“(...) Se essa rua, se essa rua fosse minha... eu mandava, eu mandava o Fabiano pintar”
Ana Paula Moura, O GLOBO ON LINE, 01/03/2012, 20:24.


Nesse artigo iremos tratar da obra artística urbana de Fabiano do Nascimento Costa1 e relacionar sua Arte a conceitos como o espaço sentido (SANTOS, 1996), a dicotomia entre o público e o privado (GOMES, 2007), a temática dos jardins (TERRA, 2004) e abrir essa interlocução de ideias e conceitos para uma nova concepção de Arte de Rua que seria um chamado grafite de chão. Fabiano é artista dos cabelos e das palavras. É cabeleireiro de profissão, mas também faz algumas esculturas em casa e tem o ofício de poeta como hobby.

ESPAÇO SENTIDO GRAFITE DE CHÃO
Jardins Público x Privado


O QUE É A OBRA DE FABIANO:

A obra de Fabiano consiste em pinturas seqüenciais nas calçadas das ruas residenciais do bairro do Grajaú, localizado na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. São como se fossem silhuetas de um paralelepípedo em sequência. Para as crianças parecem aquela típica brincadeira / jogo de “amarelinhas” e uma de minhas alunas 2 usou inclusive a nomenclatura “tijolinhos” para descrever a obra do artista em questão. Na primeira figura veremos a primeira experiência na calçada na porta de sua casa:

 Figura 1 – Casa de Fabiano do Nascimento Costa. Fotografia da autora.

Em depoimento, Fabiano falou sobre sua obra e suas relações viscerais com um jardim. Para ele um jardim é “a oportunidade maravilhosa de amenizar as agruras da vida”.

“ (...) dos relacionamentos humanos, dos problemas sociais, do caos e da violência urbanos, enfim, uma forma de dilapidar o diamante bruto que é a nossa vida, aflorando a sensibilidade inerte ou inexistente em cada um de nós. Embora eu não consiga imaginar o quão belo devem ter sido os jardins suspensos da Babilônia, ouso tentar ver o máximo que cada jardim possa oferecer numa visão breve futurística, ou seja, toda beleza existente no momento e tudo que poderia ser “melhorado” artisticamente. Para mim olhar um jardim é um deleite para a alma, seja ele florido ou com características de folhagens variegatas3, muito coloridas ou que simplesmente se sobressaem pela delicadeza dessas folhas, frutos ou harmonia do conjunto. Há pessoas que têm medo até mesmo pavor de animais, pássaros, insetos, micos, mas eu não penso assim; para mim, um jardim que consiga ter frutos para os sagüis, flores para os beija-flores, e até mesmo insetos, qual fazem parte do eco-sistema, como por exemplo a mamangava, são bens insubstituíveis da Natureza.”

A intervenção artística de Fabiano também dialoga com o planejamento urbano do bairro e com o estilo normando característico da maioria das casas do bairro Grajaú. Até mesmo a sua casa (figura1) parece um castelo, um pedaço do Neuschwanstein de Bayern4 na Alemanha em solo carioca.

Para a concepção da obra, Fabiano faz o uso de trincha e tinta branca. Após escolher a calçada e se comunicar com o morador que habita na moradia em frente, ele pede permissão para pintar a calçada. Nesse trâmite, o artista gentilmente pede uma doação de tinta para pintar as calçadas. No bairro, após um intenso período de produção, Fabiano contabilizou cerca de 60 calçadas pintadas por ele. A partir da 41ª passou a ter um documento, uma autorização por escrito através de orientações da administração regional da cidade da gestão de 2011. Realiza suas pinturas preferencialmente à noite, quando não há transeuntes nas calçadas, realizando suas pinturas de chão em cerca de 2 ou até mesmo 3 horas. Não dispõe de ajudantes, faz todo o trabalho inteiramente sozinho, sem rascunhos sem um pré-planejamento, escolhe a calçada, aborda os moradores, passa para o trâmite da autorização, galão de tinta na mão e pronto: põe se a trabalhar.

