O processo de descentralização da linguagem sob uma condição limítrofe do meio, entre contornos que se indefinem e contaminam, reflete-se diretamente no uso do vídeo nas artes visuais. Arlindo Machado (2008, p.10) afirma que pensar o vídeo “significa colocar-se fora de qualquer território institucionalizado e aceitar o desafio de lidar com um objeto híbrido, muitas vezes nem mais objeto, mas acontecimento, processo, dissolvido ou incorporado em outros fenômenos significantes”. Nesse sentido, abordarei, no presente ensaio, a condição híbrida que tangencia algumas de minhas experiências artísticas que se caracterizam pelo uso reverso do vídeo. Num primeiro momento, cercarei a relação entre imagem em movimento e imagem fixa, e, em outro, problematizarei concepções formais na construção e significação dessas imagens através das contaminações entre vídeo, cinema, fotografia e pintura.
Para abordar esse processo de descentralização, inicio o ensaio com minha primeira experiência em vídeo realizada em 2004 através do trabalho Espelho, no qual registro meu reflexo no espelho embaçado do banheiro e o processo de revelação dessa imagem que inicialmente é encoberta pelo vapor do chuveiro e que lentamente torna-se nítida. O vídeo é exposto sem edição em sua forma bruta, fiel ao tempo desse processo que dura cerca de 20 minutos, semelhante às vídeo-performances dos anos de 1970, em que os artistas utilizavam o tempo real do vídeo como recurso criativo para registro de suas ações voltadas para serem vivenciadas no seu processo de construção.1
Nessa primeira experiência em vídeo, surgiram muitos questionamentos sobre o limite entre ação, registro, movimento e duração, pois não se caracterizava por uma narrativa videográfica voltada em geral para planos entrecortados em ações subdivididas a partir da ideia de simultaneidade,2 mas um vídeo para exposição devido à sua extensão e mínima ação, muitas vezes, provocando a sensação de inatividade e até mesmo confundindo-se com uma imagem fixa. Dubois (2003), ao abordar as relações e influências entre cinema e artes visuais e o uso do vídeo de forma reversa, principalmente em experiências entre imagem em movimento e imagem fixa, refere-se a essa característica de temporalidade no vídeo como “cinema de exposição”.
Apesar de se tratarem de vídeos, esses trabalhos fazem da questão do movimento na imagem uma experiência dos limites [...] diante dessas obras, o espectador duvida. Ele se pergunta sobre a percepção: há ou não movimento? É um movimento da imagem ou na imagem? O que se movimenta exatamente (a imagem em si, o que há na imagem, eu diante da imagem, a tela, o projetor, a luz ou alguma outra coisa)? Uma imagem dita em movimento pode apresentar imobilidade? Há formas intermediárias entre movimento e a imobilidade? (DUBOIS, 2003, p. 10).
Todos meus outros trabalhos em vídeo, após essa primeira experiência, tiveram os mesmos questionamentos e embates entre a construção de sentidos que, de alguma forma, transbordaram os limites do seu meio através do uso do vídeo para registro de experiências poéticas, fugindo da narrativa videográfica tradicional e contaminando-se por outros meios.
O vídeo nas artes visuais, como aponta Mello (2008), em seu livro Extremidades do vídeo, caracteriza-se pelo seu hibridismo, como um meio que expande as suas próprias especificidades. Mello (2008), ao falar sobre o hibridismo do vídeo nas artes visuais, vai considerá-lo através da “noção de extremidades, utilizada como atitude de olhar para as bordas, observar as zonas-limite, as pontas extremas, descentralizadas do cerne da linguagem videográfica e interconectadas em várias práticas” (p.31). A autora também se refere a essas práticas e procedimentos de contaminação no vídeo, em que seu meio é colocado em discussão a partir de outras linguagens, “como uma convergência incessante de contrários, geradora de síntese e potencialidade poética.” (MELLO, 2008, p.139).
Essa contaminação apresenta-se de maneira peculiar e sob diferentes aspectos na série de vídeos Ponto de Fuga (2009-14), foco do ensaio. Esta série trata de vídeos que registram quadros fixos de paisagens campestres. Os primeiros momentos dos registros captam apenas a aparente ausência de movimento da paisagem até que, em determinado momento, atravesso o quadro correndo em direção ao ponto de fuga, rompendo e preenchendo o espaço vazio do quadro até ser suprimida pela linha do horizonte como num gesto de fuga da própria paisagem que volta à monotonia inicial.
