1. O relógio de ponto

Carlos trabalhou durante cinco anos em um estacionamento, localizado em um edifício, em regime fixo noturno, com uma jornada de 12 horas, em dias alternados. Ele controlava a entrada e a saída de veículos, mas era também sujeito a um tipo de controle especialmente rígido: a cada 25 minutos, deveria acionar um relógio, caso contrário, o mesmo emitiria um sinal e o traço deste sinal poderia ser recuperado pelo supervisor, configurando sua ausência naquele momento. Este instrumento de controle parece o ter afetado, profundamente, deixando sequelas importantes que permanecem e parecem se agravar. Atualmente, durante suas crises noturnas, Carlos só consegue se acalmar após “acionar” um relógio desenhado na parede do seu quarto, simulando o gesto que fazia, repetidamente, durante todas as noites dos cinco anos em que trabalhou naquele condomínio. 1

Transladando o assunto para o âmbito das artes, tropeçamos no trabalho obsessivo de Tehching Hsieh. Confusa ou ausente, a margem que delimita os atos artísticos de sua própria vida nos revela uma produção incrivelmente volumosa que impressiona pelo período compreendido entre concretização e encerramento dos projetos. Um trabalho em particular, a sua segunda Performance de Um Ano (1980-81), tangencia a situação de Carlos descrita anteriormente. Ainda como imigrante ilegal nos EUA, o taiwanês Tehching Hsieh voluntariamente se submeteu ao mecanismo de controle direcionado aos trabalhadores oficiais do sistema, quando, diariamente, registrou sua imagem diante de um relógio de ponto que deveria acionar a cada hora. As diferenças entre o trabalho de Hsieh e o transtorno de Carlos residem sob dois aspectos, tanto na ausência de dias de descanso, como também na frequência de acionamento do relógio, ampliando exageradamente o controle estabelecido para uma jornada de trabalho convencional: chegada, pausa para almoço e saída.

Nas fotografias da performance iniciada em 11 de abril de 1980 e datada para se encerrar precisamente após 1 ano, observamos nitidamente a transformação diária da fisionomia do artista com o avanço da barba e cabelos sobre seu rosto. Outros mecanismos também foram utilizados na documentação de sua ação, como os cartões nominais que registravam os horários e o próprio relógio de ponto. A montagem expositiva das 365 fotos, perfiladas lado a lado, desnuda, diante dos nossos olhos, de maneira aguda, a apresentação diária de nossa rotina, da vida do cidadão médio, condicionada à execução de suas obrigações empregatícias, visando ao alcance e à manutenção dos padrões sociais e econômicos de vida, desfrute e posição digna enquanto um membro produtivo e consumidor na sociedade.


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O ato repetido, diluído nos compromissos pessoais e profissionais aos quais estamos subordinados, não aparenta, através de uma visada superficial, a verdadeira dimensão de seu caráter massacrante. Na obra de Hsieh, a compilação fidedigna e sistematizada da automatização dos atos diários nivela essa conduta com a de um portador de um distúrbio compulsivo, escravo da satisfação patológica de uma necessidade incontrolável e intermitente. Contudo, a ocupação do artista consistia em apenas viver em função dos horários, não havia nenhum trabalho específico a ser realizado ou um salário que recebesse em troca, a não ser o dever de seguir atentamente o regime dos ponteiros. Ainda que a ação não esteja situada em vínculo formal de trabalho, a obrigação de cumprir os mesmos protocolos a nivela com a rotina de todos os demais:

O trabalho é indispensável porque produz riqueza. Mas nem todos os trabalhos, para produzi-la, obrigam a sofrer: alguns são agradáveis, até glorificantes; outros são cansativos, desagradáveis, repugnantes. Quase todos os trabalhos agradáveis são monopolizados pelas elites, os outros são delegados às máquinas ou aos animais ou são impostos aos escravos, aos forçados, aos estrangeiros, aos indigentes e, por último, às classes médias compostas de empregados, de funcionários e profissionais que se iludem de pertencer às classes dominantes, mas que, de fato, representam uma nova forma de casta dominada. (DE MASI, 2001, p. 44).

Por outro lado, distante dos propósitos que movem o mundo capitalista, desvinculada de uma obrigação institucional e financeira que não somente o desejo pessoal do artista, a obra de Hsieh toca de forma potente todas estas questões envolvidas. A oposição entre o cotidiano real e o do trabalho artístico ocorre justamente no terreno de conflito entre desejo e dever, profano e ritualístico. Uma expressão popular ilustra de forma significativa a posição do regente do tempo: quem trabalha de graça é relógio e neste caso, também o artista. E novamente, Carlos em seu depoimento:

O desenho do relógio foi depois que parei de trabalhar. Quando eu trabalhava eu dormia pouco, mas não desenhava ele não. Desenhava assim de brincadeira, em casa, mas eu não chegava a operar ele não... Agora, eu desenho e fico operando ele, depois rasgo. Desenho de novo, rasgo, desenho. (ASSUNÇÃO, 2002, p. 24).