 Figura 2 – Calçada com intervenção artística de Fabiano do Nascimento Costa. Fotografia da autora.

 Figura 3 – Calçada com intervenção artística de Fabiano do Nascimento Costa. Fotografia da autora.

A CONCEPÇÃO DA OBRA

Fabiano conta que quando ainda era garoto no alto de seus 9 anos de idade, mais precisamente no início da década de 80, começou a cuidar de um canteiro público em frente à sua casa (situada na esquina entre a Rua Grajaú e Av. Julio Furtado). Diz que nesse canteiro, repleto de pés de Tamarindeiras, era usado como mero depósito de lixo para os passantes e os moradores do entorno. Começou a cuidar do canteiro ajeitando o jardim e fazendo caminhos de paralelepípedos para promover a interação entre o homem e o meio ambiente e também para servir de passagem segura e seca em dias de chuva. Foi aí onde tudo começou...

A segunda etapa veio quando, no ano de 2011, passou a observar o sucesso da interação das crianças com as pinturas na sua calçada, e do alto do muro, como uma extensão de uma sacada de sua casa para a rua, passou a observar o comportamento dos adultos, dos adolescentes dos idosos e demais pessoas, mas sobretudo, das crianças no ir e vir diário das escolas localizadas no entorno. Sentiu que sua obra ficava completa com a interação do público. E como se intrigou com o fato de muitos pais não darem a oportunidade de seus filhos “brincarem” no caminho de tijolinhos, ou paralelepípedos virtuais, decidiu levar essa Arte para todo o bairro do Grajaú. Foi onde tudo começou...

...outra vez. Então Fabiano teve a idéia de costurar o espaço do bairro pintando esses desenhos na calçada, intervenção direta e precisa, sem precisar de muitas intervenções nos canteiros particulares dos seus respectivos moradores.

 Figura 4 – Calçada em frente à residência do artista. Fotografia da autora.

 Figura 5 – Rua Grajaú, perto da esquina com a Rua Mearim. Fotografia da autora.

 Figura 6 – Rua Grajaú, entre as Ruas Gurupi e Mearim. Fotografia da autora.

A MENINA E O SEU PAI

O artista se emociona ao relatar sobre uma menina e o seu pai que todos os dias faziam questão de passar em frente a sua calçada (Figuras 1 e 4). A menina, indo para a escola passou a brincar com os caminhos serpenteados do grafite de chão de Fabiano todos os dias na ida para a escola e na volta para casa. Ela foi quase que como uma “musa inspiradora” para que o artista pintor de um grafite de chão pudesse levar mais intervenções artísticas a outras crianças e a outros passantes do bairro.

PERCORRER O CAMINHO

Lygia Clark no seu trabalho “Caminhando”, apresentado na mostra especial parte da XXIV Bienal de São Paulo nos mostra a decisão a ser tomada para percorrer o caminho, quando o papel encontra a tesoura serpenteando e dividindo a folha em duas partes e dois lados. A obra Fabiano “brinca” com a possibilidade de se percorrer o caminho, de se decidir em começar por aqui ou por ali, um ato que depende do público, do passante daquele que se dispõe a tomar aquela pintura como Arte.

