A redescoberta do situacionismo no mundo e em particular no Brasil deu-se com os episódios das manifestações contra a economia neoliberal e a marcha funesta da globalização no final dos anos da década de 1990. Em meio a esse processo perverso de exclusão social no capitalismo tardio, jovens do mundo inteiro passaram a organizar formas de combate e de resistência às contradições criadas pelas políticas de Estado policial e de perdas de direitos civis. Em termos táticos, esses jovens criaram veículos alternativos para informação e se beneficiaram da internet como ferramenta de debate e de mobilização. Tratava-se de recorrer a novos instrumentos de combate e nas artes isso significou o surgimento de coletivos artísticos. Esses coletivos, além de fazer a crítica da produção de arte como produção exclusivamente individualizada, iam para além disso e negavam o estatuto de definição tradicional das artes visuais para se assumirem como agentes combativos no plano político e cultural.
No Brasil, os nomes desses coletivos marcaram história e se aproximaram de movimentos sociais tal como o MTST; entre eles, pode-se destacar: Coletivo Esqueleto, Grupo Bijari, Grupo Elefante e a atividade do finado Ricardo Rosas à frente do site rizoma.net. Toda essa produção ocorreu desde os anos de 1990 até a primeira década de 2000 e veio, por assim dizer, na esteira de uma série de contradições geradas nas décadas anteriores, principalmente de 1970 e de 1980. Quando se deu o processo de cristalização do modelo financeiro-especulativo nos Estados Unidos, as contradições desse modelo surgiram em várias partes do mundo com o desmantelamento do Estado de Bem-Estar Social e com a ascensão do liberalismo econômico radical, que agravou as disparidades entre pobres e ricos no mundo.
O auge simbólico da atuação desses coletivos, sempre à maneira situacionista, foi a ação política conjunta com o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) no Edifício da Avenida Júlio Prestes, região da Luz na cidade de São Paulo, com transmissão direta e interlocução com a Bienal de Havana em 2005. Depois disto as coisas mudaram de configuração pelo menos no cenário brasileiro dos acontecimentos e das artes. Com o recrudescimento das disputas entre as classes sociais nas cidades – haja vista a crise irremediável da política representativa – nos últimos anos e em especial a partir das jornadas de junho de 2013, muitas manifestações político-culturais ou culturais de caráter político tomaram as ruas das principais cidades brasileiras.
Se até recentemente os situacionistas eram identificados pela história da arte apenas como um movimento político, com contribuições secundárias para o campo das artes, a ascensão dos coletivos de arte no Brasil e no mundo veio dar novo fôlego no estudo do situacionismo nas artes. De fato, houve uma ênfase dos situacionistas em termos de política nos Conselhos Comunistas (sovietes) e no revolucionarismo democrático, como alternativa anticapitalista ao comunismo oficial da ex-URSS. Também é verdade que nas análises dos situacionistas a arte moderna passou a ser caracterizada pela perda de sua capacidade crítica de mudança em sentido social e que ela seguia, na sua conivência cada vez maior com o status quo, as mesmas orientações da crise ampla verificada na sociedade capitalista. Não obstante a crítica situacionista da arte, devemos lembrar que a Internacional Situacionista teve em seus quadros ex-integrantes do Grupo Cobra, tais como Constant e Asger Jorn, e além desses os artistas de Alba na Itália, entre os quais se destaca Pinot-Galizzio. Também, o próprio Guy Debord iniciou suas atividades como membro da Internacional Letrista.
O esquecimento, por décadas, da importância dos situacionistas e de uma série de movimentos das novas vanguardas, que se desenvolveram na Europa a partir do final da Segunda Guerra Mundial, foi resultado de uma nova conjuntura da relação entre arte e poder no mundo. Entre essas razões pode-se destacar: a mudança do centro estratégico da política ocidental para Washington, a mudança do centro mundial das artes de Paris para Nova Iorque e a noção equívoca de que a arte no ocidente democrático não deveria se sujeitar aos apelos da política. Nova Iorque ganhou primeira plana na cena mundial das artes visuais com o sucesso do expressionismo abstrato de Jackson Pollock e com a atividade crítica militante de Clement Greenberg. Na Guerra Fria, a defesa da arte moderna passava pela compreensão de que ela encontraria espaço para sua pesquisa formal e para o exercício de suas leis intrínsecas no Ocidente ‘livre’, ainda que capitalista, em oposição ao controle estatal das artes feito pela censura oficial da URSS.
