Em 2012, iniciei pesquisa relativa às práticas de deslocamento urbano. A distância entre minha casa, em Porto Alegre, e a Universidade Feevale, em Novo Hamburgo, onde cursava a graduação em Artes Visuais, era motivo para viajar há bastante tempo. O trajeto entre Porto Alegre/Novo Hamburgo e vice-versa fazia parte da minha rotina e com a inauguração do Trensurb, adotei o transporte do trem para evitar o tráfego caótico na rodovia. A constância da circulação via trem, expôs possibilidades de movimento. Houve um momento, a partir do fenômeno físico da Inércia1, no qual reparei que meu corpo se balançava junto ao trem. E que cada curva e freada reagiam de uma forma em meu corpo parado, porém, sendo carregado sem que ele pudesse se mexer. Embalos frágeis e rítmicos que cresciam e decresciam eram acompanhados por solavancos abruptos toda a vez que o trem parava ao chegar em uma estação e partia para uma outra.

Então, comecei a valorizar a relação obtida com o deslocamento, percebendo o material e a fonte de pesquisa que ele poderia proporcionar. Da mesma forma, passei a investigar minha rotina valorizando a relação que o trabalho em arte tinha com a vida, que “comandava” minhas tarefas, fazendo dessas viagens uma necessidade. É importante mencionar aqui, que era de meu interesse anterior acessar características gráficas presentes nos desenhos formados pelo mundo. Então, fotografar fios de luz que se enroscavam, um vidro que havia se partido ou os galhos secos das árvores era uma forma recorrente de armazenar documentos de trabalho. Ou seja, estas aparições no espaço urbano eram bastante semelhantes a desenhos e por isso, passei a coletá-las.

Os gestos do trem em movimento formavam em minha mente um possível desenho. Movida pelo interesse em desenhar com auxílio da viagem, parti para a análise da proposta que traria para o visível, o desenho do mundo. No caso, ordenado pelo trem em contato com o solo. Como seria retirar, dessa experiência, o desenho construído durante o caminho? De que forma ele poderia aparecer? Como era esse desenho formado no gerúndio, já que ele era feito no instante em que se dava o trajeto? De que forma eu poderia causar uma aparição deste desenho ordenado pelos acontecimentos do mundo, no caso, do caminho que eu fazia?

A sensação sentida ao ser deslocada mesmo com o corpo parado, permitiu que os embalos fossem transmitidos ao corpo, no decorrer do trânsito. A chegada ou a saída de Porto Alegre, no interior de um trem, agora se tornava um meio pelo qual um tipo de desenho poderia ser conjurado. O espaço ao redor se tornava imagem no desenho feito. Era possível, ao atravessar as pequenas cidades como Canoas, Esteio e Sapucaia, registrar os movimentos ocorridos enquanto seus territórios eram percorridos. Acerca da travessia, dos caminhos e dos trajetos realizados para perceber o espaço de outra forma e propor um trabalho em arte, segue a citação:

Para mim, desde então, a arte e o fazer arte parecem estar relacionados à travessia de uma fronteira, mesmo que esta esteja ao meu lado, diante de mim, dentro de mim: ir para outro lado, mudar de estado, deslocar posições, alterar registros. As diferenças podem ser mínimas. Mesmo um espaço ou tempo mínimo, fração, estalo, piscar de olhos. Importa que, a partir de um lance mínimo, tudo mude. (FERVENZA; 2009, p.43).

A chegada em uma estação determinava o fim do território pertencente a anterior e, portanto, o início do seguinte. As fronteiras que delimitavam onde se terminava um ponto e começava outro, pontuavam também minha forma de habitar aquele espaço. Iniciei investigações sobre a maneira que eu captaria estes impulsos e embalos, e de que forma eu os transmitiria enquanto vencíamos (eu e os passageiros) distâncias. Os primeiros testes para captar o movimento a partir do desenho interligado com a representação do deslocamento vivido durante o percurso foram feitos a lápis. Para desenhar, levava comigo um pequeno caderno cujas folhas tinham o tamanho A5.