O BAIRRO GRAJAÚ E OS SEUS CANTEIROS DE JARDINS

Contextualizando o bairro e os seus canteiros de Jardins podemos nos apropriar do tema da cidade e do planejamento urbano como rica fonte para a elaboração de muitas reflexões. Pois em “História da Arte como história da cidade”, G. C. Argan faz um panorama da importância dos registros da constituição da história da cultura de uma cidade para enriquecer o conhecimento sobre esse espaço de produção social por excelência. Nesse caso específico, Argan exemplifica suas questões com base nas propostas analíticas das cidades italianas por ele estudadas. No primeiro e no terceiro capítulo, porém, as propostas são permutáveis para nossas vivências locais. Kevin Lynch, em “A imagem da cidade” coloca à tona o drama da paisagem urbana e evidencia a problemática em três cidades norte-americanas. Citando o Prof. Carlos Terra5 podemos entender os canteiros do Bairro Grajaú entre as sua calçadas como um “modelo de incorporação da natureza ao tecido urbano, com destaque para os grandes parques que se constituíram em elementos chave da reforma urbana de Paris, Bois de Boulogne e Bois de Vincennes”. A Profa. Fernanda S. Garcia em “Cidade Espetáculo” contextualiza todos os esforços que fazem os administradores das metrópoles em dar publicidade à sua cidade, dando a melhor imagem possível a ela. O visual, gíria tão falada no modo coloquial da língua portuguesa passou a ser apelo, uma vitrine para as disputas sócio-econômicas. Podemos pensar até se os bairrismo na cidade do Rio de Janeiro são um reflexo dessa filosofia.

A DICOTOMIA ENTRE E O PÚBLICO E O PRIVADO

A rua - um espaço de todos. A calçada e os canteiros de jardim seriam a fronteira. Relacionamos esse trecho da comunicação com a comunidade local, os habitantes do Bairro Grajaú. Para tanto iremos nos apropriar de conceitos de Zygmund Bauman quando fala de viver em comunidade. Eis então: o preço que se paga para “viver em comunidade” é a nossa liberdade. Paga-se também em forma de autonomia, direito à auto-afirmação, identidade. Bauman fala de tensões que sempre existirão: Segurança x liberdade e Comunidade x individualidade. Ele conta que Tântalo, filho de Zeus, acabou sendo punido por partilhar com os mortais o conhecimento que só pertenciam aos Deuses. O estado da inocência seria o caminho para seguir em paz. Então ele é banido da comunidade dos Deuses. História semelhante: Adão e Eva que foram expulsos do paraíso por terem comido do fruto da árvore do Bem e do Mal cujo acesso fora proibido a eles. O castigo foi a expulsão do paraíso. O autor relaciona dois conceitos fundamentais para entendermos um dos processos que regem a vida em comunidade: a diferenciação entre consenso e entendimento. O entendimento é compartilhado por todos os membros. A compreensão é presente no grupo, inserida no espírito de todos. Ponto de partida de toda união. Já o consenso é o acordo entre muitas pessoas diferentes, depois de muita discussão e disputa. Para concluir essa reflexão, a análise desenvolvida é de um olhar para a cidade do Rio de Janeiro, sobretudo este bairro da Zona Norte, Grajaú cristalizado no tempo. De características predominantemente residenciais, esse bairro que busca preservar a arquitetura de suas habitações, vive um outro momento nesse início do século XXI, onde a ordem e a segurança nesse bairro aparentemente tão tranqüilo são questionadas pelos índices de violência urbana, resultantes de desigualdades sociais e outros fatores (GOMES, 2007).

ESPAÇO E O TEMPO – A efemeridade da obra de Fabiano

Finalmente iremos falar um pouco da duração da obra e retomamos aqui o conceito de espaço sentido propagado por Milton Santos que citamos logo no início desse artigo. Para entender os processos espaciais com relação à afetividade do lugar, citamos o conceituado geógrafo brasileiro Milton Santos que nos explica sobre a existência de uma relação afetiva do sujeito com o espaço em que ele vive (SANTOS,1996). Essa escala afetiva é essencial para entendermos como o espaço evoca nos habitantes o sentimento de rejeição e afeição, que se concretiza na vida cotidiana e no reconhecimento do espaço como sendo seu. Nessa mesma linha analítica, Bachelard (1993) exemplifica exaustivamente a relação entre o lugar e a psique do homem, e o processo de tornar um espaço comum em lar, casa. Reconhecer que no seu imaginário um lugar pode fazer parte do conjunto de afetividades do sujeito, o habitante, um lugar que evoca à memória fatos, sobre o que se viveu, o que se passou. Logo, um mesmo espaço para uns é motivo de alegria e boas recordações, e para outros, motivo de medo, vergonha ou indiferença. Quando nos deparamos diante da indagação: o espaço da cidade em que você vive é o mesmo de sua infância ou está diferente agora? Pode provocar em nós uma reflexão que as mudanças espaciais podem existir, mas na nossa memória, na individualidade de cada um, aquele espaço que gera sentimento permanece vivo em nós. A primeira casa do casal, o quarteirão em torno do escritório, o terreno baldio, a praça do bairro. A obra de Fabiano, com o passar do tempo, os dias, os momentos chuvosos, a rotina da lavagem das calçadas, as pinturas começarão a ser perder...O Bairro ganha como que uma costura do espaço. Fabiano abraça o bairro com suas pinturas de chão. Que por suas características formais são efêmeras e um dia estarão apenas na memória e na afetividade dos habitantes e passantes do Bairro.

