Lançar-se sobre os “microacontecimentos” diários, buscar no ínfimo situações que despertem um deslocamento do olhar. Assim, se desenrolam as histórias de Cao Guimarães, suas narrativas surgem dessa potencialidade do olhar, capaz de transcender uma realidade mais imediata. Como o artista revela, é um olhar atento às expressividades das coisas, mesmo as que aparentam ser as mais banais.
[...] quando questionado sobre quais temas poderiam fazer parte de suas obras, Cao conta que tudo que está ao seu redor tem relevância e aí talvez esteja a mais marcante característica de seu trabalho. Segundo o artista, da parte dele existe a total aceitação de que uma folha ao vento é tão expressiva quanto uma cantora lírica.1
Assim o pequeno, as “coisas desimportantes”, o cotidiano, o efêmero, o tempo, o silêncio, o vazio, os ruídos, a memória, “a dramaticidade da forma” (como ele mesmo aponta)... são elementos, sutilezas que inundam os seus trabalhos e são de certa forma como motes para olhar a vida por um novo ângulo. O ato de olhar, nos trabalhos de Guimarães, é um ato que se prolonga no tempo, é assim, em sua essência, um olhar também para dentro, um olhar de olhos bem fechados que transcende o que é visto, vivido. Imagens que se ecoam em quem as vê, por terem em sua medida, um lugar para o mistério. Imagens abertas, que dão espaço e que convidam o espectador a imergir em sua obra e encontrar, no silêncio dos seus trabalhos, espaço para completar as entrelinhas, projetar-se em possíveis histórias.
Histórias do não ver,2 segundo Guimarães (2013), é um trabalho que surgiu do sentimento de esgotamento em relação à imagem, uma tentativa de força contrária a esse mecanismo “mediador” da percepção das coisas ao seu redor. Uma necessidade de abstinência da imagem, por vivermos em um mundo predominantemente visual. Como Sardenberg (2007) ressalta, até mesmo quando dormimos sonhamos imagens.
Recolho assim alguns rastros dessas histórias que vão muito além do simples relato ou documentação em um livro, em que imagem e palavra reverberam por entre as páginas em sua pluralidade de sentidos. Ao longo do texto apresento alguns desses fragmentos:
O contato com água logo pela manhã, o cérebro ainda vazio, o sincronismo das braçadas, o deslizamento da realidade mais imediata. Quanto mais independentes (automatizados) meus movimentos, mais soltos meus pensamentos e mais imprevisíveis as associações entre eles. [...] uma série de pensamentos e de associações de imagens de tal modo caótica que só encontrava justificativa na breve dedução ou constatação de aquilo ser o que eu havia sonhado aquela noite. (GUIMARÃES, 2001, s.p.: introdução).
O seu corpo a deslizar sobre a água e “o deslizamento da realidade” (GUIMARÃES, 2001, s.p.: introdução) por entre os dedos, o peito, o rosto. A realidade a escapar do campo da visão e das certezas. O sincronismo das braçadas e a dessincronia “de uma série de pensamentos e de associações de imagens” (GUIMARÃES, 2001, s.p.: introdução) que fizeram a experiência do mergulho, para Guimarães, soar como algo próximo ao vivenciado no estado onírico.
Entre o céu e os azulejos meu corpo se enchia da lembrança de sonhos recentes, uma caótica edição de imagens e de sons me visitando por uma segunda vez. [...] Narrar os sonhos debaixo d’água prendendo-os dentro de bolhas. Sentir o som como matéria e tempo. O tempo dos sonhos preso na realidade da bolha. Passado, presente e futuro – comprimidos na extensão de um simples momento – estavam prestes a explodir. Eu abria os olhos para ver o tempo explodir. (GUIMARÃES, 2001, s.p.: introdução).