A partir da produção do Manifesto por uma arte revolucionária independente de Breton e Trotsky, em 1938, até o acirramento da política macarthista nos anos de 1950, a arte moderna foi, nos Estados Unidos e na maior parte do mundo, representada pelas tendências da arte abstrata, da arte construtiva e do informalismo. Essa arte tinha como característica fundamental a não representatividade, a recusa do realismo e a proposição da autonomia com significados diversos: para Breton e Trotsky, a arte era contestadora da realidade; para Greenberg, a arte autônoma garantia a possibilidade de antagonismo com o gosto kitsch difundido pela indústria cultural; para Mário Pedrosa, a arte autônoma era o expediente necessário para a formação estética do homem moderno e contra a instrumentalização pelas políticas oficiais de Estado.
Com o passar dos anos, ficou evidente que a política cultural norte-americana que se concentrou na fundação de museus e de instituições de arte moderna pelo mundo, na exportação da imagem da defesa da arte moderna livre e na exaltação romântica do individualismo criador (o self-made man) do expressionismo abstrato, coadunou-se bem com a intransigência da perseguição dos simpatizantes do comunismo que residiam nos Estados Unidos durante o período macarthista. A maior parte dos intelectuais e dos artistas estrangeiros tornou-se suspeita de atividades subversivas e, por vezes, declarou por constrangimento ou por conveniência que não era interessada em política e sim defensora das manifestações mais livres da arte. Devido à chantagem de não renovação do visto de permanência ou expulsão sumária, muitos artistas e intelectuais tiveram de regressar para a Europa e é, nesse momento, que a velha geração encontra a nova geração de artistas vanguardistas. O episódio emblemático desse encontro foi a ida de Charlie Chaplin a Paris e a recepção dele feita por Guy Debord e demais integrantes da Internacional Letrista.
Depois do filme Monsieur Verdoux, Chaplin foi interrogado pelo FBI e teve sua permissão de viver nos Estados Unidos negada em 1949. Depois de ser recebido com honrarias pela rainha Elizabeth na Inglaterra, Chaplin inicia viagem por convite de vários países para sua aclamação como o grande diretor de Tempos modernos e outros filmes mais. Em Paris, ele foi condecorado, no Hotel Ritz, como membro da Legião de Honra da França, por tudo aquilo que tinha feito em contribuição para as artes. A cerimônia parecia ser a consagração do grande nome do cinema até que no meio da cerimônia quatro homens começam a gritar e a mostrar cartazes onde se lia “Pés Chatos nunca mais”. Eram os integrantes da Internacional Letrista lendo sua carta de repúdio ao filme Monsieur Verdoux, que possuía elementos característicos da crítica ao capitalismo e da linguagem surrealista:
Diretor sub-Mack Sennet, ator sub-Max Linder, Stravinsky das lágrimas de mães descasadas e pequenos órfãos de Auteil, você é Chaplin, chantagista emocional, grande cantor dos desafortunados... Porque você se identificou com os fracos e oprimidos, atacá-lo tem sido atacar os fracos e oprimidos – mas na sombra do sol tapado com a peneira alguns já poderiam antever o cassetete de um policial. Você é ‘aquele-que-dá-a-outra-face’ – a outra face das nádegas – mas para nós, a única resposta para o sofrimento é a revolução... Vá dormir, seu inseto fascista. Nade na grana. Faça dinheiro com a alta sociedade. Nós nos regozijamos quando você engatinhou de barriga no chão na presença da pequena Elizabeth. Morra logo: nós lhe prometemos um funeral de primeira classe. Nós desejamos que o seu próximo filme seja verdadeiramente o último. Vá para casa, Senhor Chaplin (RASMUSSEN, 2004, p. 368).
O tom de escândalo do discurso dos membros da Internacional Letrista faz parte dos procedimentos típicos das vanguardas históricas. Tratava-se de mais uma vez negar a importância dada ao surrealismo, que se tornara prática artística incorporada ao gosto e aos valores sociais estabelecidos, e reatar o vínculo das manifestações de vanguarda com as iniciativas de transformação revolucionária da sociedade. Entretanto isso não foi uma característica apenas da Internacional Letrista, pois muitos artistas na Europa se voltaram, nos anos finais de 1940 e durante a década seguinte, para o legado das vanguardas históricas e reafirmaram a fusão necessária entre arte e política revolucionária. Foi daí que em certo sentido surgiu o Grupo COBRA, a Internacional Letrista, o grupo Arte Nuclear, o Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista (MIBI), Provos e a Internacional Situacionista.