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2. Perca Tempo

Assim como Carlos, outros artistas trabalharam na elaboração de seu próprio instrumento cronológico, porém, resguardando diferenças óbvias entre estes mecanismos, como a finalidade e a postura crítica. Rivane Neuenschwander, em seu Relógios de Flipar (2005), deturpa a função essencial do mecanismo quando determina que sua marcação será fixa: todos os algarismos que o compõe são o zero. A aferição inexistente do tempo congela todos os momentos, meses e dias em uma única medição, ou melhor, em nenhuma. Se seguirmos o dito popular, tempo é dinheiro, este trabalho de Rivane paralisa qualquer contagem.

A conduta de submissão aos recursos de monitoramento adequados à sociedade industrial há muito já não condizem com as possibilidades de flexibilização proporcionadas pelo avanço tecnológico:

Embora das primeiras concentrações industriais até hoje tenham sido inventados o telefone e o fax, os celulares e o correio eletrônico, milhões de empregados e profissionais continuam a se mover entre a casa e o escritório, deslocando-se para onde estão as informações, em vez de receber tais informações na própria casa ou onde mais lhes convier. A recusa do teletrabalho por parte das organizações é um pecado contra a reconciliação do trabalho com a vida, isto é, contra o cumprimento da mais benéfica das revoluções permitidas pela sociedade pós-industrial. (DE MASI, 2001, p. 27).


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Reincidente, a fuga dos parâmetros tradicionais de quantificação surge no relógio preguiçoso de Marilá Dardot, A meia-noite é também o meio-dia (2004), que pode ser visto através de sua dupla-face, cuja aparência e presença são comuns nos ambientes nos quais é imprescindível se ter ciência do horário: em rodoviárias, estações de trem e fábricas. Contudo, uma particularidade de seu funcionamento restringe sua eficácia produtiva na qual o andamento dos ponteiros é forjado: a cada 2 segundos nos relógios convencionais este caminha apenas 1. Desta forma, com seu rendimento pela metade, apenas quando os ponteiros atingem a posição de 12hs a medição coincidirá com a do horário oficial, condição que dá título à obra.

Este tempo dilatado, mais lento, está em completa oposição ao tempo produtivo, veloz, lucrativo, quantificado pela razão inversa entre produção/informação e tempo gasto.


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O Grupo Poro opera na mesma linhagem destas obras, na medida em que propõe pequenas burlagens às relações de poder, subordinação e gerência com a disseminação de frases imperativas de teor subversivo, através de ocupações urbanas como faixas e panfletos. Em uma delas, se lê: PERCA TEMPO. A perda proposta, na verdade, tornar-se-á um ganho: de qualidade de vida, de ócio criativo e reflexivo.


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Na suspensão destes padrões que constituem a realidade em que nos encontramos, quando o artista adapta o relógio – correspondente simbólico do tempo – para operar segundo seu ritmo, evidencia-se uma subversão dos parâmetros de controle, uma perturbação nos padrões de orientação. A “realidade” que se estabelece moldada pelo contexto, segundo Guy Debord (1967), permanece ainda mais questionável:

A materialização da ideologia provocada pelo êxito concreto da produção econômica autonomizada, na forma do espetáculo, praticamente confunde com a realidade social uma ideologia que conseguiu recortar todo o real de acordo com seu modelo. (DEBORD, 1967, p.137).

De maneira mais sutil, o Poro dissemina mensagens similares, desviando o conteúdo publicitário de seu assunto principal, o estímulo ao consumo. Questiona, com uma singela frase, toda a engrenagem que garantiria ao consumidor a satisfação de seus desejos: direcionar seu tempo na aquisição de divisas para gastá-las posteriormente, não necessariamente nesta ordem. Ao deixarmos de agir segundo o fluxo, estamos interrompendo-o ou criando obstáculos, realizando um detournement2.