As bolhas rompendo a água, em palavras, pensamentos, frases. Abrindo espaço na água e na mente para novas percepções, novas experiências. Essas são então o cerne dessa obra, que tem a experiência como elemento gerador de significado no processo de criação. A entrega a um simples acontecimento diário, como ‘porta de entrada’ a um território imaginário. Onde é possível reperceber a vida e reinventar as coisas ao seu redor. Essa capacidade de ressignificação das coisas em seus trabalhos perpassa pelo pensamento “manoelano” 3 (BARROS, doc. JANELA DA ALMA, 2002): “O olho vê, a lembrança revê e a imaginação transvê”– são obras assim que incitam a “transvisão”. O trabalho de Guimarães é um trabalho que marca um homem e sua confluência com o mundo.
O livro é um relato da experiência do sequestro, no qual o artista propõe a alguns amigos, residentes em diferentes cidades e países, que o sequestrassem, o vendassem e não dissessem para onde, nem como isso seria feito. Cada amigo teria liberdade de planejar o ato à sua maneira, “o único pedido” era que lhe dessem uma máquina fotográfica e rolos de filme, para que pudesse registrar esses momentos. A partir das “fotografias cegas” e de pequenos relatos escritos, Guimarães narra suas percepções do que foi vivido. Dessa forma, essa experiência do sequestro questiona “o quanto estamos cegos em relação aos outros sentidos”4 como ressalta também o quanto esses são fundamentais no processo de significação das experiências vividas. Além disso, revela uma vontade de romper com os enquadramentos que a racionalidade ou mesmo a visão nos vicia a seguir, sendo o descontrole da situação, um gatilho para isso. Um caótico fluxo de pensamentos é irrompido pelo sequestro e o imprevisto atua então, como um elemento gerador de novas formas de se perceber, pensar e reorganizar o seu entorno impulsionando assim o processo da criação artística. Nesse trabalho, memória, sonho, cegueira e sequestro se apresentam como mecanismos para se alcançar as coisas na potencialidade dos outros sentidos e dessa forma, desprender-se das certezas, fragmentar a realidade, se entregar então à livre associação de sons, imagens e pensamentos.
Histórias do não ver não é uma obra que usa o livro apenas como suporte para documentar suas histórias, mas que insinua, em sua forma, o conceito de sua narrativa. No negrume da capa a visão se “acega”, apenas um buraco revela parte do que está por vir, e persiste até as páginas iniciais do livro, se apresenta como rastro do momento do mergulho, um registro do passado, instante esse no qual nasceu o projeto. Com o passar das páginas, o buraco é um vazio que marca ausências e simultaneamente o cheio que condensa palavras em fluxo interrompido, pensamentos soltos do resto do texto, mas presos na bolha. Esse limite da “esfera” que impossibilita a visão de alcançar toda a área da página paradoxalmente antecipa o que nos espera na trama: todo o resto que se encontra lá, mas que não podemos ver. São pontos que se opõem em passado e futuro, vazio e cheio, revelação e sonegação – ideias que permeiam toda a obra. De repente, explode a bolha em palavras, lembranças, sensações, delírios e divagações quando começa o relato do primeiro sequestro.
Eu queria sentir o mundo apenas através do que estivesse ouvindo, cheirando, pegando, pensando. A visão sempre me parecera um sentido tirano com relação aos outros sentidos. Sem ela o mundo poderia ser então vários mundos; a realidade várias realidades. (GUIMARÃES, 2001, s.p.: introdução).
O trabalho de Guimarães tem como mote a potencialidade da forma na construção de possíveis narrativas para perceber a realidade que nos cerca, ou melhor, perceber a multiplicidade desta, que muitas vezes é pensada como uma verdade unívoca. Isso se evidencia nesse livro, ao dar a “voz” a outros sentidos que temos, mas que ficam “oprimidos” pela visão. A “tirania” dessa é sufocada pela sinestesia provocada pela entrega a todos os outros sentidos, durante o experimento. A cegueira, então, não se apresenta como fator limitante, pelo contrário, funciona como um mecanismo de expansão dos limites do conhecido. O artista fornece pistas de possíveis histórias através de imagens que surgem como flashes mnemônicos ou mesmo delírios oníricos, que dão à trama uma qualidade cinematográfica, por produzirem uma sensação de prolongamento do tempo. A sucessão de pequenos relatos escritos e das imagens “cegas” decompõe os fatos em ritmo e movimento, de maneira caótica, como no experienciado mergulho matinal, relatado na introdução do livro, e no ressoar das lembranças.