Mikkel Bolt Rasmussen (2004), em “The Situationist International, Surrealism, and the difficult fusion of Art and Politics”, parte da hipótese de que a Internacional Letrista e, logo depois, a Internacional Situacionista se consideravam como continuadores dos movimentos de vanguarda do entre guerras, em especial o surrealismo, e tinham, ao mesmo tempo, o intuito de superar as propostas daquele movimento. Segundo Rasmussen, sem repetir as falhas do Surrealismo, os situacionistas repudiavam o caráter revolucionário do inconsciente e se esforçavam para ultrapassar o mundo da arte em favor de uma posição crítica anticapitalista fora dos limites do Partido Comunista e do comunismo oficial . Consistia nisso o projeto de Debord e dos outros situacionistas, negar o inconsciente e transformar o mundo a partir das situações e oportunidades, negar a arte para realizá-la na vida.
Se o Dadaísmo pretendia negar a arte sem realizar seu projeto de integração da arte na vida e se o Surrealismo propunha a integração da arte na vida sem negar a arte, por sua vez, os situacionistas perceberam que era preciso negar a arte para realizar o projeto de integração da arte na vida. No auge dos debates sobre arte, cultura e política, os situacionistas, principalmente a facção francesa do movimento internacional, condenou a arte moderna como extensão do processo geral de produção e de reprodução tanto simbólica como material do mundo capitalista, onde tanto a cultura como a arte seriam formas mercadorias, mercadorias ideais que justificariam o valor de troca como dominante na sociedade. Nesse sentido, a arte de vanguarda participava dos processos de valorização econômica como qualquer outra mercadoria e acresce-se a isso a importância determinante das políticas de institucionalização para sua consagração social.
O exemplo mais marcante da negação da arte promovida pelos situacionistas encontra-se na pintura industrial de Pinot-Galizzio e no detournement de Asger Jorn. Galizzio pintava metros de rolos de tela (chegou a pintar rolos de tela com 70 metros) com variações do expressionismo abstrato. Telas que não podiam ser vistas na integralidade por causa do tamanho e que eram vendidas nas ruas em pedaços cortados para servir como adereços nas roupas ou para qualquer outra coisa. Com detournement, Asger Jorn propunha a radicalização do conceito de bricolagem. Jorn pintava figuras monstruosas sobre pinturas da tradição moderna e com isso se apropriava das imagens produzidas pela arte para produzir nova arte. Ele também trabalhou com a descolagem que desfazia os procedimentos dadás e surrealistas. Tanto Galizzio como Jorn participaram ativamente da primeira fase da Internacional Situacionista e promoveram o processo radical de questionamento sobre o legado da arte moderna (HOME, 2004, p. 55-68).
A consideração geral dos situacionistas era de que o período do Pós-Guerra tinha destruído o projeto da vanguarda entre guerras por meio da institucionalização da arte de vanguarda. Sua institucionalização foi promovida pelos novos museus de arte moderna (programas de promoção e verbas generosas para difusão da arte moderna feitos pela CIA) e o sucesso da arte de vanguarda marcava ao mesmo tempo o esvaziamento de sua mensagem política revolucionária.
Esse esvaziamento ocorre pari passu com a ascensão do mercado e da sociedade de consumo conspícuo. Não só a política como as artes passam a obedecer cada vez mais aos ditames do sistema econômico capitalista e o homem é reduzido a sujeito econômico, que se realiza pelo consumo. Se havia um potencial revolucionário presente no período de 1916 até 1930, que não se tinha realizado para além da arte na própria vida, com a ascensão de uma sociedade de consumo cada vez mais norte-americanizada, as condições da revolução tinham efetivamente mudado e o lugar da arte na sociedade também.
