Falar de tempo para falar de arte
Falar de tempo para falar de arte ocupa lugares públicos de grande fluxo de pessoas, como praças e esquinas democráticas, e convida a população em geral, através das mídias locais, a levarem objetos referentes ao tempo até o espaço e horário divulgado. Na cidade de Pelotas/RS, o projeto aconteceu nos dias 1, 2, 3, 4, 5, 7 e 30 de junho de 2013, das 9 às 19 horas, em diferentes espaços como a Praça Coronel Pedro Osório, Largo do Mercado Público, átrio do Theatro Sete de Abril, Centro de Artes, da UFPel e Chafariz do Calçadão.A ação começou com o auxílio de um espaço expositivo móvel transparente, no entanto, em seguida se entendeu que qualquer tipo de parede, mesmo as transparentes, afastava o público, optando-se assim por paredes invisíveis criadas apenas por meio da disposição dos objetos no espaço inserido. Na cidade de Porto Alegre/RS, o projeto foi vinculado ao projeto pedagógico da 9ª Bienal do Mercosul; as ações aconteceram nos dias 17, 24 e 31 de outubro de 2013, das 9 às 19 horas, na Praça da Alfândega e na Orla do Guaíba, próximo a Usina do Gasômetro. Ao levar o “objeto de tempo”, cria-se um diálogo entre público, obra de arte, espaço de ação e espaço ao redor, possibilitando encontros, conversas e reflexões sobre a ação e o tempo. Como diz CANTON (2009), sobre o seu projeto O afeto e a cidade, não basta ocupar o espaço público com obras de arte, só o afeto é capaz de criar um canal de comunicação verdadeiro com as pessoas. Trata-se, portanto, de um estudo sobre os modos de comunicar, de afetar e ser afetado, de estratégias de ocupação do espaço público. A composição estética do espaço é feita a partir dos diferentes elementos que compõem o lugar naquele momento. Entendido na sua relação de encontro, o trabalho é redefinido também pelo espaço que ativa, podendo ser modificado a cada segundo pela chegada dos objetos.
Neste sentido, visto como uma proposição contextual, o interesse está nas questões específicas de cada contexto em que as ações acontecem. Nesses locais, a ação se dá entre objeto, contexto e público, explorando possibilidades de arte como experiência educativa através da mediação. A proposição é indivisível entre a ação e sua localização, demandando a presença e interação do público com a obra para gerar sentido no contexto ao qual está inserido.
O mundo de hoje parece existir sob o signo da velocidade. O triunfo da técnica, a onipresença da competitividade, o deslumbramento da instantaneidade, na transmissão e recepção de palavras, sons e imagens e a própria esperança de atingir outros mundos contribuem, juntos, para que a ideia de velocidade esteja presente em todos os espíritos e a sua utilização constituía uma espécie de tentação permanente. Ser atual ou eficaz, dentro dos parâmetros reinantes, conduz a considerar a velocidade como uma necessidade e a pressa como uma virtude. Quanto aos demais não incluídos, é como se apenas fossem arrastados a participar incompletamente da produção da história. (SANTOS, 2011).
Diante de tais colocações, Falar de tempo para falar de arte aborda questões de descontinuidades e desaceleração referentes à mobilidade e deslocamentos nas cidades. Augé (2010, p.100) afirma: “pensar em mobilidade é também aprender a repensar o tempo”. Isto é, não deslocamento rápido e sim pensar um deslocamento lento, em que os passos possam ser observados e percebidos. Sendo assim, ao criar uma dobra nos espaços de passagens cria-se uma quebra, uma descontinuidade no percurso pré-definido das pessoas. Com esses elementos, o artista belga Francis Alys (1959) faz pequenas intervenções, criando descontinuidades em situações cotidianas, como o caminhar que faz parte de sua produção artística (muitas vezes resultante de suas observações enquanto anda a deriva pelas cidades). Em seu trabalho Turist, de 1996, ele se apresenta ao lado de outros profissionais, como eletricistas e pintores com uma placa de Turista, o que revela o uso que a população faz do lugar, mostrando uma cidade vivenciada para além das ordens e regras do sistema gestor. Uma prática do uso do espaço simples e humana. É uma percepção do contexto que somente a população que usa o espaço de verdade, consegue perceber. O trabalho do artista é dar visibilidade às práticas do espaço desenvolvidas por cidadão comuns, e à forma como se apropriaram do seu espaço cotidiano.