Apesar do mofo que repousa sobre a Sociedade do Espetáculo e o conceito de Detournement, situados na segunda metade do século passado, “a noção de Espetáculo continua sendo debatida como modelo para explicar algumas transformações promovidas pelo sistema capitalista no último século” (ASSIS, 2006, p.29), bem como suporte referencial para os ativistas contemporâneos e na formação de um repertório poético relevante. Ao observarmos a proliferação de movimentos ansiosos por ocupações do espaço público, objetivando manifestações diversas, do lazer ao protesto, das ações ativistas que se confundem com a noção de ato artístico na semelhança evidente entre a ideologia pretérita com a do presente, acentua-se a maneira por meio da qual essa diluição dos limites reforça esta retomada.

O caráter político que o conceito de trabalhosustenta, contraditoriamente pode aproximá-lo do seu oposto: baderna, ócio e caos. E todos estes conteúdos nos remetem aos procedimentos, ainda pulsantes, do grupo Fluxus e dos situacionistas, ambos embebidos pela noção de desvio, pelo estabelecimento da antiarte e do território das negações. Tímida e institucionalizada, com a parte de sua potência amortizada e embalada para venda – embora pertinente – a abordagem artística do trabalho como antitrabalho ou não trabalho, atualmente, carrega certa poesia quimérica, gauchee uma aura de deslocamento temporal.

1  Relato de estudo de caso em uma série de estudos sobre Saúde Mental e Trabalho. O nome, naturalmente, é fictício. ASSUNÇÃO, Ada; FRANCISCO, João Manuel; LIMA, Maria E. Aprisionado pelos ponteiros de um relógio: o caso de um transtorno mental desencadeado no trabalho. In: Codo, W & Jacques, M. G (orgs). Saúde Mental e Trabalho - leituras. Ed. Vozes, 2002. Disponível em: http://adesat.org.br/userfiles/file/PDF/estudodecaso.pdf

2  Uma tradução aceitável seria “desvio”, mas o termo também carrega o sentido de “rapto” ou “subversão” (DEBORD, 1956; INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1959).

ASSIS, Erico Gonçalves. Táticas lúdico-midiáticas no ativismo político contemporâneo. 2006. Disponível em: http://pontomidia.com.br/erico/rodape/ericoassis-dissertacao.pdf.

ASSUNÇÃO, Ada; FRANCISCO, João Manuel; LIMA, Maria E. Aprisionado pelos ponteiros de um relógio: o caso de um transtorno mental desencadeado no trabalho. In: "Saúde Mental e Trabalho - leituras". Codo, W & Jacques, M. G (orgs). Ed. Vozes, 2002. Disponível em: http://adesat.org.br/userfiles/file/PDF/estudodecaso.pdf

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997 [original: 1967].

_____. Methods of détournement. Nothigness.org, Baltimore, s/d. Disponível em: http://library.nothingness.org/articles/SI/en/display/3. Acesso em: 02 dez. 2005 [original: 1956].

DE MASI, Domenico. O futuro do trabalho: fadiga e ócio na sociedade pós-industrial / Domenico de Masi; tradução de Yadyr A. Figueiredo. Rio de Janeiro: José Olympio, 2001.

DERY, Mark. Culture Jamming: Hacking, Slashing and Sniping in the Empire of Signs. Westfield: Open Magazine Pamphlet Series, 1993. Disponível em: http://www.levity.com/markdery/culturjam.html. Acesso em: 22 jan. 2013.

KLEIN, Naomi. Cercas e janelas: na linha de frente do debate sobre globalização. Rio de Janeiro: Record, 2003 [original: 2002].

LASN, Kalle. Culture Jam: how to reverse America´s suicidal consumer binge and why we must. New York: HarperCollins, 2000.

1  Tehching Hsieh, Performance de 1 ano, 1980-81 (Disponível em: http://www.artvehicle.com/books/259).

2  Tehching Hsieh, Performance de 1 ano, detalhe da instalação na XXX Bienal Internacional de São Paulo (Disponível em: http://www.designboom.com/art/tehching-hsieh-at-gwangju-art-biennale-2010/).

3  Tehching Hsieh, Performance de 1 ano, detalhe da instalação na XXX Bienal Internacional de São Paulo (Disponível em: http://www.designboom.com/art/tehching-hsieh-at-gwangju-art-biennale-2010/).

4  Rivane Neuenschwander, Relógio de Flipar, 2005, Instalação. 28™ Bienal Internacional de Arte de São Paulo. (Disponível em: http://ricksarte.blogspot.com.br/2008/12/rivane-neuenschwander_24.html).

5  Maril· Dardot, A meia-noite É também o meio-dia, 2004. Vista da exposição: Solto, cruzado e junto, galeria Vermelho, São Paulo, 2004. (Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/34388511/22/A-meia-noite-e-tambem-o-meio-dia-2004).

6  Intervenção do coletivo Poro nas ruas de Belo Horizonte (Disponível em: poro.redezero.org).