Um pé diante do outro e já saímos de onde estávamos, ou como dizia Chico Science: “um pé à frente e você não está mais no mesmo lugar”. Partindo dessa ideia de deslocamento e do caminhar, trago comigo alguns questionamentos. Quantos passos me separam de você? Quantos passos te separam do seu próximo destino? Sua quantidade de passadas é igual às minhas? Pensando, inicialmente, sobre medidas espaciais não oficiais entre um caminho e outro, é que surge o projeto De casa para o trabalho, do trabalho para casa.

A definição de caminhar no dicionário pode ser compreendida como percorrer caminho a pé. Mas podemos buscar outras palavras que se relacionam com o mesmo ato, a exemplo de: percurso, trajeto e perambular. Porém, o perambular do artista não consiste apenas em vagar pelas ruas, é algo próximo do conceito do flâneur. E como nos fala João do Rio (2009, p.28) em “A alma encantadora das ruas”: “[...] É vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente dez mil coisas necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente adiadas”.

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Pensar esses percursos entre saída e chegada é o que me interessa, questionando as medidas espaciais oficiais (quilômetros, metros, centímetros, milímetros), chego a uma necessidade de trazer questões individuais e utilizar o meu corpo como parâmetro de medida espacial. O tamanho do meu passo não é o mesmo que o seu, e nem caminho da mesma forma todos os dias: muda se tenho pressa, se estou feliz ou triste, muda devido a várias questões.

O fato de começar a contar os meus passos surgiu porque o meu pai-avô tinha como hábito tal prática. Isso sempre esteve presente na minha vida, pois ele fazia diversas contagens. Lembro que contávamos árvores ou animais de Orós (interior do Ceará, onde nasci), para Fortaleza, em viagens que fazíamos juntos. Então, essas memórias se tornaram mais potentes no momento em que eu buscava maneiras pessoais de medir espaços percorridos.

A partir da condição de medir distância, escolhi para esse projeto o trajeto que faço para ir e voltar de casa para o trabalho. Tanto a contagem de passos como o acúmulo desses dados é algo muito burocrático e próximo de um ambiente de trabalho. Mas, que, ao mesmo tempo, começo a pensar nesse percurso que irá ser o mesmo, tanto na ida como na volta, durante um ano, (iniciou no dia do meu aniversário). Contudo, a cada dia a experiência de estar naquele lugar nunca será igual. E daí começa a entrar questões subjetivas em contraponto à obsessão burocrática por contar passos.

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Como diz Gabriel García Márquez (2003, p.63): “A vida não é o que se viveu, mas sim o que se lembra, e como se lembra de contar isso”. Penso os fragmentos de uma existência em meio ao um turbilhão de acontecimentos, agora que escrevo este texto, muita coisa acontece no mundo, e não conseguimos abarcar tudo... É disso que o trabalho trata, de contagem, de medida espacial corporal e de memórias fragmentadas da experiência na cidade. O que importa no percurso é o que existe entre esses lugares, então, nem o número de passos, nem a experiência diária se repetem.

Para a artista e pesquisadora Lilian Amaral (2011, p.01):

A configuração das cidades seria outra caso usássemos nosso corpo-andante de outro jeito. Flanar, vagar, derivar, errar configuram-se como motores para pensarmos para além da arquitetura sedimentada, desviando-nos para perseguir a possibilidade de uma cidade performativa.

É justamente nessa atuação performativa que penso a forma como me relaciono com a cidade, seja com um trabalho de arte ou caminhando de maneira mais lenta no meu dia a dia, essa condição pode ser vista como uma prática de errante, que se contrapõe a velocidade imposta pela sociedade atual; poderíamos ver a lentidão também como uma postura política, porém de maneira não panfletária.

Em palestra realizada no New Museum of Contemporary Art, em Nova York, em 18 de fevereiro de 1982, sobre arte e política, a artista cubana Ana Mendieta falou sobre a relação de poder e controle pela classe dominante e pensamento sobre expansão comercial e de controle internacional. Ela completa: “Acreditem, amigos, o imperialismo não é um problema de extensão, mas de reprodução”. Vivemos, com a globalização, uma era de reprodução de modelos, inclusive na nossa forma de se relacionar com a cidade. Assim como Mendieta, acredito na independência da atividade artística e na forma como vivenciamos a cidade.

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Que nossa existência seja marcada pela desorientação e não por reproduções. A cidade deixa de ser um simples cenário no momento em que ela é vivida e experimentada. “A errância urbana seria uma apologia da experiência da cidade, um tipo de ação que poderia ser praticada por qualquer um. Um dispositivo para ampliação da percepção” (AMARAL, 2011, p.05).

Por meu percurso ser muito específico, questões trabalhistas se tornam presentes e geram alguns questionamentos: Quando de fato começamos a trabalhar? E quando retornamos a nossa vida pessoal? Eu como artista, que estou fazendo um trabalho, no ir e no retornar do meu outro trabalho (atuo como designer), quando de fato estou trabalhando como artista?

Dentro desse processo venho pensando outras possibilidades além da quantidade de passos e dos acontecimentos diários. Dentre elas, estão as formas de contagem: o debulhar de dedos, os traços desenhados de caneta na palma da mão e um contador manual (três maneiras utilizadas, até o momento). A partir disso, cheguei a um trabalho bastante conceitual, três formas de representar a mesma coisa, a contagem.

Enquanto o trabalho segue em desenvolvimento, tudo pode acontecer. Sigo caminhando e contado: 5289 passos, 5656 passos, 4881 passos, 4697 passos, 4423 passos, 5495 passos, 4725 passos, 4486 passos, 5781 passos...

AMARAL, Lilian. Coletivo Expandido: flanar, vagar, derivar, errar. Quando o encontro se transforma em corpo coletivo, corpo andante. In: 20º Encontro Nacional da ANPAP - Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas - Subjetividades, Utopias e Fabulações (26/09 a 01/10), 2011, Rio de Janeiro. Anais do Encontro Nacional da ANPAP (CD-ROM). Rio de Janeiro: UERJ/Rede Sirius/Biblioteca CEH/B, 2011.
MARQUÉZ, Gabriel Garcia. Viver para contar. Rio de Janeiro: Record, 2003.
RIO, João do. A alma encantadora das ruas. São Paulo: Martin Claret, 2009.

1  Júnior Pimenta, De casa para o trabalho, do trabalho para casa / Formas de contagem, 2014, Vídeo, fotografia e objeto, dimensões variáveis.

2  Júnior Pimenta, De casa para o trabalho, do trabalho para casa / Formas de contagem, 2014, Vídeo, fotografia e objeto, dimensões variáveis.

3  Júnior Pimenta, De casa para o trabalho, do trabalho para casa / Formas de contagem, 2014, Vídeo, fotografia e objeto, dimensões variáveis.