 Figura 7 – A mochila de trabalho de Fabiano Har Stilisto. Fotografia da autora.

1  Conhecido pelos moradores do bairro como Fabiano Hair Designer, ou como ele mesmo prefere Fabiano Har-Stilisto, em esperanto, por se dedicar como cabeleireiro em um modesto salão de cortes e tinturas na residência onde vive com sua família à Av. Julio Furtado entre as ruas Borda do Mato e Grajaú, neste bairro de mesmo nome.

2  Isabella Mendes Fischdick, e também moradora da Rua Grajaú.

3  Segundo Fabiano em depoimento “folhagens albinas”.

4  Federação da Baviera, sul da Alemanha, que tem a cidade de Munique como capital.

5  Diretor da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro - (EBA/UFRJ) na gestão de 2014-2018.

6  Notas sobre o aparecimento da produção artística no Bairro e a repercussão pública e também a especulação com relação à autoria das pinturas / grafites de chão.

ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. São Paulo, Martins Fontes: 1998.

BACHELARD, Gaston.A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

BATISTA, Marcia Nogueira. A vegetação na Paisagem Urbana. In: TERRA, Carlos (org.). Arborização Ensaios Historiográficos. Rio de Janeiro, Maia Barbosa, 2004.

BAUMAN, Zygmund.Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Zahar, 2003

O GLOBO, Jornal. Caderno Especial de aniversário da cidade do Rio de Janeiro, 01/03/2012.

GOMES, Renata Vellozo. Cotidiano e Cultura – as imagens do Rio de Janeiro nos cinejornais da Agência Nacional nos anos 50. Dissertação de Mestrado em Artes Visuais. PPGAV- EBA/UFRJ, 2007. Orientação Prof. Dr. Rogério Medeiros.

LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

SANCHEZ GARCIA, Fernanda Ester. Cidade espetáculo: política, planejamento e city marketing. Curitiba: Palavra, 1997.

SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2002.

Entrevistas e Transcrições:

Entrevistas com o artista Fabiano do Nascimento Costa – primeiro trimestre de 2012.

Jornais/periódicos:

Coluna de Ancelmo Góis 6 - O GLOBO, edição de 11/01/2012.

Referências eletrônicas:

O GLOBO ON LINE - 01/03/2012, 20:24.

Documentos iconográficos:

GOMES, Renata Vellozo. Fotografia Digital à cores. Acervo da autora do artigo.

1  Casa de Fabiano do Nascimento Costa. Fotografia da autora.

2  Calçada com intervenção artística de Fabiano do Nascimento Costa. Fotografia da autora.

3  Calçada com intervenção artística de Fabiano do Nascimento Costa. Fotografia da autora.

4  Calçada em frente à residência do artista. Fotografia da autora.

5  Rua Grajaú, perto da esquina com a Rua Mearim. Fotografia da autora.

6  Rua Grajaú, entre as Ruas Gurupi e Mearim. Fotografia da autora.

7  A mochila de trabalho de Fabiano Har Stilisto. Fotografia da autora.