Os desenhos eram feitos simplesmente apoiando a ponta do lápis na folha para ver se haveria algum sinal destes embalos. Apenas com a minúscula pressão que o lápis fazia ao encostar-se à folha, era possível reparar que os movimentos eram de um gesto mínimo e a presença deles no papel era extremamente sutil. Se eu apertasse mais o lápis, a aparência das oscilações ficava comprometida, fazendo com que eu me deparasse com um único ponto sendo desenhado. Com o lápis em apoio mais leve sobre a superfície, as oscilações correspondentes ao trânsito voltavam a aparecer nos riscos, mas ainda eram bastante delicadas em sua fantasmagoria. O desenho que estava sendo feito era um meio de acessar o ‘desenho’ natural realizado entre o contato do trem e o solo.

Como as experiências com o lápis não se mostraram eficazes, construí instrumentos que pudessem oscilar sensivelmente e que funcionassem como uma extensão do meu corpo. Então pincéis amarrados a linhas de aproximadamente 60 cm, mostraram-se instrumentos mais simples e de uso mais próprio do que o antigo lápis. Estes funcionavam como pêndulos, que entintados com nanquim, revelavam cada oscilação a partir do contato com a folha branca. O gesto em nanquim tornava evidente o que ali acontecia em termos de movimento. Com essa mudança, os desenhos passaram a ser feitos no chão dos vagões e cada um deles era o resultado gráfico do caminho efetuado naquele trecho. Conferindo, portanto, a relação com o lugar e o deslocamento por meio dele. Tendo o local do trem como espaço de trabalho, meu processo criativo tornou-se público.

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A alteração da postura corporal, visto que anteriormente eu desenhava sentada com o caderno apoiado no colo e agora eu manipulava os pêndulos em pé, convocou o ato performático. Como agora eu manipulava os pêndulos com o corpo na vertical e a folha de papel passou a ficar no chão, a presença do corpo como instrumento de trabalho e forma de apresentação, começou a propiciar que aquela situação fosse vista como um evento. Afinal, eu cumpria com a ação de desenhar (que era a princípio simples) de pé com a facilidade encontrada nos dispositivos pendulares em um local onde aquilo não era esperado. Saliento que a forma de desenhar também era incomum. O desenho gerava a performance e a performance gerava o desenho.

Meu modo de circular por entre as cidades, alternando o sentido dos trens que eu pegava, começou a demonstrar outra possível função que o deslocamento poderia possuir para o trabalho, que não fosse deixar em um ponto “x” e seguir para outro “y”. Ou seja, a locomoção quase diária de um lado a outro, permitia uma nova forma de contar o tempo e de habitar o espaço entre as cidades. Não era durante todo o período da viagem que se tornava possível estender folhas grandes ao chão e desenhar com longos pêndulos. Era necessário aguardar, durante a maior parte do tempo, até que o trem fosse desocupado, o que acontecia geralmente na estação São Leopoldo, quando em sentido POA-NH. Logo, era apenas no final da viagem, durante um tempo relativamente curto, que eu tinha condições de realizar tal performance. A apropriação do deslocamento como fonte de trabalho, permitia a criação de estratégias para organizar de uma forma mais eficaz, o tempo do trajeto transcorrido. Fotografias, vídeos e escritos sobre o que ocorria no trem, eram maneiras recorrentes de aproveitar o tempo e causar-me certa imersão.

A manipulação desse tempo de duração, tinha como resultado a criação de um instante artístico performático dentro do momento da viagem. Portanto, comecei a usar esse deslocamento de forma especial. Dentre os deslocamentos feitos, organizei dois grupos: presença e ausência da relação com a rotina. Enquanto alguns trajetos eram vinculados às minhas necessidades para cumprir com tarefas semanais, outros eram organizados apenas para trabalhar na performance, refletir e se deixar levar. O espaço no interior dos vagões do trem havia se tornado meu ateliê. O trem era meu local de trabalho e apenas ali eu me confrontava com o desenvolvimento da performance. Portanto, não me pareceu correspondente aproveitar o tempo do deslocamento que eu teria que fazer de qualquer maneira e não conjurar uma nova forma apenas com o objetivo de produzir e investigar a pesquisa no trem.

