Imagem da Cidade, Cultura Visual e Estética
A cidade pode ser compreendida como uma grande construção no espaço, ou como uma obra de arquitetura em grande escala. Na cidade, “a cada instante, há mais do que o olho pode ver, mais do que o ouvido pode perceber, um cenário ou paisagem esperando para serem explorados”. (LINCH, 1997, p.1). Ela pode também ser experimentada como um museu a céu aberto, no qual se encontram diversificadas obras. Essa experiência parte da concepção de que as obras de arte ou de arquitetura representam a materialização de ideias em formas concretas e sensíveis, prontas para serem esteticamente apreciadas pela população. Para Hegel (1997, p.163) “A primeira realização da arte é representada pela arquitetura”.
Uma bela e aprazível cidade não significa ser aquela que possua diversos espaços e elementos belos, até porque o conceito de belo é subjetivo. A beleza da cidade pode ser atribuída por sua clareza ou legibilidade, pois estes atributos promovem a qualidade visual do ambiente. Uma boa imagem ambiental oferece ao seu observador um importante sentimento de segurança emocional, estabelecendo-se uma relação harmoniosa entre ele e o mundo à sua volta. A clareza e legibilidade de uma cidade dependem da organização dos elementos estruturadores do espaço, como vias, bairros, limites e marcos, de maneira legível. Estruturar e identificar o ambiente são capacidades vitais entre os animais que se locomovem. Indicadores como as sensações visuais de cor, forma, movimento ou polarização da luz, além dos sentidos como o olfato, a audição, o tato, a cinestesia, o sentido de gravidade e, talvez, campos eletromagnéticos são fundamentais para o senso de orientação dos animais dentro do seu ambiente (LINCH, 1997, p.3-7).
O ambiente urbano é sem dúvida um fenômeno, e sua população não é apenas observadora deste fenômeno, ela é parte dele. A cidade apresenta-se como fenômeno porque é uma coisa (ente) que se encontra em constante manifestação, ao mesmo tempo em que é vista. Ela se mostra sob diferentes ângulos, atmosferas, incidência de luz, sentidos e significados, ao mesmo tempo em que é percebida sob essas variáveis. “Nesse sentido nenhuma coisa pode ser separada de alguém que a percebe. As coisas são sempre humanas na medida em que se colocam sempre no meio que meu corpo e suas explorações abrem” (LACOSTE, 1996, p.98). Enquanto fenômeno, a cidade não pode ser visível ou compreendida em sua totalidade (sob todas as manifestações possíveis) em um determinado momento. A cidade não para e nem está em busca de um resultado final. Ela caracteriza-se por uma sucessão de diferentes fases, sejam econômicas, sociais ou espaciais.
A apreensão do espaço pode se dar através de uma espécie de pensamento corporal. Para Lacoste, Merleau-Ponty define o conceito de “cogito corporal” como se o corpo assumisse o lugar da consciência, tornando-se o sujeito ativo da percepção e permitindo que a assimilação do ambiente seja experimentada através do corpo. O olho vê em conjunto com os outros sentidos, e o conhecimento do espaço se dá através do deslocamento do corpo, e nesse movimento é possível perceber as possibilidades e limites do ambiente (LACOSTE, 1996).
Enfim, a imagem ambiental é o resultado de um processo bilateral, entre observador e seu ambiente, onde o observador através da legibilidade do espaço seleciona, organiza e confere significado àquilo que vê (LINCH, 1997, p.7). Durante esse processo, o espaço passa à condição de lugar. O espaço transforma-se em lugar na medida em que adquire definição, significado e uma carga emocional para o observador. Quando se pode entendê-lo, coordená-lo através dos sentidos, conhecimento e sensações, o espaço torna-se lugar (TUAN, 1974, p.106-107).
Para Tuan, “as mais intensas experiências estéticas da natureza possivelmente nos apanham de surpresa. A beleza é sentida, como o contato repentino com um aspecto da realidade até então desconhecido [...]” (TUAN, 1974, p.108).