Objetos de tempo
Os objetos de tempo saem dos seus espaços cotidianos para outra dimensão estética, não mais discriminada por um espaço institucional de arte, entretanto saem do cotidiano para o mundo, tendo seus significados reconfigurados pelo deslocamento e pelas novas relações que se estabelecem com o objeto. Essas relações são construídas e reveladas pela chegada de cada objeto. Cada pessoa que chega com seu objeto, compartilha suas memórias, suas relações e os motivos pelos quais o escolheu como objeto de tempo. Tais objetos também representam o dispositivo de descontinuidade, pois, através deles, é ativada a curiosidade do público que se aproxima para vê-los, tocá-los e, muitas vezes, contar as memórias ativadas por eles. É importante ressaltar que não há a menor pretensão em definir ou conceituar “o tempo”. O interesse está em saber o que é o tempo? para cada participante, e entender de que forma eles se relacionam com o tempo, uma vez que a noção de tempo de cada pessoa está diretamente relacionada à sua experiência de vida, e isto ficou registrado pelos objetos de tempo levados por elas.
As relações entre sujeito-objeto, que deram origem às ações do projeto, são as principais desencadeadoras dessa descontinuidade e desaceleração. Começam por uma simples relação de “crise” com o objeto relógio, o que faz pensar nas diferenças do tempo cronológico e corporal, e prosseguem até a maneira como foi feita a escolha de cada objeto levado por cada trocante. Então perguntei: o que é o tempo? Quais objetos de tempo você possui? Quais você carrega consigo? Que tipos de objetos são considerados de tempo? Fotos, relógios, cartas, objetos antigos, objetos com valores afetivos, objetos que demandam horas do seu dia?
Os objetos, que hoje fazem parte do acervo do projeto Falar de tempo para falar de arte são os mais diversos em tamanho e classificação, mas as semelhanças entre eles é a de que todos têm uma relação simbólica de tempo para cada sujeito participante. Todo objeto transforma alguma coisa, sejam nossos hábitos mais comuns no cotidiano, seja nosso olhar sobre o mundo. O fato é que os objetos usados nos mais diversos momentos do nosso dia fazem as significâncias da nossa experiência de vida. A artista Elida Tessler pede uma palavra escrita, em prendedores de roupas, para as pessoas que ela encontra, dando origem ao trabalho Você me dá sua palavra?, de 2004. Doador, de 1990, foi um trabalho feito com a ajuda de 270 pessoas convidadas, por carta, a doarem objetos com o sufixo “dor” para com elas montar um corredor, a partir das memórias do caminho que ligava a casa dela a de seu avô que havia falecido. Assim como Elida, peço às pessoas objetos de tempo e, a partir deles, suas palavras sobre o tempo.
Os objetos existem aí primeiro para personificar as relações humanas, povoar o espaço que dividem entre si e possuir uma alma (...) Antropomórficos, estes deuses domésticos, que são os objetos, se fazem encarnando no espaço dos laços afetivos e da permanência do grupo. (BAUDRILLARD, 2002, p. 22).
Esperei pelos objetos que saltariam do cotidiano das pessoas para uma ação artística. A ação é pensada para espaços específicos, portanto, é sempre atualizada, principalmente nas relações construídas ao longo do processo. Assim como as práticas das “geovanguardas”, que são práticas de arte no domínio público em que a característica principal é o contexto local e sua comunidade. Por meio delas, na maioria das vezes, as proposições revelam um processo, ao invés de um objeto. O que importa é o processo de continuidade, um inacabamento fundamental em que todos os participantes, de maneira direta ou indireta, podem/são considerados autores.
A Arte e a Educação nesta ação estão vinculadas ao contexto do ambiente, sendo determinadas por ele, tanto nas questões dos elementos físicos (como escala e proporção dos diversos espaços públicos), como pelas relações sociais, políticas e culturais presentes, incorporando elementos ocultos dos espaços escolhidos. Como diz Kwon (2008, p.167), sobre site-specificity, “o objeto de arte ou evento nesse contexto era para ser experimentado singularmente no aqui e agora pela presença corporal de cada espectador, em imediaticidade sensorial da extensão espacial e duração temporal”. Ao trazer esse pensamento para a minha proposição, a configuração dos objetos é uma situação temporária, sem poder ser reproduzida em outro lugar, sem ter seu sentido/significado alterado, pois, a proposição é dependente das relações imprevisíveis no espaço no qual está inserida.