Eu assumiria, então, viajar apenas pelo fato de circular livremente e de ter como produto da performance uma série de desenhos feitos a partir desse mesmo deslocamento. Defendia, sobretudo, o deslocamento como prática artística. Como forma de trabalho e vida contemporânea no espaço da cidade. Com dois grupos organizados para efetuar trânsitos, o deslocamento poderia inclusive ser melhor explorado, sem a interferência da rotina anterior. A partir do contato intenso com o contexto do trem, passei a ver esse trânsito também como um pêndulo. Dentro do trem, fui carregada de um lado a outro tal qual o movimento pendular formado pelos instrumentos que construí para auxiliar na captura.

As idas e voltas faziam do deslocamento uma forma de pêndulo que oscilava entre o início e o fim, à frente e atrás, o voo e o pouso. Para qualquer pessoa que me visse a partir do lado de fora do trem, eu estaria com o corpo em movimento. Porém, para os demais viajantes no interior do vagão eu, assim como eles, restava estática. O movimento pendular tinha sido a solução encontrada para tornar a captação dos embalos mais fiel. Com o pincel sendo erguido ao ar em função da velocidade com que o trem se movia, ele “desenhava” na folha entre um movimento e outro. Essa forma de movimento não era só presente no instrumento, mas sim em meu corpo como pêndulo, indo de um lado ao outro dentro dos trens.

Os trilhos conferiam um caminho de ferro que não se modificava, mas eu pude sair de um trem e entrar no seguinte que cumpria o mesmo trajeto, porém em sentido contrário. Assim, inventava meu rumo. Entre o ir e vir, estipulei minhas rotas mutáveis e nada fixas por entre a capital de Porto Alegre e a cidade de Novo Hamburgo. Em meio ao desenvolvimento do trabalho, me dei conta de que a experiência do deslocamento era vivida em locais que ficavam no meio do percurso ou entre, os entre-lugares . A atenção é voltada ao trajeto que se realiza em meios aos pequenos municípios existentes ali. São estes, os lugares de meio e a passagem que se dá por entre eles, que são registrados, enquanto tais lugares eram percorridos. O desenho é uma sugestão gráfica do movimento ocorrido durante a passagem por estes ‘entre-lugares’.

Com relação à presença do movimento do corpo e do desgaste do deslocamento, gostaria de me referir ao trabalho chamado Paradox of Praxis 1, no qual o artista Francis Alÿs arrasta um grande bloco de gelo pelas ruas do México. Ele atravessa ruas, dobra esquinas e desce escadas enquanto a atividade vai desgastando o gelo. A forma como o corpo do artista manipula essa peça durante o percurso é modificada, pois inicia-se com um grande bloco de gelo que vai diminuindo, acarretando na mudança de postura e manejo do artista para com a pequena pedra de gelo que se tornou o antigo bloco. Temos aqui uma referência acerca da postura corporal condicionada ao deslocamento pelo meio da cidade e pelo objeto que conduz a ação. A tarefa de deslocar e, sobretudo, como deslocar o gelo se vincula à interferência causada pelo deslocamento. Já que o mesmo efetua uma modificação na matéria carregada, assumindo, portanto, uma forma de manipular mais apropriada. Mantendo a manifestação de um ato performático.

A ação do deslocamento se confere tanto em meu trabalho como no de Francis Alÿs como agente transformador. O deslocamento que corrói o gelo, fazendo com que o artista passe a adequar sua maneira de caminhar, também pode ser a fonte encontrada para dar origem a desenhos feitos a partir da captação de impulsos do movimento por meios de instrumentos pendulares. A forma de articular o trânsito dentro da cidade se relaciona com a missão ou simplesmente a experiência de compreender, por exemplo, o quanto de movimento é preciso para que o bloco suma ou para que um desenho se forme.