Os aspectos dualistas lugar/espaço, frequente/eventual, valorizado/desvalorizado, conhecido/desconhecido, utilizado/inutilizado ocorrem através do reconhecimento do objeto pela população e pelos significados que ele transmite. Porém, existem outras percepções que rompem com esses dualismos, possibilitando outros olhares sobre as Friches Industriais Pelotenses. Esta ideia pode ser confirmada nas palavras do jornalista Rubens Filho2 quando, referindo-se ao vídeo “Dark City” de Paulo Momento, diz:
Sei bem do fascínio por esse lado “dark” pelotense. Ele entra no nosso imaginário ainda na infância, associado à ruína predial, à umidade, à ferrugem, a mofos, musgos e liquens. Há algo de triste e doce que nos remete à melancolia, ao abandono existencial, à desesperança na história, ao fracasso de uma época, mas que também nos incita à necessidade de reinvenção.
Partindo da ideia de que nada é absoluto, e de que entre os dualismos podem existir outras possibilidades, as Friches, objeto em estudo, podem ser visualizadas sob uma nova narrativa inserida no ambiente urbano.
A cultura visual contribui muito para que essa nova narrativa seja possível, pois ela constitui-se em um campo de estudos inter e transdisciplinar em torno da construção do visual nas artes, na mídia e na vida cotidiana. Através dela é possível estabelecer nexos entre problemas, lugares e tempo, chamando a atenção para a função das imagens em diferentes sociedades e diferentes contextos históricos. Assim, a apropriação de um significado pré-existente pode ser incorporado em outra realidade. A cultura visual também possibilita o desenvolvimento de um “alfabetismo visual crítico” (HERNANDES, 2007, p.21-61).
De maneira geral, a população busca lugares familiares em seu meio urbano que estejam carregados de memórias significativas e que possam gerar-lhes estabilidade psíquica e social (DEL RIO, 1990, p.96). Relacionando essa busca emocional no ambiente construído com a paisagem urbana e com o patrimônio arquitetônico de Pelotas, observa-se que o entorno dos lugares onde se encontra o patrimônio arquitetônico de estilo eclético são os mais cultivados e explorados para eventos por parte do poder público, e mais frequentados pela população, tornando-se consequentemente lugares mais valorizados de maneira geral. Enquanto isso, os locais onde se encontram as friches são menos cultivados, frequentados, e consequentemente menos valorizados. Sob o ponto de vista econômico e imobiliário, ambos os espaços são valorizados, pois se localizam privilegiadamente nas áreas em torno do centro da cidade e dispõe de infraestrutura urbana.
O conceito de friche
O conceito original de friche está relacionado à mudança de estrutura ou de ciclos econômicos e sua imagem carrega significados relacionados ao fracasso e à decadência, isso devido à situação de abandono e degradação em que as antigas plantas industriais se encontram, porém, eles são portadores de valores históricos e arquitetônicos desconhecidos pela população e não cultivados pelo poder público.
A friche industrielle é um objeto de estudo recente dentro da história da humanidade, pois é um fenômeno consequente da revolução industrial. A expressão francesa friche não encontra no português uma palavra que traduza o significado do seu fenômeno nos aspectos sociais, econômicos e espaciais, desta forma utiliza-se a terminologia estrangeira Friches Industrielle ou Urbaine para se referir aos vazios industriais, no meio urbano, provenientes do processo de desindustrialização. Conforme Mendonça, um dos precursores desse conceito foi Jean Labasse, geógrafo francês, que em 1966 associou o conceito de friches sociales (vazio social), ao de ciclo industrial e descentralização industrial. A outra expressão é a de “friches urbaines”, que significa “Terras livres e abandonadas no meio urbano e na periferia por não terem sido cultivadas ou construídas, onde há demolições de edifícios, fábricas ou instalações provisórias, e também os antigos quarteirões de fábricas e vilas operárias” (MENDONÇA, 2007).
Muitas cidades europeias apresentam friches como consequências de mudanças da estrutura econômica, do declínio das indústrias e das guerras. No Brasil, há friches industriais em diversas cidades, principalmente naquelas que tiveram um passado industrial significativo e foram sucedidas por crises econômicas, ou pelo deslocamento dos espaços industriais para áreas periféricas ao perímetro urbano, como os Distritos Industriais. Pelotas pode ser enquadrada neste contexto, pois era uma cidade rica e produtiva e com a quebra do Banco Pelotense, posterior à crise financeira mundial em 1929, iniciou um processo de crise econômica cujos efeitos são percebidos até os dias de hoje.
