O cinema novo: cinema de autor
Na criação artística o maior empecilho é o medo. Os autores que criaram grandes obras na América Latina venceram o medo para não sucumbir ao terrorismo do complexo de inferioridade. Eu, inclusive, rompi este complexo no berro.
Glauber Rocha
O final da década de 1950 e início dos anos de 1960 foi um marco para o cinema brasileiro. Depois de tentativas frustradas de se fazer um cinema de superproduções, seguindo moldes hollywoodianos e europeus, pela Companhia Cinematográfica Vera Cruz, que logo viria a sucumbir frente às produções desses que tentava se igualar. Também focada na qualidade técnica de seus projetos, deixando as questões de narrativa e linguagem de lado, o que acabou por afastar o cinema de “autor” dos gêneros produzidos por essa companhia. Em contrapartida, eis que surge o cinema novo, inspirado nas vanguardas francesa e italiana, fortemente direcionadas às questões sociais e artísticas de sua época.
Para Ismail Xavier “filmes de diferentes estilos demonstram a feliz solução encontrada pelo ‘cinema de autor’ para afirmar sua participação na luta política e ideológica em curso na sociedade” (2001, p.51).
Dentro desse contexto, um jovem cineasta ganhava força: Glauber Rocha (1939-1981) considerado um dos nomes de maior proeminência do cinema brasileiro. Diretor, poeta, artista visual, o papel da arte em Glauber é comunicar, comunicar o descaso, a imoralidade, as injustiças sociais, a alienação religiosa, que marcaram seu tempo.
“Com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, frase que seria o slogan deste movimento, Glauber assume sua posição artística e política dentro da sociedade, trazendo à tona questões extremamente polêmicas, através das lentes de sua câmera. Com um estilo único, transmuta a realidade à sua volta em arte, cinema de forte impacto neorrealista, alegórico, por vezes cáustico, o diretor não poupava nada nem ninguém.
Para Glauber, o cinema novo nasce de uma necessidade de expressão artística, social e política do individuo. O termo “autor”, criado pela crítica da época, posicionava o cineasta como “poeta, pintor, ficcionista, autores que possuem determinações especificas [...] O advento do “autor” como substantivo do ser criador de filmes, inaugura um novo artista em nosso tempo” (Glauber, 2003, p.35).
O filme é o espelho que reflete a realidade de uma sociedade, de sua cultura e costumes, de um determinado período. Testemunho, relato, memórias preservadas em som e imagem. O cinema de Glauber Rocha é o relato de sua época, mas não podia deixar de ser menos atual, pois seus filmes atravessaram o tempo/espaço e se colocam nos dias de hoje tão fatuais quanto há quarenta ou cinquenta anos atrás, em que o Brasil vivia uma situação de censura e um governo ditatorial. A política e as relações sociais, culturais e econômicas no Brasil, caminham em passos lentos, por vezes cíclicos. Mudam os atores, mas o roteiro parece ser o mesmo, o que nos faz perceber que o cinema de Glauber é atemporal, permanece vivo e nos traz à tona questões sociais tão próximas da atualidade quanto da época de sua filmagem. Sua arte hoje são gritos sufocados em um país em transe.
O cinema experimental, como forte marca de Glauber, o aproximou de outro diretor também polêmico: Jean-Luc Godard. Desse encontro, além da troca de experiências e discussões sobre o rumo do cinema Latino Americano, Glauber faria uma pequena participação no filme de Godard O Vento do leste (1970).
Na cena (Figura 1), Glauber aparece em uma encruzilhada, indicando caminhos, “o espantalho”. Uma referência também a Lewis Carroll, onde a personagem Alice encontra o gato de Cheshire, que lhe indica os caminhos que ela deve seguir. No filme de Godard, uma moça grávida carregando uma filmadora nas costas se aproxima e pergunta a Glauber “qual o caminho do cinema político?” Toda a cena transcorre ao som do refrão de “Divino Maravilhoso” música de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Enquanto Glauber repete o refrão “é preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”, a jovem se aproxima e lhe pergunta:
Jovem - Perdão camarada, que eu lhe interrompa em sua luta de classes, tão importante, mas pode me dizer qual é o caminho do cinema político?
Glauber - Para lá (apontando em uma direção) é o cinema desconhecido, o cinema de aventura. Por aqui (apontando em outra direção) é o cinema do terceiro Mundo, é um cinema perigoso, divino e maravilhoso. (Godard, 1970, tempo: 58:21).
E é esse cinema “perigoso, divino e maravilhoso” que Glauber defendia. Um cinema que não se prenda à técnica da superprodução, que não se curva ao conceito de cinema comercial norte-americano, que não se subjulga a um mercado midiático e parcial. Ele buscava um cinema autoral, onde a grande força criativa é o diretor. Conforme Xavier: “Há cineastas que assumem: ’filmarei a meu modo, definirei minha poética’, e seu estilo entra em forte conflito com as convenções. Cito Glauber Rocha” (2001, p.59).
