O contemporâneo como uma nova relação entre arte e política
Que deslocamentos a arte pode causar? Que tipos de embates com o mundo estão em jogo nos processos de invenção artística? Quais as fissuras instaladas a partir da experiência sensível provocada pela arte? Parece-nos que o contemporâneo está preocupado com uma constante formulação dessas questões, de modo a promover encontros entre arte e política, para além de um foco nos elementos discursivos, nas mensagens ou nos temas. É na forma de organizar o sensível, de recortar o espaço e o tempo que se projetam novos lugares, que podem ser convocadas novas formas de vida em comunidade. Estética e política não estão separadas nas investigações contemporâneas: uma e outra estão imbricadas, não segundo a lógica da instrumentalização, mas no impulso comum de tornar visível o invisível e dizível o indizível – é a mudança na destinação de um lugar, de que nos fala Rancière (1996), pois a atividade política “faz ver o que não cabia ser visto, faz ouvir um discurso ali onde só tinha lugar o barulho” (1996, p.42).
Esse movimento que tensiona fronteiras e que vai além da autonomização da estética como “divisão do sensível e discurso sobre o sensível” (Rancière, 1996, p.68) já se delineia desde a modernidade e ganha potência particular na abertura ao mundo abraçada pelos artistas contemporâneos. Arte e Vida: questão central em torno da qual são desenvolvidas pesquisas estéticas na contemporaneidade – é preciso deixar-se afetar pela experiência cotidiana, levar a obra de arte a outros espaços, dessacralizar os locais de fruição, desmaterializar o próprio objeto artístico. Vislumbram-se caminhos outros para os processos artísticos. Num regime poético das artes, prevalecia um isolamento do campo artístico, ocupado em representar, imitar o mundo; no regime estético, encontra-se uma investigação em torno dos modos próprios de ser dos objetos: “as coisas da arte são identificadas por pertencerem a um regime específico do sensível [...], habitado por uma potência heterogênea, a potência de um pensamento que se tornou ele próprio estranho a si mesmo” (Rancière, 2005, p.32). Trata-se, nesse regime, de um gesto propriamente político que vai além da hierarquia de temas, gêneros e artes.
Não se coloca aí apenas, segundo Rancière, a questão da pura forma, da arte que se volta para o embate consigo mesma e para a investigação das características próprias de cada meio: questões tão caras a certa ideia de modernidade não são suficientes para operar os conceitos, porque a própria “ideia de modernidade é uma noção equívoca”, na medida em que carrega um regime de historicidade baseado na cronologia, num sentido único, “quando a temporalidade própria ao regime estético das artes é a de uma co-presença de temporalidades heterogêneas” (Rancière, 2005, p.37). A distinção antigo/moderno cabe à estrutura de pensamento do regime representativo, ao passo que, no regime estético, “o futuro da arte, sua distância do presente da não-arte, não cessa de colocar em cena o passado” (2005, p.35). As misturas de gêneros e suportes, de tempos e, mais ainda, de arte e experiência cotidiana, não são percebidas dentro do paradigma moderno: o contemporâneo enfatiza outras inflexões nas relações da arte com o mundo, numa estreita imbricação com a política e com as potências de resistir ao que está dado – as formas contemporâneas das artes carregam polivalências políticas, defende Rancière.
É, pois, também na relação com o antigo que se constitui o contemporâneo, no entrecruzamento de tempos, na operação de fluxos. Ir além das cronologias é afirmar novas experiências de temporalidades de mundo, novas maneiras de sentir o que é próximo e o que é distante, o que está dentro e o que está fora, “introduzir no tempo uma essencial desomogeneidade” (Agamben, 2009, p. 71). A rejeição de Rancière à noção de modernidade é, sobretudo, um tensionamento de pensamentos lineares de história, que operam por evolução e rupturas, pela evocação de movimentos e períodos estáticos ao longo de uma linha do tempo. O contemporâneo, tanto na arte como nas estruturas de pensar, não diz respeito apenas ao presente, ao atual, mas move-se, a partir de um anacronismo e de um elemento inatual, em direção à apreensão do próprio tempo.
A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e de um anacronismo. (AGAMBEN, 2009, p.59. Grifos do autor.).
