O Olhar no Contemporâneo
Uma paisagem parece vir se conformando entre os cenários urbanos. Temo-nos sentido como se os olhares tivessem se distanciado, tornados opacos ou desencantados do viver. É como se tivessem avermelhado, mas sem arder, só cansados de tantas horas abertos e forçados, expostos a tudo o que circula a nossa frente. Entregues ao brilho e aos possíveis que as inúmeras novidades do hoje anunciam, fizeram-se secos ante as vibrações sensíveis, a custa de tanto fluxo que não tem passagem entre infinitas processualidades que somos convocados a viver. Não por falta de tentativa, mas pela impossibilidade de sustentar sua grandiosidade
Uma pequena pausa, com o cuidado de se demorar um pouco mais, nos faria aqui perceber algo de muito importante a se pontuar: ao dizer que secaram os olhos para as vibrações sensíveis não significa que não se veja mais, que não haja encontros com o mundo. O que vem se passando é diferente, trata-se de outro movimento.
A potência do olhar, e não o seu apagamento, tem sido explorada a níveis descomedidos. Aí habita o paradoxo: quanto mais o olhar é convocado enquanto ação constante, mais nos aproximamos de uma espécie de cegueira por saturação. Desabituados ao ínfimo, ao lento e ao encontro (com o mundo, conosco, com outros olhos etc), um processo parece se naturalizar, em nome da preservação de nós mesmos, a evitar a vertigem causada pelas acelerações vigentes e pela infinidade de informações que parecem saltar cotidianamente diante de nossos olhos.
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O que é corriqueiro tem perdido lugar entre as coisas que ganham visibilidade1 no mundo. Sacrifício que parece reforçado frente ao grande volume de novos elementos que tem surgido, entre as muitas imagens, tecnologias e possibilidades para a vida, que tem proliferado e que temos vorazmente consumido.
Desse tipo de processo, a homogeneidade é o que parece surgir como característica marcante. Homens, mulheres, crianças, andando apressadamente, tornam-se imagens turvas, indiferentes entre os olhares passageiros e acelerados. O olhar pouco acompanha, ou pode acompanhar, frente às velocidades que o tem capturado. Para melhor entendermos como isso funciona, imaginemos uma fotografia aérea do movimento das multidões em uma avenida qualquer da cidade: bastaria alguns instantes para compormos a imagem e o que se revelaria seria um borrão, turvo, arrastado.
Entre certezas que se atualizam, a impressão que fica é a de que o fazemos por entre histórias pouco diferenciadas, meio borradas, e assim asseguradas de antemão como verdade. Pegamo-nos também como parte desta imagem, a compor paisagens indiferenciadas e totalitárias da vida. Apontando nesse movimento certo modo como temos experienciado o urbano.
Entre passagens, a vida parece esperar por paragens, que nunca vêm. Parece insistir em encontrar a beleza no que parece cada vez mais distante do vivido. Quem mora nas cidades procura a natureza como inspiração, quem mora no campo parece desejar as luzes e edificações da cidade. Perdem-se em comparações quando, no fim das contas, vivem-se processos semelhantes. Necessitando da produção de espaços outros, relações outras com o mundo. Menos totais, menos absolutas.
Serão possíveis outros modos de ver e pensar a vida em meio a tamanha confusão? É possível, com as inúmeras ferramentas e informações disponíveis atualmente, viver a realidade, como uma dimensão possível e potente para a experiência humana?
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Potencializações do Olhar
Uma aposta nos acompanha e, nesse movimento, somos convocados a uma avaliação ética dos paradoxos que compõem a vida. Entre olhares possíveis, nossa potência é entendida enquanto possibilidade poética da existência. Ao viver experimentamos a produção de novas formas de existência, mas é preciso afirmação de uma saúde poética (PELBART, 1999) para a vida.
O poético, no entanto, assim como os novos possíveis, não é algo que preexista ao experimentado. Seus sentidos estão sempre em construção, mistura e desdobramento. É experiência pensada como limite, movimento de reinvenção do próprio olhar arrancando-o de si. O lugar onde as camadas de visíveis podem se realocar, se desfazer, dar lugar a outros modos.
Assim experimentamos. A principio sair e fotografar era nosso único norte (ou desnorte) para o grupo de pesquisa. Flanar e buscar o que poderia ser pensado como Imagem do cotidiano, ensaiando formas de contar as vidas que encontrávamos por aí e exercitando algo que pudesse potencializar isso que entendíamos como olhar, a ensaiar movimentos diferentes dos que vemos funcionando de maneira hegemônica nas grandes cidades. Fotografamos pessoas, lugares, plantas, fios, pássaros, nuvens, luzes e sombras. Entre errâncias e olhares, nossas experiências incitavam a pensar o próprio movimento. Histórias iam se tecendo e criando corpo para pensar como seguir fotografando, como seguir contando o que a cidade exalava por entre os poros. Sabíamos apenas que era algo que nos movia e poderia dizer do que nos tocava no caminho.
Talvez possamos pensar o trabalho realizado como um registro de trajetos, enquanto cartografias do olhar em experiência. Como “um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação das paisagens”, no caso, também como paisagens psicossociais, “fazendo-se ao mesmo tempo que a criação e o desmanchamento de certos mundos” (ROLNIK, 2011, p.23), forjados nos encontros do dia a dia na cidade.
Os experimentos foram se desdobrando, tornaram-se exposição (“imagens da cidade ou sobre as potências da errância”, 2012), deram a pensar oficinas na Universidade (UFES), fazendo-se por entre espaços e apostas de se produzirem novos olhares.
Das oficinas realizadas, nossos roteiros sugeriam seguir trajetos conhecidos, permanecer, experimentar a lentidão... relacionar-se de outra forma com o visto, o vivido, conversar, olhar melhor e de novo, buscar camadas e características das coisas até desfazer o visível em diferentes possíveis. Entre ângulos, cores, contrastes, séries repetidas, séries descontínuas, traçávamos novos trajetos.
Como uma dança, construindo novos desenhos, novas imagens entre a experiência do olhar, fotografar e do falar sobre. Movimentos de perder e construir o olhar. Desfazendo a distinção entre o visto e o que vê, brincando com as visualidades e fazendo da cidade um jogo.
Embriagados de vida, tornamo-nos assim observadores, com os pés a guiar o pensamento, prontos a descobrir onde na cidade vibram sinais de vida. Acionando o sensível enquanto modo perceptivo e fazendo do olhar um movimento despretencioso e aberto a sair de si. Em uma poética andarilha, percorrendo espaços no intento de, em vez de emoldurá-los em catálogos e descrições, conjurar as paisagens em seu desmoronamento e reinvesti-las do poder de revidar aos encontros do olhar.2