Para Glauber, enquanto o cinema comercial é a tradição, o cinema de autor é a revolução:
É uma categoria alienada? Não, é a nova ordem que se impõe num dialogo feroz como mundo através do mito especifico do século. O autor é o maior responsável pela verdade: sua estética é uma ética, sua mise-em-scène é uma política. [...] A política do autor é uma visão livre, anticonformista, rebelde, violenta, insolente. É necessário dar o tiro no sol: o gesto de Belmondo no início de À bout de souffle define, e muito bem, a nova fase do cinema. Godard apreendendo o cinema, apreende realidade: o cinema é um corpo-vivo, objeto e perspectiva. O cinema não é um instrumento, o cinema é uma ontologia. (GLAUBER, 2003, p.38).
E é nesse apreender realidade através da lente da câmera e transmutá-la em arte, que buscavam esses cineastas. Glauber, ao filmar o curta metragem Maranhão 66 (1966), encomendado pelo então eleito governador José Sarney, ele não busca simplesmente compactuar com o político, como muitos erroneamente pensam. Há uma sacada muito maior por trás dessa intenção de aceitar essa empreitada, mas é preciso, para isso, que o espectador desse cinema novo compreenda as entrelinhas da obra do cineasta. E para se compreender Glauber é preciso ir além da passividade visual e enxergar a denúncia do descaso dos governantes para com seu povo. E Glauber vai além de seu curta-metragem e se utiliza das cenas colhidas neste projeto para então dar vida a esse primeiro olhar, e dirigir sua obra prima, o longa-metragem Terra em transe (1967).
Pra se compreender o cinema novo, é necessário que o espectador se permita sair da sua zona de conforto, de aceitação passiva do universo imagético que nos é bombardeado desde o primeiro momento em que abrimos nossos olhos. É necessário um olhar crítico, uma mente questionadora, ter a compreensão do outro, do artista que nos coloca frente à sua arte, transpor a barreira que separa a atividade da passividade.
Pintura e Cinema na estética Glauberiana
Seu primeiro longa-metragem, Barravento, estreou em 1962. Nesse filme, Glauber conta a história de um grupo de pescadores pobres e denuncia a alienação religiosa em que vivem. Preocupação constante do diretor em outras películas, como também no longa Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964). Neste segundo filme, Glauber busca alimento para seu argumento na literatura de cordel. Juntamente com Terra em Transe (1967) e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), são filmes que fazem uma critica social ferrenha à alienação política e religiosa das populações de baixa renda, ou para a época, "classes dominadas“.
Dos curtas-metragens, os dois que foram, e ainda são, casos de maior polêmica são: Maranhão 66 (1966), já citado; e Di Cavalcanti di Glauber (1977), premiado como melhor curta no Festival de Cannes. Um dos mais polêmicos devido à repercussão que teve, tendo sido proibida sua exibição pela justiça desde 1979, solicitação judicial feita pela família do pintor.
O crítico André Bazin em seu texto Pintura e Cinema articula sua crítica à forma como a pintura perde seus atributos quando projetadas na grande tela. O autor discorre sobre alguns filmes de sua época que trouxeram esse tema para o cinema, como o exemplo do curta-metragem Van Gogh (1947) de Alain Resnais. Após a publicação póstuma do texto em 1958, muitos foram os cineastas que trouxeram pintores ilustres e suas obras às telas do cinema, seja de forma biográfica ou mesmo apenas como referência a algumas pinturas específicas. Cada diretor impõe seu próprio estilo em seus filmes. Por vezes também percebemos uma busca do diretor em dar ao filme, quando biográfico, o estilo do traço do pintor, como é o exemplo de Love is the Devil: Study for a Portrait of Francis Bacon (1998) do diretor John Maybury. O filme trata de um determinado período da vida do pintor Francis Bacon e sua relação conturbada com seu parceiro, dependente químico. No filme percebemos que o diretor se utiliza de diversas técnicas para criar imagens distorcidas e confusas, tentando, talvez, forçar uma aproximação com a pintura de Bacon.
Seja através do primor técnico de Peter Greenaway em Nightwatching (2007), filme que conta a vida do pintor holandês Rembrandt (1606), focando especialmente o período em que produziu "Ronda Noturna" (1642), seja a irreverência do cinema experimental de Jean-Luc Godard, como no caso do filme Passion (1982), o certo é que cada diretor nos traz uma nova obra de arte, como por fim iria admitir Bazin:
Não se deve julgá-los somente com referência à pintura que eles utilizam, mas em relação à anatomia, ou antes, à histologia desse novo ser estético, que surgiu da conjunção da pintura e do cinema. [...] O cinema não vem “servir” ou trair a pintura, mas acrescenta-lhe uma maneira de ser. [...] o filme de pintura é uma simbiose estética entre a tela e o quadro, como o líquen entre a alga e o cogumelo. Indignar-se com isso é tão absurdo quanto condenar a ópera em nome do teatro e da música (BAZIN, 1985, p.176).