O contemporâneo escapa das cronologias: é política de resistência, na arte e no pensamento. Nos termos de Deleuze (1992), é preciso empreender a distinção entre devir e história para que se remonte o acontecimento. “A história designa somente o conjunto das condições, por mais recentes que sejam, das quais desvia-se a fim de ‘devir’, isto é, para criar algo novo” (1992, p.215). É por esse caminho que se pode encaminhar uma criação de mundos que resiste e é capaz de deslocar as coisas da forma que estão postas. Os sujeitos encontram no devir revolucionário a resposta ao intolerável, eis o que propõe Deleuze: que os processos de subjetivação dos indivíduos e das coletividades aconteçam de forma a escapar aos saberes constituídos e aos poderes dominantes. O movimento perpétuo, o inventar-se, o fabular – a medida da resistência na vida dá-se também na arte: o mundo não está dado, os lugares não são estáticos, por isso cabe torcer o que se apresenta como evidência e alcançar na arte o próprio plano da imanência. Não se pode parar o movimento da invenção: “a arte é o que resiste: ela resiste à morte, à servidão, à infâmia, à vergonha” (1992, p.219). O gesto estético-político dá-se, com efeito, a partir de uma abertura ao mundo, de uma imersão nas intensidades e no que move a vida cotidiana. Dirá, pois, Deleuze:
Acreditar no mundo é o que nos falta; nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos. [...] É ao nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle. Necessita-se ao mesmo tempo de criação e povo. (DELEUZE, 1992, p.222).
Na noção de um povo por vir, Deleuze vai enfatizar o ato político próprio da arte, a resistência à ordenação dos lugares, num movimento de desidentificação do povo consigo mesmo. “O povo falta”: a compreensão dessa fórmula fratura a experiência do mundo e permite ao artista inventar um povo. Ir além do monumento, posto em luta e em devir, é o que insere efetivamente a ideia de povo na própria definição de resistência da arte, como desenvolve Rancière (2007). “A resistência da obra não é o socorro que a arte presta à política. Ela não é a imitação ou antecipação da política pela arte, mas propriamente a identidade de ambas. A arte é política” (2007, p.129).
Na identificação da arte com a política, encontra-se a proposta de uma nova disposição dos corpos em comunidade, a promessa de uma nova vida. O campo democrático interrompe a ordem já dada nos esquemas policiais que nomeiam e gerem os lugares, poderes e funções (Rancière, 1996). É preciso falar de uma política que desinstala os sujeitos da experiência habitual, reconhece a existência de uma “parcela dos sem-parcela”, incorpora o litígio e não tenta ocultá-lo. O dissenso é o caminho da resistência em Rancière, uma dissensualidade artística que acarreta vibrações e extirpa o sensível ao sensível. A democracia não é entendida como simples forma de governo, mas como o que instaura a política, ao instituir “sujeitos flutuantes que transtornam toda representação dos lugares e das parcelas” (Rancière, 1996, p.103). Pelo dissenso aí desencadeado, deslocam-se as formas de democracia consensual, em que, negado o conflito e consideradas as partes pressupostamente dadas, não há espaço para a política – como “um certo regime do sensível”, o consenso é o próprio “desaparecimento da política”, diz Rancière (1996, p.105).
Há uma comunidade estética por vir. A resistência da arte é a invenção política de mundos, a abertura à experiência do imponderável e da fratura. Não se trata simplesmente de oposição a um sistema de organização das coisas, mas de uma inserção efetiva nas brechas para afirmar o litígio, uma crença nas potências do gesto criador. Ser político é mais do que colocar-se de um lado ou de outro de um espectro ideológico, é estar na Vida, que não se efetua tão somente em torno das dicotomias (esquerda/direita; liberal/conservador), mas na imersão numa rede de caminhos – é o próprio multiplicar de percursos, instalar de crises, profusão de possíveis. O caminho da identificação entre arte e política é de um perpétuo revolver-se, uma aposta de que fazer arte é uma forma de estar no mundo, de propor relações com o sensível, de remontar acontecimentos. Cabe ao artista escolher as próprias estratégias de ser político.
