É muito comum que, ao estudar o trabalho de um artista, que as questões de sua vida privada sejam deixadas de lado. O oposto também é verdadeiro: que se fale de sua vida sem que a importância de sua obra seja levada em conta, como em uma revista de fofocas de celebridades. Na procura de equilíbrio, é necessário que se estude a vida privada de alguém apenas na medida em que ela reverbera em suas obras, uma vez que as pessoas se vão, as obras ficam. O artista brasileiro Hélio Oiticica (1937-1980), de quem pretendemos falar aqui, tem uma referência construtivista européia muito forte em suas obras, na medida em que o construtivismo rompeu com as questões formalistas da arte tradicional e aspirava à socialização da arte. Por isso não se deve ignorar a convivência de Oiticica com os moradores do Morro da Mangueira e suas “andanças” pela cidade do Rio de Janeiro como presença em seu trabalho.

A trajetória de Oiticica na historiografia da arte brasileira é muito conhecida, e por isso não temos a intenção de recontá-la. Todavia é importante apontar alguns desses dados. Ele foi levado por seu pai a estudar pintura com Ivan Serpa (1923-1973) no ano de 1954 e, pouco tempo depois, juntamente com Serpa e outros artistas, formou um grupo de vanguarda ao qual chamaram Grupo Frente. O grupo tinha compromisso com a liberdade criativa e as tendências construtivas da primeira metade do século XX, no sentido supracitado. As obras de artistas como o russo Kasimir Malevitch (1879-1935), bem como do holandês Piet Mondrian (1872-1944) estavam nas bases dos conceitos dos artistas do Grupo Frente não pelas questões de “abstração”, ou “geometrização” compositiva, mas especialmente porque esses artistas romperam com as estruturas formais do que até então era produzido na arte de sua época. Não por acaso ambos foram citados com freqüência por Oiticica em seus textos e entrevistas.

Hélio via seu trabalho como continuação desse legado construtivo da arte. Podemos notar isso em seus Metaesquemas, com resultado formal semelhante às obras de tendência construtivista dos primeiros anos do século XX, em que o artista concebia a questão espaço-temporal da pintura de forma absolutamente racional. Contudo, essa espécie de continuação não seria por repetição formal, como já dissemos, mas por desenvolvimento contínuo de ideias. Uma questão cara à Oiticica no início de suas pesquisas, por exemplo, era o rompimento com o plano retangular como suporte da pintura. Já no final dos anos de 1950, com os Relevos Espaciais, Oiticica efetiva esse rompimento e torna a questão espacial muito mais complexa, transmutando o plano em um objeto tridimensional pendurado no teto. Nem pintura, nem escultura: eram relevos espaciais. Com isso, Oiticica eliminou toda a questão de representação e planaridade de seu trabalho, permitindo ao espectador a experiência da obra de arte no espaço, ou seja, uma vivência da obra de arte em detrimento de sua observação. Embora compreendesse a origem pictórica de seu trabalho, ele chega a dizer em 1961 que não tomava a “pintura como sinônimo de quadro” (OITICICA, 2009, p.21). Esta questão fica evidente na análise destes trabalhos citados, em que planos de madeira foram recortados, pintados e organizados no espaço de modo que os espectadores pudessem penetrar entre eles ou andar à sua volta.

Uma vez que sabemos que não apenas a obra de Mondrian, como também seus textos influenciaram Hélio Oiticica, podemos citá-lo:

A arte é a expressão plástica e (involuntariamente) também o meio para a evolução da matéria: a obtenção de um equilíbrio entre a natureza e a não-natureza – dentro e em torno de nós. A arte permanecerá sendo expressão e meio até que este desequilíbrio seja (relativamente) alcançado. Ela terá então cumprido sua tarefa e a harmonia na exterioridade à nossa volta, tanto quanto na vida exterior. A dominação do trágico na vida terá terminado. (MONDRIAN, 2008, p.131).

Mondrian acreditava que a vida deveria atingir sua plenitude material e espiritual, mas isso seria possível apenas através da arte. Na arte poderiam ser encontradas a beleza e a harmonia que o artista considerava deficientes na vida e no meio ambiente. Com os Relevos espaciais, Oiticica dava seu primeiro passo na direção do equilíbrio entre natureza e não-natureza. Subseqüentemente a esses trabalhos, ele criou os Núcleos, os Penetráveis e os Bólides, que propunham uma relação interativa com o espectador, uma vez que este poderia ser envolvido pela cor. Ao analisarmos as entrevistas1 de Oiticica desde 1961 até o ano de sua morte, é possível notar sua consciência no desenvolvimento do trabalho plástico para um novo modo de relacionar-se e podemos dizer que essa plenitude foi alcançada com os Parangolés. Podemos dizer também que os Parangolés foram criados, em larga medida, porque Hélio foi apresentado ao samba da Mangueira.