Para além dessas questões, poderia ainda comentar os trabalhos gerados diretamente a partir do mundo, como Mesa de Bilhar, de 1969, de Hélio Oiticica e, até mesmo, as apropriações de objetos cotidianos como a cama bólide, do mesmo ano. Neste sentido, mais que uma proposição, as ações do projeto se utilizam dos contextos do mundo, se apropriam de objetos cotidianos e propõem um propor que naturalmente ofereceu ao público outras formas de se relacionar com a ação. Isso começou a se tornar evidente quando o público passou a sugerir ações que não haviam sido planejadas por mim, como distribuir panfletos da exposição do seu próprio objeto ou deixar cartazes sobre o tempo no calçadão da cidade de Pelotas.
Durante a proposição, várias pessoas comentavam que nunca haviam sentado no “meio da praça” ou “no meio do caminho”, e que consideravam aquele local só de passagem e não um lugar de estar. Mas, durante as ações, aquele espaço era um lugar nosso e, a partir daquele momento, incorporado na nossa experiência. Entendo que ao longo do processo dessas ações o espaço público foi sendo conquistado, se tornando um lugar de estar das pessoas.
Eu adoraria que existissem lugares estáveis, imóveis, intangíveis, intocados e quase intocáveis, imutáveis, enraizados; lugares que seriam referências, pontos de saída, fontes: (...) Tais lugares não existem, e é porque eles não existem que o espaço está em questão, cessa de ser evidência, cessa de ser incorporado, cessa de ser apropriado. O espaço está em dúvida; é preciso incessantemente que eu o marque, que o designe; ele nunca é meu, ele nunca me foi dado é preciso que eu o conquiste. (PEREC, 1974, p. 122).
Tal lugar de ação tornou o espaço flexível e instável, pois as pessoas só sabem que estarei em um determinado espaço quando divulgo a data e local, sem dar maiores informações. Nesse sentido, lembro-me que, do dia 4 de junho, quando cheguei ao chafariz do calçadão da cidade de Pelotas/RS, com minha sacola de objetos do tempo e a larguei no chão para começar a montagem, imediatamente se criou um círculo de pessoas na minha volta, curiosas, esperando talvez por um espetáculo, pois é o que geralmente acontece naquele contexto. Assim, retomo a ideia de espaço imantado de Lygia Pape, em que ela nos diz:
E o camelô também seria uma forma de espaço imantado, no sentido de que ele chega assim numa esquina, abre aquela malinha e começa a falar, criando de repente uma imantação, com as pessoas todas se aproximando, se ligando àquele discurso irregular, às vezes curto, às vezes longo, e de repente ele fecha a boca, fecha a caixinha e o espaço se desfaz. (PAPE, 2012, p.285).1
Com o hábito de se deslocar, ao abrir a sacola de objetos, o espaço comum se torna um espaço imantado, um lugar de estar e, ao fechar a sacola, este espaço se desfaz, sendo reconfigurado e reestabelecido no próximo espaço comum no qual será inserido. Assim, como as famílias de saltimbancos que viajavam de cidade em cidade, vinculadas aos circos que improvisavam apresentações em praças públicas ou feiras, utilizando um banquinho para chamar a atenção do público com um discurso inicial. A partir destes conceitos, comecei a observar as relações do público com esses espaços comuns a todos, isto é, as relações sociais e de arte no espaço público.
Ao sair do restrito, do privado, a arte parece alcançar uma dimensão mais flexível, carregada de valores sociais e até mesmo políticos. Aqui a dimensão do político em arte não se faz presente por suas qualidades visíveis, como ideologia e assunto histórico, mas sim como ‘invenção de formas sensíveis, novos modos de agir e habitar. Assim, a discussão acerca das fronteiras entre público e privado é intensificada, por uma arte que intenta ultrapassar as suas extensões. (ROCHA, 2011. p. 84).
Ao sair dos espaços institucionalizados, a Arte e a Educação ganham outros valores, possibilidades de pensar novas formas de agir e habitar o espaço público, reconfigurando valores sociais e políticos e ultrapassando os limites geográficos que, muitas vezes, se tornam limites sociais.