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Em Paradox of Praxis 1, o artista “habita” o tempo e seu espaço na medida em que ele caminha com um bloco e só conclui após o sumiço, o desgaste total do gelo. Muitas das minhas várias viagens serviram para efetuar deslocamentos. Fazer algo que a princípio, não geraria em nada acabou trazendo aspectos importantes para o meu processo criativo a partir da insistência. Analisando essa insistência em seguir com os tipos de viagens e a repetição da maneira encontrada para desenhar naquele contexto, o mito de Sísifo menciona justamente a repetição de uma tarefa. Também muito parecido com o trabalho de Francis Alÿs ao percorrer as ruas carregando um bloco de gelo e causando um consumo de tempo, que não leva a nada. O livro O mito de Sísifo ensaio sobre o absurdo escrito por Albert Camus, em 1942, quando o autor tinha 29 anos, traz Sísifo como um personagem da mitologia, que por ser muito astuto conseguiu enganar os Deuses para fugir da morte. Quando ele finalmente é detido, seu castigo no submundo é a obrigação da ação repetitiva de carregar uma grande pedra até o topo. Se ele conseguisse fazer com que a pedra rolasse para o outro lado da montanha, estaria eximido de sua pena. Porém, em todas as vezes que ele chega ao cume a pedra volta a rolar para baixo, obrigando-o a recomeçar infinitamente.

Com o mito de Sísifo, ele cria uma metáfora para se referir à sociedade moderna alavancada por trabalhos fúteis que devem ser feitos, mesmo que não resultem em nada efetivamente positivo. O mito de Sísifo é muito pertinente para se pensar o próprio trabalho em arte, iniciado muitas vezes por alguma ação ordinária e talvez repetitiva sem propósito. Na obra de Albert Camus, podemos perceber a importância do acaso, da estranheza e ao mesmo tempo da naturalidade com que despertam as primeiras ideias e pensamentos. Com base na obra de Camus, O mito de Sísifo é a união do comportamento que o ser humano se propõe e a falta de sentido que torna o encontro entre o homem e o mundo uma contradição. Como resultado disso, surge então o absurdo, as situações sem sentido e o esforço demasiado que não alcança o merecimento pretendido, almejado. Pelo menos, não imediatamente. É diante dessa atmosfera que a arte advém. Resgatando uma visão universal e transformando-a em algo singular, particular e individual. O trabalho em arte surge a partir desse mesmo confronto entre o que é o mundo e o que se torna parte do nosso mundo.

Observando a forma de circulação que era realizada para que fossem feitos desenhos e depois performances, concluí que o que também era feito compunha um registro da passagem por lugares. Ou seja, a forma como adaptei a ação de desenhar durante e a partir do deslocamento convencionou uma espécie de dissecação da área ao redor. Uma compilação de marcas vinculadas ao espaço do entorno.

1  Inércia (Física): Propriedade que têm os corpos de persistir no estado de repouso ou de movimento enquanto não intervém uma força que altere esse estado.

2  Chamo de entre-lugares, os pontos ou locais que são encontrados durante a passagem. Exemplo: Canoas, Sapucaia, São Leopoldo, Esteio. Porto Alegre e Novo Hamburgo são dois lugares que referenciam o início e o fim do deslocamento, a chegada e a partida.

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1  Lívia dos Santos Silva, Píndulo e nanquim sobre papel no trem. Foto: Heloisa Marques, 2014.

2  Lívia dos Santos Silva, Registro da Performance no trem. Foto: Heloisa Marques, 2014.

3  Lívia dos Santos Silva, Píndulo e nanquim sobre papel no trem. Foto: Evelyn Lima, 2014.

4  Lívia dos Santos Silva, Registro da Performance no trem. Foto: Heloisa Marques, 2014.