No início da década de 1960, a Internacional Situacionista expulsou Pinot-Galizzio e Asger Jorn se afastou do grupo por discordar das posições de Guy Debord. Os situacionistas iniciaram nessa época um questionamento mais radical do estatuto da imagem no mundo contemporâneo que coincidia com a negação da imagem. Negação do papel fetichista da arte. O próprio filme Hurlements avec Sade (1952) de Guy Debord prefigurou esse estágio da crítica dos situacionistas, da facção francesa, e foi um exemplo convincente da arte como negatividade inscrita na ausência de imagens em um filme de uma hora de duração que provocou alvoroço em sua primeira exibição.
Se a Internacional Situacionista tinha uma posição antiartística que derivou na ausência de uma produção artístico-imagética, com o passar dos anos foi possível aquilatar sua crítica madura da sociedade das imagens. A crítica impetrada por Debord à sociedade de imagens ganhou corpo com seu ensaio “Sociedade do Espetáculo” de 1967. Nele, Debord mostra como na sociedade contemporânea, a economia se desenvolve para si mesma em um processo que dominou completamente as manifestações possíveis da vida e os seres humanos. Nesse momento de alienação, as imagens separam-se da vida e formam um conjunto independente. A mediação agora é feita pela forma mercadoria na qualidade de imagem do mundo, diz Debord:
A alienação do espectador em proveito do objeto contemplado (que é o resultado da sua própria atividade inconsciente) exprime-se assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos ele compreende a sua própria existência e o seu próprio desejo. A exterioridade do espetáculo em relação ao homem que age aparece nisto, os seus próprios gestos já não são seus, mas de um outro que lhos apresenta. (...) O espetáculo é o capital em um tal grau de acumulação que se torna imagem. (DEBORD, 1997: pp. 24-25).
Anselm Jappe observa que a descrição feita por Debord sobre a sociedade das imagens assemelha-se muito às análises de Adorno sobre a televisão em 1952: “‘A televisão permite introduzir sub-repticiamente na cópia do mundo tudo aquilo que se considera oportuno para o mundo real’, dado que ‘mascara a alienação real entre os seres humanos e entre eles e as coisas. A televisão converte-se em sucedâneo de uma imediatidade social que é negada aos seres humanos’” (JAPPE, 1995: s./p.). Tanto Debord como Adorno defenderam que a ideologia cultural era um dos instrumentos mais importantes da dominação social em nossa época; para Debord e para Adorno, a ideologia cultural apresenta-se como a realidade isenta de ideologia. É a partir disso que se pode considerar a imagem como fator de espelhamento da realidade segundo critério muito específico para conservação da dominação social.
Se há concordância entre os dois intelectuais na descrição do momento vivido e na avaliação sobre o potencial brutal de falsificação da realidade construído pela ideologia cultural de nossos tempos, suas conclusões são verdadeiramente opostas. Enquanto Adorno considerava a arte como instância autônoma ainda que constantemente pressionada pelos produtos da indústria cultural, Debord defendia que não se podia falar de autonomia da arte e deveria entendê-la como transmissão de ideias, como parte do processo de comunicação geral da sociedade.
Para Debord, a arte assim como a cultura contribuiriam para a transformação da sociedade e dessa maneira toda arte de vanguarda era considerada transitória e deveria desaparecer. Não se pode esquecer que Debord entendia a cultura como ideologia na medida em que ela era tida como conhecimento autônomo da realidade e pretensão de realização da esfera separada dos condicionamentos da vida e do vivido, da sociedade de classes de nossa época. Não se podia mais sustentar a velha divisão entre infraestrutura e superestrutura:
A cultura é a esfera do conhecimento e das representações da vivência na sociedade histórica dividida em classes; (...) a história (...) cria a autonomia relativa da cultura e as ilusões ideológicas desta autonomia. (...) A cultura é o lugar da procura da unidade perdida. Nesta procura da unidade, a cultura como esfera separada representa sua própria negação. (DEBORD, 1997, p. 119-120).
O veredicto sobre a arte não teria lugar especial na sociedade das imagens ou da ideologia cultural do capitalismo:
Pela primeira vez, as artes de todas as civilizações e de todas as épocas podem ser conhecidas e admitidas juntas. Tal ‘recoleção das lembranças’ da história da arte, ao se tornar possível, é também o fim do mundo da arte. Nesta época dos museus, quando já não pode existir nenhuma comunicação artística, todos os monumentos antigos da arte podem ser igualmente admitidos, pois nenhum deles sofre a perda de suas condições específicas de comunicação, na atual perda das condições de comunicação em geral. (DEBORD, 1997, p. 124).