Embora o meio usado para registrar essas tais ações seja o vídeo, são implicadas, na imagem captada, características da narrativa cinematográfica através da linearidade dos extensos planos abertos, ao contrário de uma narrativa videográfica mais abstrata e/ou com a sobreposição de planos e ritmo acelerado. A duração dos vídeos varia de acordo com a profundidade e as adversidades da paisagem. Nesse sentido, a série de vídeos desdobra-se em dois estados transitórios. O primeiro estado é o de suspensão, onde a imagem apresenta-se aparentemente estática, e o outro estado é o de movimento, onde a ação de correr confere duração à imagem captada. A interseção entre imagem suspensa e imagem em movimento dá-se pela ação do corpo na paisagem. Como aponta Fatorelli (2010),3 em seu livro Fotografia contemporânea: entre o cinema, o vídeo e as novas mídias, “esses estados transitórios encerram, nas suas variações, as tensões presentes nas imagens entre uma força narrativa, que se desdobra no tempo, e uma força interna, que aponta para sua singularidade enquanto ocorrência pontual” (p.15). Ainda sobre tais estados, Fatorelli (2010) coloca que o trabalho entre a imagem fixa e a imagem em movimento, “realiza-se sob o signo do estranhamento, desestabilizando as convicções tradicionalmente associadas aos meios” (p.15).
Esse desdobramento entre imagem em movimento e imagem fixa também se estende ao projeto de montagem de exposição. Como se trata de uma série de vídeos para ser exposta em um único espaço e em suportes separados, essa concepção reforça a ideia do movimento de espera, pois cada vídeo apresenta um tempo diferente e assim a estaticidade de cada trabalho também é quebrada em momentos diferentes. Nesse sentido, a sensação de monotonia e de quebra gerada dentro de cada vídeo através desses estados transitórios é estendida para o ambiente de exposição.
Outra relação de tempo entre o público e as imagens expostas seria também semelhante ao tempo cedido a exposições de imagens fixas como pintura ou fotografia, através de um olhar que mais observa que propriamente assiste a um vídeo, um olhar contemplativo, com tempo para descobrir nuanças de uma imagem, mas que, sendo vídeo, só é possível, neste caso, pela sua suspensão. Desse modo, Fatorelli (2010), ao referir-se às instalações em que envolvam imagens através de sistemas de mídias, descreve que:
Prevalece nesses ambientes, a lógica associativa da sobreposição de diferentes formas imagéticas, dispostas de modo a deflagrar um jogo de confrontação entre as convenções visuais e as expectativas historicamente referidas à fotografia, ao cinema, ao vídeo ou às artes plásticas. Nessas cenografias as questões relativas às singularidades e à identidade dos meios encontram-se deslocadas, substituídas pelas sobreposições e atravessamentos, pelos modos múltiplos e sempre renovados de agenciamento das imagens e dos sistemas de mídias. (FATORELLI, 2010, p.15).
Essas sobreposições e atravessamentos, em que o meio é ressignificado, apresentam-se também na concepção formal das imagens da série Ponto de fuga através do conceito de perspectiva e as relações do seu uso e características nas imagens clássicas como a pintura, a fotografia e o cinema e nos sistema de mídia como o vídeo. O título que dá nome ao trabalho refere-se ao ponto de fuga4 que se situa na linha do horizonte que representa a interseção aparente de duas, ou mais, retas paralelas, segundo um observador fixo e que se tornou um elemento importante para imagem clássica desde o Renascimento. Assim, a concepção formal das imagens registradas nesta série busca nas características dessas imagens, como pinturas de paisagens, elementos para compor as imagens enquadradas dessa série de vídeos. No entanto, como Dubois (2004) descreve, a noção de perspectiva no vídeo dá-se através da “espessura da imagem”,5 diferente do cinema e da fotografia clássica ou mesmo da pintura clássica em que a perspectiva parte do “sujeito-como-olhar” entendido como profundidade de campo. Assim, o uso do vídeo nessa experiência caracteriza-se pela sua ambiguidade através do uso reverso desse meio para registro da ação em questão.
Ao recriar a perspectiva dessas imagens através do vídeo como referência às imagens clássicas do cinema, da fotografia e da pintura, o vídeo apresentar-se-ia nessa proposta na definição de Mello (2008) como “falhas, fissuras ou fendas”. Neste caso, essa falha relaciona-se ao modo como em meus vídeos a perspectiva é tensionada entre esses meios. Dubois (2004), ao tratar o assunto, descreve o cinema e o vídeo respectivamente como “profundidade de campo versus espessura de imagem”, no qual, “o plano em profundidade de campo é a figura metonímica por excelência do cinema” (2004, p.85) enquanto que, no vídeo, não há profundidade de campo no mesmo sentido, pois “não há mais uma imagem única, mas várias, embutidas umas sobre as outras, umas sob as outras, uma nas outras” (2004, p.86). No entanto, como nos coloca Dubois, o vídeo “não deixa de produzir efeitos de profundidade, mas uma profundidade, por assim dizer, de superfícies, fundada na estratificação da imagem em camadas” (2004, p.87), ou como expõe Arlindo Machado na apresentação do livro de Dubois “um efeito de relevo que só pode existir na imagem, não no mundo designado por ela. É um efeito construído pela tecnologia, que desloca a impressão de realidade do cinema e a substitui por uma vertigem: a imagem em si oferecida como experiência.” (2008, p.14).