E obviamente não poderia ser diferente com Glauber. Quando da morte de seu amigo Di Cavalcanti, o diretor decide presta-lhe uma homenagem. Com uma câmera na mão e essa ideia na cabeça, segue em direção ao Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, onde era velado o corpo do artista plástico Di Cavalcanti. Ele filma o enterro do pintor e produz um curta-metragem, onde imprime sua marca de “autor”: não menos polêmico, não menos violento, não menos contestador e não menos revolucionário do que já mostrara ao longo de sua carreira. O curta sai ao estilo glauberiano de se fazer cinema, maneira inconfundível, única e inigualável. Ao transpor as pinturas de Di Cavalcanti para as telas, ele coloca-as sob uma nova perspectiva, a do seu imaginário. É uma nova obra de outro artista.
Sob o título da primeira estrofe do poema de Augusto dos Anjos Versos Íntimos (1901) Glauber inicia seu curta-metragem:
Ninguém assistirá ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável! (ANJOS apud GLAUBER, 1977, tempo: 00:03).
O cineasta alterna acordes de tragédias, nas cenas do velório, com a alegria carioca do samba quando traz à tela as cenas onde mostra os quadros do pintor enquanto o ator António Pitanga, representando Orfeu, dança alegremente em frente às pinturas de Di Cavalcanti. Em outro momento, ainda do velório, Glauber narra como se estivesse narrando uma partida de futebol, alternando com o tom jornalístico em outras tomadas.
Uma ode ao artista e amigo que jaz em seu leito. Sem em nenhum momento abandonar o tom de denúncia às atrocidades da época: “Amigo Di Cavalcanti a hora é grave, é inconstante. Tudo aquilo que prezamos, o povo, a arte, a cultura, vem sendo desfigurado pelos homens do passado que, por terror ao futuro, optaram pela tortura.” (GLAUBER, 1977, tempo: 3:48).
Como um “protestante existencialista”, para Glauber a morte não é uma tragédia, e ele imprime em sua película o tom festivo dos mexicanos ao lidarem com a morte. E entre casarios de favelas, mulatas e pescadores, telas de Di Cavalcanti, o diretor autor vai dançando na poesia surrealista de câmera, traduzindo sua cumplicidade do olhar que flui diante das telas do pintor em seu “Ritual Alternativo”:
Filmar meu amigo Di morto é um ato de humor modernista-surrealista que se permite entre artistas renascentes: Fênix/Di nunca morreu. No caso, o filme é uma celebração que liberta o morto de sua hipócrita-trágica condição. A Festa, o Quarup - a ressurreição que transcende a burocracia do cemitério. Por que enterrar as pessoas com lágrimas e flores comerciais? Meu filme, cujo título, dado por Alex Viany, é Di-Glauber, expõe duas fases do ritual: o velório no Museu de Arte Moderna e o sepultamento no Cemitério São João Batista. É assim que sepultamos nossos mortos. Chocado pela tristeza de um ato que deveria ser festivo em todos os casos (e, sobretudo, no caso de um gênio popular como Emiliano di Cavalcanti) projetei o Ritual Alternativo; Meu Funeral Poético, como Di gostaria que fosse, flui... o símbolo da Vida... (GLAUBER, 1977)1.
Uma produção independente, tempo escasso, pouca verba, o próprio Glauber, brincando com seu mundo inconsciente imagético e riquíssimo, atua como personagem, e faz de personagens pessoas que estavam no velório, como ele mesmo descreve:
No campo metafórico transpsicanalítico materializo a vitória de São Jorge sobre o Dragão. E, no caso de uma produção independente, por falta de tempo e dinheiro, e dada a urgência do trabalho, eu interpreto São Jorge (desdobrado em Joel Barcelos e Antônio Pitanga) e Di-O Dragão. Mas curiosamente Eu Sou Orfeu Negro (Pitanga) e Marina Montini, dublemente Eurídice (musa de Di), é a Morte. Meus flash-backs são meu espelho e o espelho ocupa a segunda parte do filme, inspirado pelo Reflexos do Baile, de Antônio Callado, e Mayra, de Darcy Ribeiro. Celebrando Di recupero o seu cadáver, e o filme, que não é didático, contribui para perpetuar a mensagem do Grande Pintor e do Grande Pajé Tupan Ará, Babaraúna Ponta-de-Lança Africano, Glória da Raça Brazyleira! A descoberta poética do final do século será a materialização da Eternidade (GLAUBER, 1977)2.
A poesia transborda através das lentes de Glauber, rasga, perfura, atravessa nossos sentidos, são como socos no estômago de seus censores, perturbam, incomodam. É pelo gesto da ação da mão, que guia a câmera objeto extensão do olhar, busca na imagem visível dar forma ao pensamento, construir uma cena baseada em um conceito mental, o filme é esse espelho do labirinto do inconsciente do autor.