“A arte está morta, mas eu estou vivo”1, gritou Raymundo Colares antes de jogar uma pedra em um dos vidros da entrada do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em maio de 1970, dias antes da abertura do XIX Salão Nacional de Arte Moderna. A essa altura, Colares já era uma das principais revelações da Arte Brasileira que surgiu no final da década de 1960. Tinha conquistado diversos prêmios em salões e exposições, como por exemplo, o prêmio no Salão dos Transportes e Prêmio IBEU, com o qual ganhou uma viagem aos Estados Unidos e uma exposição no Instituto Brasileiro Norte Americano, em Washington, EUA. Sem dúvida, o mais curioso desse fato é que ele também seria o grande vencedor desse Salão de Arte Moderna, não pela ação/happening, mas sim pelo quadro “Pintura preta e vermelha”, que recebeu o prêmio máximo de viagem internacional.
Mineiro, natural de Grão Mongol, Raymundo Colares desenvolveu sua carreira artística entre as cidades do Rio de Janeiro, Nova Iorque, Milão e Trento. Antes disso, passa sua infância em Montes Claros, em Minas Gerais, e a adolescência, em Salvador, na Bahia, onde começa a realizar seus primeiros trabalhos. Porém, é no Rio de Janeiro que ele começa a desenvolver suas famosas pinturas de ônibus e os livros objetos, Gibis, que o tornaram conhecido na história da arte brasileira. Esses trabalhos carregam bastante da herança construtiva brasileira, apreendidas por ele através de estudos e contatos com pessoas de gerações anteriores, como por exemplo, Lygia Pape e Hélio Oiticica, além de um contato com a pop art, via Nova Figuração Brasileira (Antonio Dias e Rubens Gerchman).
Sua primeira participação pública acontece na famosa exposição Nova Objetividade Brasileira, em 1967, no MAM do Rio de Janeiro. Essa exposição foi um marco importante na história recente da arte brasileira. Junto a essa exposição é divulgado um texto/manifesto, assinado por alguns artistas, chamado de Declaração de Princípios Básicos da Vanguarda, no qual são apresentadas propostas e ideias do que seria uma arte de vanguarda e engajada. Colares é um dos seus signatários. “Quando ocorre uma manifestação da vanguarda, surge uma relação entre a realidade do artista e o ambiente em que vive: seu projeto se fundamenta na liberdade de ser, e em sua execução busca superar as condições paralisantes dessa liberdade”2.
Ele se associa a um grupo de artistas que frequentavam a Escola Nacional de Belas Artes (ENBA). Logo esse grupo, formado por Antonio Manuel, Arthur Barrio, Ascânio MMM, entre outros, vai cruzar a passarela que separa a Cinelândia, local onde funcionava a ENBA, do Aterro do Flamengo, local onde funciona o prédio do MAM Rio. Lá esse grupo irá se juntar a um outro, recém chegado de Brasília (Cildo Meireles, Guilherme Vaz e Luiz Alphonsus). Assim, acaba se formando a geração AI5, como denominou o crítico de arte Frederico de Morais. Não é um movimento com um ideal artístico definido, cada um explorava suas próprias pesquisas, e o grande fator aglutinador era o encontro diário, à tarde, no bar do MAM, onde conversavam e discutiam sobre tudo, desde aspectos artísticos, passando pela política e outros assuntos.
Colares talvez seja o único pintor dessa geração cujos trabalhos não apresentam um lado político explícito. A pergunta que me faço é onde ele se enquadra nesse grupo que foi fortemente marcado por sua atuação política e de alargamento das fronteiras da arte no Brasil. Seria ele um peixe estranho na noite, como sugere o título de um desenho seu de 1966? Minha primeira ação é concordar. Toda a sua trajetória errante e solitária só corrobora esse pensamento. Porém, me debatendo mais sobre as questões, também começo a negá-las. Como definir a performance descrita no início desse texto, sem levar em conta o viés político? E o que dizer de depoimentos de amigos e familiares contando sua atuação política, como por exemplo o depoimento da artista Wanda Pimentel (apud MORAIS, 2012, p.179):
Veja o Caso de Raymundo Colares. Eu e ele éramos muito amigos. Conversávamos bastante. Ele sofria intensamente com a situação política, mas não era de ficar falando. Tenho certeza de que ele interiorizou de modo bem mais profundo do que qualquer um de nós tudo aquilo que estava acontecendo. Mas sendo uma pessoa muito fechada, não sabia como agir.
Precisamos então traçar um novo caminho, uma terceira via. Não acredito que seu trabalho e sua pessoa sejam totalmente apolíticos, também não sou ingênuo de ver relações políticas diretas em suas pinturas com o estado de exceção em que o país se encontrava. Mas a apreensão do movimento através dos ônibus em seus quadros é um caso político e sociológico da condição de transportes e circulação de pessoas e informação das grandes cidades. Além dos títulos bastante sugestivos, como por exemplo, Tentativa de ultrapassagem e Ponto de mudança: ocorrência em uma trajetória, que podem assumir conotações sociológicas e políticas.
Se olharmos mais atentamente os seus livros/objetos, chamados de Gibis, como uma forma de pintura ampliada, e pensarmos em seu suporte e no próprio nome desses trabalhos, algumas associações me vêm à mente, como a famosa série de Cildo Meireles, Inserções em circuito ideológico, onde Cildo insere mensagens políticas em garrafas retornáveis de Coca-Cola, ou escreve em notas de dinheiro, para as mensagens se propagarem. Ou, ainda, o trabalho De 0 as 24 horas, de Antonio Manuel, que após ter uma exposição cancelada no MAM Rio, resolve publicar toda a mostra no suplemento de cultura de O Jornal. Assim como os trabalhos de Meireles e Manuel, podemos entender os Gibis como um veículo próprio criado pelo artista para difundir sua arte e mensagem. Nesse sentido, os Gibis também podem ser associados com algumas questões da arte conceitual que estavam acontecendo no mundo nesse mesmo período. “Artistas como Colares, Oiticica e Bochner exploram questões tradicionais da pintura – composição, cor, forma – em modos que eram mais aceitáveis para a vanguarda artística da época” (ZELEVANSKY, 2004, p.205, tradução do autor).
A obra de Raymundo Colares ainda é pouco conhecida. Alguns trabalhos estão sendo redescobertos e expostos pela primeira vez só agora, como é o caso de seus filmes em Super 8. Novos estudos e análises precisam ser feitos para compreendermos sua complexidade, singularidade e importância para a historiografia da Arte Brasileira.