Mercadoria entre outras mercadorias, tanto a arte como a imagem e a cultura servem de intermediação das relações entre os homens. Elas são literalmente a forma-mercadoria de nossa época na oposição entre valor de uso e valor de troca descrita em O Capital por Marx. Nada resta a fazer do que dizer que Debord entreviu a lógica de reprodução do sistema capitalista atual que se utiliza da cultura como elemento propulsor de seus avanços no mercado global de consumidores ávidos por novidades de toda ordem, seja de gêneros e de produtos de primeira ordem ou não. Consome-se antes de tudo uma maneira de ser de se manifestar o vivido. Dizia Debord: “A cultura tornada integralmente mercadoria deve também se tornar a mercadoria vedete da sociedade espetacular” (DEBORD, 1997, p. 125-126).
Bem assimilada a crítica de Debord, entende-se que o situacionismo fez uma crítica radical do mundo da arte por entender que todos os produtos culturais tinham sido vertidos em produtos de consumo, em esteticismo vazio. O resultado disso pode ser entrevisto hoje no campo das artes. Em geral, houve uma dissolução das práticas artísticas em práticas de crítica da cultura. Arte e vida se aproximaram irremediavelmente com consequências nunca antes vistas, a saber: a estetização da realidade e a irrelevância da arte. Outra coisa não poderia ocorrer em tempos de instrumentalização da vida cotidiana a não ser a realidade que passa a cobrar dos artistas posicionamentos políticos em suas práticas artísticas.
Os artistas de coletivos romperam com o casuísmo anarquista e assumiram posição mais bem definida no âmbito das lutas sociais vigentes no caso da arena brasileira. A coisa deixou de ser estrangeirismo e passou a ser evidência concreta de realidade. Ou seja, a posição mais ou menos progressista ou supostamente “acima de interesses partidários” dos artistas de coletivos se transformou em posições explícitas, ora coadjuvantes dos grupos de ação direta, tidos como herdeiros do anarquismo, contra a política representativa e a estruturação alienante da vida nas grandes metrópoles brasileiras, ora em crítica capitalizada pela oposição de direita representada tanto pelos partidos conservadores como pelos fisiológicos (PSDB, DEM, PTB, etc.) contra o atual governo do Partido dos Trabalhadores (PT).
Isso ocorreu no campo das artes, como sucedeu em outros campos, com uma série de contradições ainda não resolvidas. Entre elas, podemos destacar o fato de os grupos artísticos assumirem posições diversas, muitas vezes opostas, nas manifestações que assolaram o País recentemente, nos veículos de informação e nos espaços da internet. Nada disso pode ser entendido sem uma série de elementos que foram vertidos e subvertidos, tanto de tendência regressiva como transformadora. É preciso entender que estamos vivendo um momento novo para as artes visuais assim como para a política. Se a maior parte das proposições artísticas estiveram restritas, até muito pouco tempo atrás, a pequenos grupos de gente conhecedora do meio, das práticas e das convenções estabelecidas, hoje a atuação desses grupos em combinação com novos agentes sociais nas multidões tende a estabelecer outro patamar de entendimento e fruição da arte.
Trata-se de uma vulgarização dos procedimentos e escolhas artísticas, cujos efeitos podem ser os mais variados possíveis. De todo modo, a funcionalidade estética foi subsumida na ascensão da imagem no mundo contemporâneo e, com isso, a função da arte eminentemente exemplar e combatente da reificação perde seu sentido para se estabelecer no grau zero da indiferença produzida pelo excesso de estímulos sensoriais do mundo midiático e tecnológico de hoje. Em certo sentido, aconteceu nas jornadas de junho de 2013, uma equivalência entre produção artística de coletivos, postagens de fotos, por gente anônima, em redes sociais como no Instagram e no Facebook e cartazes com adágios populares. A performance estetizada da gente anônima na internet é reificação do expediente artístico? Essa equivalência de efeito estético produzido por uma série de imagens feitas ritual e compulsivamente pela multidão diz pouco sobre arte e sobre espaço da política, que não seja o fato de uma tentativa de autorrepresentação dos participantes das jornadas de junho a partir de seus próprios olhares. Espetacularização da arte pela exposição reiterada de elementos essencialmente estetizados, que anula a capacidade formadora da arte e indica a irrelevância dela assim como da política, em um momento em que o espaço instaurado pela política corre o risco de deixar de existir.