A estratégia de resistência na arte pode ser o caminho de negar o próprio objeto artístico, instaurar um problema estético que desloca as questões da especificidade da obra e das propriedades particulares de um meio. Trata-se de um movimento em direção à amplitude da criação e à reflexão em torno de processos mais do que de resultados. A obra a ser considerada não é puramente a que se coloca no museu, à disposição de uma contemplação do espectador, mas a experiência que a gestou, o acontecimento que ela desencadeou. A arte convoca o espectador, insere-se no corpo social e nas práticas cotidianas. Há o caminho de se pensar uma arte conceitual, organizada em torno de um conceito, um projeto estético, mais do que de um objeto com valor de exposição. Para além de uma autorreferencialidade, as questões éticas e políticas movem os artistas para o contexto em que estão inseridos (Freire, 2006).
A Arte Conceitual dirige-se para além de formas, materiais ou técnicas. É, sobretudo, uma crítica desafiadora ao objeto de arte tradicional. A preponderância da ideia, a transitoriedade dos meios e a precariedade dos materiais utilizados, a atitude crítica frente às instituições, notadamente o museu, assim como formas alternativas de circulação das proposições artísticas, em especial durante a década de 1970, são algumas de suas estratégias (FREIRE, 2006, p.10).
Vale remeter a Marcel Duchamp e ao princípio do ready made para encontrar o espírito desencadeador do questionamento do próprio objeto da obra. Trazer elementos do cotidiano para o espaço do museu era uma tentativa de provocar as próprias instituições que definem o que é arte e de tornar necessária a participação do espectador na arte. O urinol que Duchamp inscreve em exposição nos Estados Unidos em 1917 não vale por si mesmo, não é um monumento, mas tem sentido quando se remete ao tensionamento com o mundo na ação do artista e quando se interpela o público, convocado a fazer parte do processo. “A obra é realizada duas vezes: primeiro pelo artista, depois pelo observador” (Freire, 2006, p.35). Duchamp buscava provocar um “curto-circuito entre arte e vida” (2006, p.37).
Esse movimento fala ao mundo, é arte que se questiona e resiste. Não há uma autonomização da experiência estética em relação ao corpo social: o que Duchamp e, posteriormente, a arte conceitual empreendem é uma ação de crença no mundo, num devir que gera uma passagem e coloca o espectador na experiência de um entre. A princípio, há aí um paradoxo: esses processos artísticos resistem ao não parecerem com arte (Fervenza, 2005), ao desinstalarem-se do lugar tradicional destinado às obras artísticas e do processo habitual de criação. Dirá Rancière (2007):
Dizer que a arte resiste quer dizer que ela é um perpétuo jogo de esconde-esconde entre o poder de manifestação sensível das obras e seu poder de significação. Ora, esse jogo de esconde-esconde entre o pensamento e a arte tem uma consequência paradoxal: a arte é arte, resiste na sua natureza de arte, apenas enquanto não é arte, enquanto não é o produto da vontade de fazer arte, enquanto outra coisa que a arte. Essa “outra coisa” se chama, na obra de Hegel, espírito do povo: a estátua grega, para nós, é arte apenas porque era outra coisa para seu escultor: a representação do deus da cidade, a decoração de suas instituições e festas. (RANCIÈRE, 2007, p.132).
É uma antiarte, conceito que Hélio Oiticica vai defender, o caminho para a resistência da arte, para a constituição de novas formas de viver. A vontade dessa arte que não se faz consciente de si é viver, estar no mundo, acontecer. Não há mais, como no regime poético, uma distinção de maneiras de fazer específicas, um papel próprio do artista, ocupado com a poiesis, separado de um contexto mais amplo. Se a arte é política, a preocupação será em torcer as evidências do mundo, mergulhar na vida. É no embate com mundo, mais do que consigo mesma, que a arte vai buscar resistir.
A maneira como a arte que não se parece com arte se relaciona com a sociedade passa pela atenção a qualquer aspecto das formas, dos meios e situações de vida dessa sociedade. A atuação desse tipo de arte produz-se através da vida social. (FERVENZA, 2005, p. 96. Grifos do autor).
Nos parangolés de Hélio Oiticica, nos bichos de Lygia Clark, nos livros de carne da Artur Barrio e nas Inserções em circuitos ideológicos de Cildo Meireles, a arte deixa de ser objeto, para ser um processo: já não é monumento a ser contemplado, mas processo de vida que atravessa o corpo social.