Essas friches requerem atenção tanto pela importância de se preservar a memória do período de industrialização da cidade e do zoneamento destinado à implantação desses antigos lugares de trabalho, como também pelos efeitos sociais negativos gerados pelo abandono, como insegurança, invasão e vandalismo que intensificam a desvalorização da imagem da cidade. Além disso, existe uma Carta Patrimonial, elaborada pelo Comitê Internacional para a Conservação do Patrimônio Industrial – TICCIH que ampara este tipo específico de patrimônio, denominada Carta de Nizhny Tagil sobre o Patrimônio Industrial3. Apesar da Carta não utilizar a expressão Friche, ela contempla a proteção dos remanescentes industriais:
O Patrimônio Industrial deve ser considerado como uma parte integrante do patrimônio cultural em geral. Contudo, a sua proteção legal deve ter em consideração a sua natureza específica. Ela deve ser capaz de proteger as fábricas e as suas máquinas, os seus elementos subterrâneos e as suas estruturas no solo, os complexos e os conjuntos de edifícios, assim como as paisagens industriais. As áreas de resíduos industriais, assim como as ruínas, devem ser protegidas, tanto pelo seu potencial arqueológico como pelo seu valor ecológico (TICCIH, 2003).
A partir da cultura visual, o objeto friche industrial pode ser compreendido como um fenômeno inserido no espaço urbano, pois possui uma trajetória histórica, transmite diferentes ideias e se relaciona com a população em diferentes momentos e de diferentes formas. Ele pode também ser ressignificado e compreendido como objeto artístico contemporâneo, uma vez que representa um espaço de transformação da cidade e possibilita um local de fruição à medida que se desencadeia seu processo de degradação.
Baseado na concepção de arte e arquitetura pode-se dizer que o edifício industrial, antes de se tornar um friche, foi concebido sob a ideia de abrigar lugares de trabalho e se relacionar com os indivíduos através de um sistema de produção. A materialização desta ideia deu-se pela construção desses edifícios, com suas tipologias características. Logo, esses lugares são portadores de valor artístico e arquitetônico. Atualmente, esses espaços contêm apenas parte de sua ideia original, já que o todo não é compreendido devido às lacunas causadas pelo processo de degradação.
Conforme a Carta de Nizhny Tagil, “o patrimônio industrial deve ser considerado como parte integrante do patrimônio cultural em geral” (TICCIH, 2003), portanto a proteção legal e reutilização desses espaços promoveriam a diversidade do patrimônio arquitetônico e cultural da cidade, e fortaleceriam a qualidade visual do ambiente.
O Patrimônio Arquitetônico e as Friches Industriais Pelotenses
O acervo arquitetônico de Pelotas/RS está diretamente ligado à história socioeconômica da cidade, cujo patrimônio foi edificado refletindo os ideais cultivados em cada um dos diferentes períodos. Conforme Moura e Schelee (1998, p.17-18), pode-se representar a história de Pelotas sob os aspectos arquitetônico, econômico e cultural.
Sob o aspecto arquitetônico, o centro histórico (formado pelos dois primeiros loteamentos) da cidade de Pelotas passa da linguagem luso-brasileira, ao ecletismo, ao modernista e ao pós-modernista desde sua fundação (início do século XIX) até o final do século XX. E, sob o aspecto econômico-cultural, a cidade passou por variados níveis econômicos, desde prosperidade econômica no ciclo do charque, seguida por uma estagnação, com nova subida econômica no período industrial. Esses períodos permitiram a construção de um denso capital cultural, o que a trouxe aos dias de hoje a uma recuperação e exploração do mesmo.
Em 1815, foi criada a planta do primeiro loteamento da área urbana de Pelotas. O processo inicial para a urbanização na cidade de Pelotas foi desencadeado pela atividade saladeril, cuja concentração de riqueza gerada pela produção do charque promoveu o surgimento de uma forte aristocracia local, que aspirava pela construção de um espaço urbano para o desenvolvimento das relações socioculturais. As residências particulares, os prédios e espaços de uso coletivo construídos nessa fase refletiam os costumes e ideais socioeconômicos desse período, os quais estavam ligados à cultura europeia.
Assim, o primeiro loteamento urbano foi construído com um patrimônio arquitetônico expressivo e representativo da opulência e do ideário aristocrático da elite dominante daquela época, o qual está impresso até hoje, de forma indissociável, na paisagem urbana.