Embora a imagem captada apresente em sua composição um plano aberto, único e linear, com a intenção de produzir uma imagem com características do conceito clássico de perspectiva, ou seja, a profundidade de campo, em sua composição, a perspectiva como tal, é comprometida nessa experiência pela limitação técnica6 do seu meio, pois no vídeo “quanto mais longe o objeto filmado estiver da câmera, menos nítida será sua imagem. A tendência videográfica é achatar a clássica imagem em perspectiva, implicando na perda da profundidade de campo.” (BERNARDES, 2011, p.6) Assim, a perspectiva nessa experiência em vídeo é simulada através da ação de correr, não cabendo aqui nem a noção de profundidade de campo da imagem clássica nem a espessura de imagem do vídeo, mas uma perspectiva simulada pelo movimento da ação de correr e sua duração.
Ao captar em vídeo as imagens da série Ponto de Fuga, nos primeiros instantes, onde se apresentam apenas a paisagem vazia em plano único, embora se visualize aparentemente uma imagem em perspectiva, não há como dimensionar precisamente sua profundidade de campo e as distâncias entre seus planos. Essa dimensão só concretiza-se quando interfiro na paisagem ao invadi-la. Apenas nesse momento, é possível dimensionar a profundidade dessa paisagem, através do movimento e duração da corrida até desaparecer do quadro. Um dos vídeos realizados para a série define bem tal proposta de perspectiva, que poderia chamar de perspectiva temporal, no qual a paisagem captada é um trilho de trem abandonado. O vídeo em questão é o com maior duração da série, no entanto, quando o vídeo registra apenas a paisagem aparentemente estática pouco se diferencia dos outros vídeos com menor duração e não há noção de sua profundidade, apenas quando inicio sua travessia que leva cerca de quatro minutos até sumir no horizonte.
As duas linhas limítrofes problematizadas nessa série de vídeos, ou seja, a fissura entre imagem em movimento e imagem fixa, e o conceito de perspectiva entre os meios, tem na ação entre corpo e paisagem o ponto de encontro entre as duas “extremidades”. Do mesmo modo que a ação de correr concede à imagem uma perspectiva, quando o deslocamento do corpo dimensiona a profundidade do quadro, a mesma ação concede duração à imagem quando o corpo dimensiona sua permanência no quadro. Assim, perspectiva e movimento acontecem no tempo da relação entre corpo e paisagem.
Por essas questões, a série Ponto de Fuga apresenta-se em uma situação fronteiriça, em um processo de “descentralização de linguagem” (MELLO, 2008, p.25), no qual transborda para suas margens para significar a si e seu meio, que se sobrepõem nessa experiência. Rosalind Krauss (1997) descreve no texto Entropia, presente no livro Formless escrito junto com Yve-Alain Bois, o processo termodinâmico da física que dá nome ao texto, e como isso se reflete na análise visual para falar justamente da diluição de fronteiras nas artes visuais e de que forma isso se processa nos meios expressivos. Entre os exemplos que Krauss (1997) apresenta para fazer tal analogia é a teoria sobre mimetismo de Roger Caillois,7 no qual fala sobre a condição de contorno em que o animal é incapaz de manter a distinção entre si e seu meio. Embora, não se trate de uma situação mimética em si, essa diluição é implicada também à ação entre corpo e paisagem como já mencionado, em que a ação apresenta-se sob dois aspectos, na ressignificação do movimento e da perspectiva dos vídeos. No entanto, a ação em si também se mostra de modo ambíguo nesse contexto através do gesto de fuga da paisagem ou para paisagem. De buscar ou ir ao encontro, tornando-se paisagem ou devorada por ela. Caillois (1986) descreve em seu ensaio Mimetismo e psicastenia legendária, esse processo ao comparar a condição descrita por esquizofrênicos que se sentem despossuídos e até mesmo devorados pelo espaço em torno deles.
O corpo então se desolidariza do pensamento, o individuo atravessa a fronteira de sua pele e habita do outro lado dos seus sentidos. Ele procura se ver de um ponto qualquer do espaço. Ele mesmo se sente virar espaço, espaço negro onde não se podem pôr coisas. Ele é semelhante, não semelhante a alguma coisa, mas simplesmente semelhante. Ele inventa espaços dos quais ele é a “possessão convulsiva”. (CAILLOIS, 1986, p. 63).
Assim, a indefinição da ação torna-se reflexo da condição limítrofe de um meio, que sob a ótica mimética de Caillois (1986) poderia definir-se como um meio não descentralizado, mas esquizofrênico, em que o uso do vídeo define-se pelo que não o caracteriza, através das relações entre ação e espaço, entre corpo e paisagem, entre movimento e fixação, entre profundidade e camadas. O meio aqui tem suas especificidades atravessadas pela ação contaminando-se por outros meios atribuindo um caráter múltiplo ao vídeo. Krauss (2008) denomina essa condição limítrofe dos meios nas artes visuais de pós-midiática, ou seja, “as obras agora já não são mais media specific: elas são maiores que os meios, elas os atravessam e os ultrapassam”. (MELLO, p.11). Assim, embora o vídeo tenha suas particularidades diluídas nesses processos criativos contemporâneos, ele também se transforma, enquanto pensamento, tornando-se uma prática cultural do nosso tempo.