Inserções em circuitos ideológicos como acontecimento estético-político
Ao realizar as Inserções em circuitos ideológicos ao longo da década de 1970, o artista Cildo Meireles volta-se para a vida e para as trocas cotidianas. Insere novas dimensões de viver em circuitos, para desencadear processos de disjunção e provocar curtos-circuitos internos aos poderes dominantes. A obra é uma pesquisa estética do artista que não se esgota no circunstancial; marca uma preocupação com a disseminação da arte no corpo social, inquietação já expressa nas Inserções em jornais: classificados (1970), publicação de anúncios criados por Cildo na seção “Classificados” do Jornal do Brasil. A radicalização da investigação vai ganhar nova força com as Inserções em circuitos ideológicos na medida em que o artista já não trabalhava com as informações organizadas pelos media: ele buscava um movimento além, na tentativa de instaurar um outro sistema de trocas, que escapasse à lógica do controle centralizado. Segundo o próprio artista, o trabalho partia de uma reflexão em torno de três pontos:
1) existem na sociedade determinados mecanismos de circulação (circuitos): 2) esses circuitos veiculam evidentemente a ideologia do produtor, mas ao mesmo tempo são passíveis de receber inserções na sua circulação: 3) e isso ocorre sempre que as pessoas as deflagrem. (MEIRELES, 1981).2
São as pessoas que deflagram essas inserções: não se tem a questão da genialidade do artista, homem privilegiado que elabora um discurso sobre o sensível. A arte é feita na vida. Não há mais os ocupados em fazer arte e os que devem apenas contemplá-la, as funções separadas entre os que podem elaborar a matéria artística e os que a recebem passivamente. “No momento em que há distinções nessa ou naquela direção, surge a distinção de quem pode fazer arte e quem não pode fazer”, diz Meireles. O projeto do artista vai ao encontro de uma comunidade estética por vir, em que já não há compartimentação na relação com o sensível. “Tal como eu tinha pensado, as ‘Inserções’ só existiriam na medida em que não fossem mais a obra de uma pessoa. Quer dizer, o trabalho só existe na medida em que outras pessoas o pratiquem” (Meireles, 1981).
Dois projetos integram as Inserções: o Projeto Coca-Cola e o Projeto Cédula. Em ambos, Cildo interfere em objetos de circulação e devolve-os aos circuitos, em período de regime ditatorial no Brasil. O artista inscreve em garrafas de Coca-Cola, com tinta silkscreen, dizeres como: “Gravar nas garrafas informações e opiniões críticas e devolvê-las à circulação. C.M. 1970” – era o próprio processo inserido como gesto estético-político. As inscrições só poderiam ser lidas claramente nas garrafas cheias, pelo contraste entre o líquido escuro e a tinta branca posta no vidro. Já no projeto Cédula, diferentes intervenções foram realizadas, tanto em notas de diferentes unidades monetárias – em cédulas de um cruzeiro, dólar ou marco, Cildo carimba “Quem matou Herzog?”, “Cuidado com o trombadão! Maluf não!”, “Yankees, go home!”. Mais do que o valor do enunciado, buscamos compreender a situação desencadeada, o problema estético-político provocado pelo artista. Se Duchamp trazia objetos do cotidiano para o museu, Cildo, a um só tempo, remete ao processo de ready made e tensiona-o, ao não apenas trazer cédulas ou garrafas de Coca-Cola para exposição, mas pô-las em circulação. É esse movimento de ir e vir, essa inserção artística em rede, a tensão potencializada pelo projeto de Cildo Meireles. Em Duchamp, observa Freire (2006), a escolha e a relação com os objetos eram marcadas pela indiferença como forma de provocação ao próprio sistema da arte – em Meireles, essa motivação é deslocada para “a conotação política e social do objeto escolhido. Trata-se de uma estratégia de inserção crítica na realidade cotidiana” (2006, p.33). A arte como objeto e o artista como figura dissolvem-se rapidamente no circular clandestino, no inserir-se pelas brechas, na exposição ao risco.
