificativa do projeto, o museu de arquitetura invisível, diferentemente de projetos grandiosos como o Guggenheim de Bilbao de Frank Gehry, conseguiria esconder uma atmosfera misteriosa do espaço interior, quase como uma tumba egípcia.
A diluição do museu na paisagem reflete uma premissa principal de artistas, curadores e críticos exposta numa plataforma virtual peruana chamada Micromuseo: al fondo hay sitio.4 Segundo Gustavo Buntinx – fundador do museu (surgido em meados da década de 1980) e da plataforma virtual (200?) –, o Micromuseo vem defendendo a categoria de “museu vazio” para denominar as inúmeras reflexões teóricas e práticas geradas da ausência de um legítimo museu de arte contemporânea no Peru. No Micromuseo, o museu entendido como uma estrutura fixa está sempre diluído pela multiplicação e aglomeração de todo o tipo de prática artística e teoria sobre o papel do museu contemporâneo. Citada no Micromuseu, ao lado de outros museus peruanos (Museu do Travesti e Museu Neo-inka), Sandra Gamarra parte da mesma assertiva do “museu vazio” para justificar a fundação do LiMAC. Nas premissas do projeto arquitetônico, Gamarra ainda expõe a dupla face do vazio: a precariedade de instituições de arte contemporânea no Peru e a possibilidade de propor múltiplos projetos de museus com a finalidade de ocupação do vazio.
III -
Na categoria de “museu vazio”, tudo parece ser passível de se transformar em museu (um grupo de pessoas, cidades, sanatórios, uma biblioteca, etc.). Seria essa permissividade da categoria uma característica que reforça a crítica de Agamben sobre a museificação do mundo? Talvez. Na última década é possível observar, além da ressaca arquivística que tomou conta de inúmeros trabalhos de arte, a onipresença do Museu como tema de representação artística. Essa reincidência, no entanto, explica a importância central e paradoxal desse lugar para se pensar os sentidos das práticas artísticas contemporâneas.
Como não é possível problematizar, nessas poucas linhas, o “museu vazio” por meio da ideia de museificação do mundo, pode-se afirmar apenas que a crítica de Agamben sobre o mundo tornado museu serve para se tomar consciência de processos reprodutivos museológicos que também podem ser vazios no sentido destrutivo: a criação de museus reais ou imaginários que não estão pautados na multiplicação de jogos de sentido, mas numa hierarquia de significados preestabelecidos e cristalizados, é um desses exemplos.
O projeto arquitetônico do LiMAC parece surgir também da crítica de museificação do mundo, ao se distanciar de projetos arquitetônicos espetaculosos e se aproximar da esfera mística contida na tumba egípcia. A relação entre exterior e interior fica demarcada somente por pequenos vestígios construtivos. O museu invisível não é um prolongamento do mundo, mas um lugar de passagem de uma dimensão para outra. Essa demarcação limítrofe, indicada pelo binômio exterior-interior – tão caro à arquitetura moderna –, expõe um problema basilar das utopias museológicas contemporâneas: como reproduzir outros museus possíveis sem torná-los conforme?