Por sua vez, não é difícil de entender que a partir daí a ação dos coletivos artísticos também foi substituída pela de grupos mais assertivos na causa política tais como anarquistas e os Black Blocs e com eles surgiram ampliações dos horizontes de ação da política para além dos marcos da política institucional. A reação para esse estado de coisas foi, por um lado, a ação repressiva do Estado burguês para predomínio soberano da economia de mercado liberal; por outro, o surgimento de vários grupos paramilitares, de milícias e de agremiações de extrema-direita, cujo principal foco é a perseguição de militantes de esquerda, o espancamento de homossexuais, a perseguição de pobres e de negros etc.
Hoje, nas manifestações políticas, o que se vê é justamente um conjunto de ações fora dos limites de mediação da política tradicional e que visa contestá-la. Em várias partes do mundo ocorreu um recrudescimento das lutas sociais. Tanto a forma representativa de democracia como as manifestações populares ficaram reféns da evolução dos acontecimentos nas ruas repercutidos na mídia televisiva e na internet. Em parte isso significa mais democratização das decisões políticas antes reservadas aos grupos tidos como representativos das tendências sociais.
A ação dos Black Blocs é parte desse processo de contestação contra a ordem vigente e os poderes sociais estabelecidos, o que quer dizer que as ações deles foram acompanhadas da reação cada vez mais violenta do Estado burguês, cujo poder de repressão se reverteu contra manifestantes de toda ordem e gerou uma tendência à criminalização do direito de se manifestar, em um processo que ainda está longe de terminar. Com o suceder das reivindicações e dos acontecimentos, entre os indivíduos e grupos Black Blocs, tanto de Gênova e alhures como do Brasil, foram se infiltrando elementos da ordem policialesca, policiais infiltrados, e elementos do crime organizado, de milícias fascistas, que inclusive comentem crimes e incitam a repressão contra manifestantes da sociedade civil organizada e contra os movimentos sociais.
A violência dos Black Blocs foi acompanhada pelos crimes de Estado e pelo aumento exponencial da repressão institucional, e não é por acaso que, acatando sugestão da embaixada dos Estados Unidos e frente às manifestações ocorridas, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, está em curso a votação de medidas de repressão contra atividades ditas terroristas. O Estado se fortalece menos para resolver contendas populares do que para atuar como aparelho repressor das contendas sociais em benefício de grupos dominantes e sobretudo do Capital.
Isso é o resultado do estabelecimento na América Latina e em outras partes do mundo da Lei Antiterrorista norte-americana. De fato, a partir do 11 de Setembro de 2001, com o Patriot Act, foi criado um conjunto de leis antiterroristas para resguardar os Estados Unidos de seus supostos inimigos estrangeiros. Ocorre que essa legislação tornou-se vigente em todas as partes do mundo como um compromisso de filiação com a política de conveniência e submissão das nações, principalmente as periféricas, frente aos interesses dos Estados Unidos. Assim foi realizada a Convenção Interamericana contra o Terrorismo, e assinada em Barbados, em 3 de junho de 2002.
No ano de 2005, o Brasil ratificou essa convenção e a partir daí tornou-se alvo de pressão da embaixada norte-americana para fazer valer os marcos da Lei Antiterrorista em solo nacional. Não se trata de exemplo isolado, na Argentina a aprovação da lei Antiterrorista se deu pela chantagem de se classificar o País como supostamente não confiável para investimentos. Ora, diante disso a lei foi aprovada na Argentina em 2007. A Lei amplia o poder de repressão do Estado sobre manifestações e movimentos sociais por meio de um aparato de forças policiais e de inteligência (incluindo delegados, investigadores e juízes) para agir contra tudo que possa ser classificado como terrorismo ou ação terrorista. O texto da lei não define exatamente quem pode ser um terrorista ou o que é uma ação terrorista e, por consequência, todas as manifestações de movimentos sociais por demandas justas poderiam ser enquadradas neste esquema de controle gerado pelos Estados Unidos. O que fazer? Tanto a arte como a política devem se envolver nesse debate sobre os rumos do Brasil como nação periférica e mal formada. Isso significa, pelo menos, ficarmos atentos com o desdobramento dos acontecimentos no Brasil, tendo em vista as profundas mudanças ocorridas no plano da cultura e da política no mundo contemporâneo.