Mesmo com todo o poder que a indústria do charque possuía na região, ela não foi capaz de se manter como a principal atividade econômica na virada para o século XX. A abolição da escravatura, em 1888, afetou diretamente essa atividade, provocando uma forte crise, que foi acentuada pela concorrência da produção saladeril da Argentina, que utilizava mão-de-obra livre. Além disso, é com a vinda de imigrantes europeus, especialmente alemães, com perfil empreendedor e dispostos a investir em novas tecnologias, que a cidade passa a adquirir uma nova economia, a industrial. (BRITTO, 2011).
A localização das primeiras indústrias na zona urbana acabou seguindo a lógica capitalista, já que não existia na época um ordenamento estipulado pelo Estado. A maioria das indústrias se concentrou nas imediações da zona portuária e da malha ferroviária, em razão das vantagens para a circulação das mercadorias e, consequentemente, para o desenvolvimento da atividade industrial.
A industrialização trouxe consigo, além do desenvolvimento dos meios de transporte, das obras de saneamento, das construções de estradas federais e estaduais, a transformação das relações e significados entre a sociedade, o tempo e o espaço, típicos do processo de modernização das cidades.
Assim, o período industrial compreendido entre fins do século XIX e meados do século XX contribuiu para a expansão urbana, que foi se desenvolvendo, consolidando e construindo um patrimônio arquitetônico e urbano representativo da ascendente burguesia industrial e comercial, baseado nos ideais positivistas, nacionalistas e modernistas, que representavam o espírito daquela época. Este patrimônio também se encontra indissociável da paisagem urbana, porém, numa situação de degradação e esquecimento.
Atualmente, Pelotas convive com ruínas e vazios industriais localizados principalmente nos bairros Porto, Simões Lopes, Fragata, ou seja, nos arredores da antiga Estação Férrea e do Cais do Porto (no segundo loteamento e arredores). Mesmo que degradados e esquecidos, estes espaços, denominados de Friches Industrielles, são portadores de valores históricos e arquitetônicos, pois eles contêm os vestígios do Patrimônio Industrial Pelotense. Eles encontram-se inseridos na paisagem urbana numa condição de inutilidade e indiferença em relação à cidade, pois se localizam em áreas privilegiadas, com infraestrutura disponível, sem se integrarem às funções sociais e sem fortalecerem a memória do patrimônio industrial da cidade.
Considerações finais
Trazer à tona os valores, histórico e arquitetônico, contidos no patrimônio industrial da cidade, só tem a contribuir para o consagrado acervo arquitetônico pelotense, constituído em sua maioria por edifícios de estilo eclético oriundos do período da cultura do charque.
Existem diversas iniciativas de valorização desses espaços urbanos degradados, através da sua reutilização, restauração e/ou revitalização. Alguns exemplos são o do “Brásmitte” que é um projeto artístico que se refere a dois centros urbanos em ruínas: o Brás em São Paulo e o Mitte em Berlim; e a Antiga Fábrica da Brahma em Porto Alegre transformada em Shopping Center. Essas iniciativas foram possíveis através de ações políticas e culturais de salvaguarda, conjuntas entre poder público e iniciativa privada.
Por outro lado, o que se observa hoje é que a degradação dos prédios proporcionou a esses espaços o aparecimento de novos elementos sensíveis, como aromas, cores e sons, formas e texturas diferenciadas, os quais oferecem aos seus apreciadores uma experiência estética diversificada em relação às oferecidas em outros espaços da cidade. Os apreciadores desses lugares geralmente são exploradores urbanos4 ou catadores5, ou seja, pessoas que buscam romper com os dualismos, se permitindo encontrar novas formas de ser e estar no meio urbano.
Dessa maneira, as friches adquirem um novo caráter artístico, oferecendo à cidade novos elementos para serem ressignificados, no momento em que expõem seus registros visuais, impressos na pátina, nos musgos, e nas ruínas, transmitindo uma emoção barroca que pode ser captada pelo drama da degradação, do abandono e da decadência, sentimentos opostos àqueles que conceberam o referido objeto. Enfim, as friches também são fenômenos reais inseridos no meio urbano, se colocando à mostra para quem quiser ver e conhecer, provocando e despertando para novos valores e realidades. “Uma obra contemporânea não transforma o mundo em arte, ao contrário, solicita o espaço do mundo em comum para nele se instalar como arte”. (TASSINARI, 2001, p.76).