Risco que gera pulsões na obra de arte, tornada ela mesma uma ação política. O artista não está apartado do mundo, mas age nele, faz vibrar o próprio estar no mundo. A estética não está separada da política, a obra não representa uma situação, é o próprio acontecimento. “Já não trabalhávamos com metáforas (representações) de situações. Estava-se trabalhando com a situação mesmo, real”, diz Meireles. Em torno da ideia de um público que é requerido para a efetuação da obra artística, opera-se um movimento que tenta convocar os sujeitos à participação, à experiência da arte na vida cotidiana. As Inserções em circuitos ideológicos fazem o povo faltar para que seja possível inventá-lo.
As contrainformações de Cildo Meireles, ao fraturarem a carga ideológica de objetos do dia-a-dia, instalam o dissenso na comunidade, afirmam a existência do conflito no corpo social. O próprio Cildo fala em uma oposição às informações anestesiantes veiculadas pela indústria e pelo Estado: em outros termos, poderíamos pensar nessas instâncias como organizadoras de consenso, polícia que determina os lugares dos corpos e agencia as formas de visível e sensível – anestesiante é o que tenta parar o movimento, interromper o devir revolucionário dos sujeitos, ocultar, por uma operação ideológica, o litígio fundante da política. “Quem matou Herzog?”: Meireles expõe e faz circular a pergunta proibida, o conflito escondido pelo regime – é um desconcertante ato de guerrilha estética que se afirma como provocação à ordenação dos corpos. Um tensionamento entre arte e indústria, consciência e anestesia, e poderíamos acrescentar, à luz de Rancière, política e polícia, eis o que propõe Cildo Meireles: “É uma oposição entre consciência (inserção) e anestesia (circuito), considerando-se consciência como função de arte e anestesia como função de indústria. Porque todo circuito industrial normalmente é amplo, mas é alienante (ado)”. A obra de arte como acontecimento no mundo provoca pensamento, em toda a sua potência: pensamento que torce o sensível e resiste ao consenso para gestar uma democracia, instituidora de “comunidades de um tipo específico, comunidades polêmicas que põem em jogo a própria oposição das duas lógicas, a lógica policial da distribuição dos lugares e a lógica política do traço igualitário” (Rancière, 1996, p.103).
Nas Inserções de Cildo Meireles, essa constituição de um campo democrático convoca um povo, real sem ser atual, um povo por vir. A obra circula e insere-se na vida, mistura-se nas trocas, espraia-se, vibra no mundo. O público não está presente; em verdade, todos se constituem como público em potencial: não um público que deve observar ou apreciar, mas viver a arte e multiplicar os acontecimentos de resistência – não se trata mais, nesse sentido, de uma fruição de um objeto e de sua beleza, como na arte clássica. No trabalho de Cildo Meireles,
não há um público, não há ninguém assistindo, não há testemunhas oculares. Dessa forma, ocorre aqui algo que poderíamos chamar de autoapresentação. Aquele que toma parte nesse processo inclui-se como alguém que produz uma experiência de fazer e abre uma experiência de sentir e pensar, ou pensar, sentir, fazer, encontrando-se os termos inter-relacionados e não necessariamente numa ordem estabelecida. Essas produções ou proposições possuem também em comum uma ênfase nas relações e investem sobre o mundo, aí inscrevendo possibilidades de crítica ou autoconhecimento, subjetividades e questionamentos. Elas são meios e não fins, formas de pensar, de viver e de agir. (FERVENZA, 2005, p.98).
A experiência da obra é de um imponderável, de um conjunto múltiplo de possíveis. A relação tátil mesma com cédulas e garrafas já impregna os corpos dos sujeitos de uma arte que busca instalar crises. É um ato de fuga ao controle, à ordem, às regras. Abertura ao caos, as Inserções são uma experiência de deslocamento, um gesto estético-político de fratura por dentro. Não constituem monumento estático no museu, mas processo vivo, não são metáforas de situações, mas acontecimento puro. Em Cildo Meireles, a arte não fala sobre política, ela é política, para retomar a proposição de Rancière. É nessa identidade que Inserções em circuitos ideológicos é obra de resistência, de crença nas potências do mundo e de embate com esse mesmo mundo tal como dado a ver.