No ano de 1963, Oiticica foi levado por seu amigo, o escultor Jackson Ribeiro (1928 - 1997), juntamente com o escultor Amilcar de Castro a conhecer o Morro da Mangueira e o apresentou às pessoas que conhecia lá, bem como as rodas de samba. Oiticica se envolveu tanto naquela atmosfera que, anos depois, morando em Nova Iorque, foi perguntado se não sentia saudades, ao que respondeu: “Como é que eu vou ter saudades? Eu sou o Brasil. Eu sou a Mangueira. Eu comi a fruta inteira. Não deixei pedaços para vir buscar depois.” (OITICICA, 2009, p. 164). Embora se trate de uma metáfora, Oiticica evidencia a importância do lugar que a favela havia tomado em suas experiências pessoais. Na Mangueira, Oiticica aprendeu a sambar e se tornou um dos principais passistas da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira (recebia até a roupa para desfilar no carnaval do Rio de Janeiro), tinha amigos muito próximos e encontrou o sentido de coletividade que desejava levar às suas obras. Sabemos desse seu desejo não apenas pela observação de sua trajetória desde os anos de 1950, mas também em sua fala sobre os Bólides, realizados antes dos Parangolés:

Para mim os conceitos de arte como uma atitude fixa, contemplativa, acabaram – não podemos mais conceber “estéticas”, mas sim um modus vivendi do qual se ergueram valores ainda nebulosos. [...] Não se trata pois da “arte” como objeto supremo, intocável, mas de uma criação para a vida que seria como que uma volta ao mito, que passa aqui a ocupar um lugar proeminente nessa totalidade. Esse mito regido por ‘estados criativos’ em sucessão no indivíduo e na coletividade – não se quer o ‘objeto arte’, mas um ‘estado’, uma predisposição às vivências criativas; um incentivo à vida. (OITICICA, 2009, p.37).

Tal “incentivo” se efetivou com a criação dos Parangolés, pois, com eles Oiticica pôde envolver o espectador de tal modo que o termo já não servia. Foi preciso designar o espectador como participador, pois, segundo o próprio Oiticica, os Parangolés são a volta a um estado não intelectual de criação e prescindem de participação coletiva de tal modo que o artista narrava as experiências com esses trabalhos em alguns lugares por onde esteve, como se estivesse vivenciando uma nova invenção, que já não seria mais seu trabalho. Foi o que observou a artista Lygia Pape (1927- 2004) em uma dessas narrativas:

Engraçado como você está narrando estes fatos, parece que é o artista que propicia que apresenta uma proposta e que depois se delicia fazendo uma interpretação própria da reação que essa proposta desencadeou em um número de pessoas. É como se você estivesse fazendo a leitura de sua própria exposição, que não é mais sua. Você está recriando em cima da criação deles, feita em cima da sua proposta. (OITICICA, 2009, p.155).

A observação de Pape faz referência ao fato de que, uma vez que os participadores vestiam Parangolés, seu criador já não tinha qualquer domínio sobre eles. O modo como cada pessoa dançava, movia as partes, o modo como entravam num estado de invenção ao usar um Parangolé colocava Oiticica como seu observador; além de ser aquele que criava, tornava-se contemplador de seu próprio trabalho, a ponto de surpreender-se com as possibilidades oferecidas pelos participadores no momento de envolvimento com a obra. Os Parangolés podiam ser feitos com materiais diversos, como tecidos, lonas, plástico e até mesmo jornal. Alguns ganharam bolsos e, neles o participador encontrava pedras, conchas, pigmento, essências cheirosas com os quais os participadores poderiam interagir. Mas antes de qualquer coisa, eles deveriam ser vestidos. Quem os vestia poderia fazer o que desejasse fazer, e sabemos pelos relatos que as pessoas dançavam. Algumas improvisavam com a forma dos Parangolés, transmutando-os. Por exemplo, em Pamplona, na Espanha, foi proposta uma experiência de Parangolé: três metros de tecido eram oferecidos aos participadores, que os enrolavam no corpo como melhor lhes conviesse e poderiam prender as partes do tecido com alfinetes de fralda. O participador poderia então retirar o Parangolé que fizera em seu corpo e oferecer a outro participador, que dificilmente conseguia vesti-lo como fora concebido pelo anterior. Em outros casos, em que o próprio Oiticica determinava as formas, as costuras nas partes dos materiais não eram determinantes absolutos de suas formas, pois eram feitas de tal maneira que permitiam o uso reverso. Cada parte era um dentro tanto quanto um fora. Por isso Oiticica dizia que eles são um estado de invenção pura.

Em outra situação contada por Hélio Oiticica, proposta no pátio do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, muitos espectadores encararam a proposta de modo desconfiado, ao passo que os moradores do Morro da Mangueira que vieram sentiram-se à vontade. Podemos supor que o público normalmente visto no espaço do museu, de certa maneira “formado” por uma tradição artística encarasse com desconfiança a proposta justamente por desconhecer o estado de invenção. Enquanto isso, os participadores da Mangueira, despidos da casca das tradições institucionais e dos ambientes museológicos, perceberam a proposição de Hélio com a familiaridade do samba do morro. Ao envolver-se completamente na atmosfera propiciada pelo morro e seus moradores, Oiticica encontrou o que procurava e, mesmo morando longe do Brasil, em Londres e Nova Iorque manteve-se em estado de invenção.

Quanto à palavra Parangolé, Oiticica afirma que a viu escrita numa placa, feita por um morador de rua, pendurada em uma armação semelhante a uma tenda em um terreno baldio, próximo à Praça da Bandeira, no Rio de Janeiro. Ao vê-la naquela construção tão precária, mas ao mesmo tempo curiosa, a palavra lhe pareceu tão inventiva quanto seu trabalho. A noção de arte pública na obra do artista encontrou respaldo no lugar e nas pessoas que conheceu, nas trocas pessoais. Contudo, Hélio Oiticica não era, como ele próprio dizia, a Mangueira; ele era mais, era a rua. Hélio Oiticica era os lugares por onde transitava. Era o caminho que fazia da casa de Lygia Clark, indo pela Central do Brasil, onde parava em diversos bares para conversar, seguindo pela casa de Oto do Estácio e acabando a noite numa roda de samba no Morro da Mangueira2. A pé. Ou de ônibus.

O artista, embora não mencione diretamente que realizava essas caminhadas em Londres ou Nova Iorque, onde morou por longo tempo, dá a entender em certas entrevistas que o fazia. A recorrência com que caminhava pela cidade conversando com moradores de rua, traficantes, prostitutas, envolvendo-se com a cidade era tão grande que até ganhou nome: “Delírios ambulatórios”. Talvez se chamasse delírios porque Hélio Oiticica percebia a cidade como uma pulsão da criatividade ainda não concretizada. Ao elaborar suas obras, todavia, tornava públicas suas vivências: “Quando eu ando ou proponho que as pessoas andem dentro de um Penetrável com areia e pedrinhas... eu estou sintetizando minha experiência da descoberta da rua através do andar.” (OITICICA, 2009, p.231). O sobrinho de Hélio, Cesar Oiticica Filho, conta que o tio, quando criança, decorou o Guia Rex da cidade do Rio de Janeiro, o que corresponde a conhecer as linhas de ônibus, os pontos de parada etc. Em outra ocasião da infância, Hélio desenhou a planta de uma cidade que imaginou. O artista esteve fazendo, durante toda a sua vida, a mesma coisa: vivenciar experiências no espaço da cidade e oferecê-las, em forma de novas experiências aos participadores. Desde a infância ao final da vida, passando pela formação artística de vanguarda, Hélio Oiticica tornou a experiência pessoal numa possibilidade pública de trocas sensíveis. Hélio aspirou, e atingiu, o grande labirinto.


 Figura 1


Figura 2

1  Muitas destas entrevistas foram compiladas no livro Hélio Oiticica (cfr. Referências).

2  Oiticica descreveu seus percursos pela cidade em uma entrevista realizada por Aracy Amaral, em Nova Iorque, no ano de 1977.

BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo – Vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
CLARK, Lygia. Carta a Mondrian. In: COTRIM, Cecília; FERREIRA, Glória. Escritos de artistas – anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.
GRANDO, Angela; SARNAGLIA, Melina Almada. Topologia da diferença: alargamento de territórios no habitar o outro. Cachoeira: 19º Encontro Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas – ANPAP, 2010.
MONDRIAN, Piet. Neoplasticismo na pintura e na arquitetura. São Paulo: Cosac & Naify, 2008.
OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
OITICICA, Hélio. A transição da cor do quadro para o espaço e o sentido de construtividade. In: COTRIM, Cecília; FERREIRA, Glória. Escritos de artistas – anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.
OITICICA, Hélio; FILHO, Cesar Oiticica; VIEIRA, Ingrid. Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009.
OITICICA, Hélio. Esquema geral da Nova Objetividade. In: COTRIM, Cecília; FERREIRA, Glória. Escritos de artistas – anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.

1  Hélio Oiticica, Parangolés, 1967. Disponível em: http://sobrevivenciadasideias2013.blogspot.com.br/2013/10/lucas-botelho-referencias.html Acesso em 26/06/2014.

2  Hélio Oiticica, Parangolés, s/d. Disponível em: http://icanonlygiveyoueverything.blogspot.com.br/2012/01/parangole-by-helio-oiticica.html Acesso em 26/06/2014.