Guimarães “propõe” dessa maneira o seu sequestro como forma de provocar situações que simulem, remetam ao estado onírico e mnemônico. Isso porque a tensão despertada pela sujeição à vontade alheia; pela ansiedade do devir; pela sensação do não lugar e de desprendimento do tempo, irrompe o fluxo de pensamentos, das emoções e também da imaginação. Além disso, tanto a memória quanto o sonho possuem “fronteiras” espaço-temporais que se movimentam tal como areia no deserto, sempre a se realocar, potencializando assim a capacidade dessas experiências de nos tirarem do “lugar comum”. Essa “pulsão migratória”5 , revelada por uma busca incessante de um deslocamento da perspectiva, se realiza até mesmo através do ato de fotografar sem ver. Uma vez que isso o liberta da tentativa de enquadrar as coisas, de lhes escolher o melhor ângulo, ser seduzido pela imagem através da visão ou mesmo prescindir dessa para produzi-las. Assim, essa “liberdade sequestrada” paradoxalmente lhe permite o acesso a outra liberdade, uma livre do propósito da ação e/ou do controle das coisas, dessa maneira não há erros ou acertos, a obra se faz em seu processo. Nesse sentido, percebo nas palavras de Dewey (2010, p.84), a dimensão da experiência em Histórias do não ver:
A experiência, na medida em que é experiência, consiste na acentuação da vitalidade. Em vez de significar um encerrar-se em sentimentos e sensações privados, significa uma troca ativa e alerta com o mundo; em seu auge, significa uma interpenetração completa entre o eu e o mundo dos objetos e acontecimentos. Em vez de significar a rendição aos caprichos e à desordem, proporciona nossa única demonstração de uma estabilidade que não equivale à estagnação, mas é rítmica e evolutiva. Por ser a realização de um organismo em suas lutas e conquistas em um mundo de coisas, a experiência é a arte em estado germinal. Mesmo em suas formas rudimentares, contém a promessa da percepção prazerosa que é a experiência estética.
Assim ao “leitor/espectador” a trama é compartilhada em toda sua vertiginosidade, imagens e pensamentos surgem em uma cadência caótica. Nas páginas do livro não se encontra rastro de uma sequência obrigatória imputada pela numeração, a narrativa se desenvolve como em um diário (narrado em um tempo psicológico e não o contado pelos ponteiros de um relógio), as imagens ocupam as páginas sem um padrão de tamanho, elas simplesmente acontecem ou desacontecem, como na passagem do sequestro realizado pela sequestradora Patrícia Lacerda em que as palavras e imagens cedem espaço para a profundidade e o silêncio de páginas inundadas pela luminosidade do papel ou pela obscuridade de suas pretas páginas. Vestígios imagéticos aparentemente “diacrônicos” dividem o mesmo espaço produzindo novas perspectivas espaços-temporais. Já em alguns trechos, são as palavras que produzem essa viagem no tempo através da memória ou do delírio. As imagens e palavras surgem assim como símbolos, partes de um imenso labirinto, que nos rodeia, nos desorienta, nos envolve e fazem com que sejamos transportados para outros lugares e experimentemos novas formas de sentir as coisas e ir de encontro ao desconhecido.
Sentia as paredes de pedra e os becos de pouca luz se desmaterializarem em farelos de partituras. Era como se a cidade fosse se delineando na extensão de seus ruídos. O labirinto de meus olhos de ontem estava ali posto para meus ouvidos de hoje. O que ontem me fazia estar perdido – a disposição espacial de suas ruas e de seus becos – transfigurava-se no andamento descompassado de uma partitura enigmática, em cada nota, cada ruído, por mais prosaico e mundano que fosse, poderia ser relacionado livremente com flashes da memória visual de meu dia anterior. E, por mais que eu voltasse ao ponto donde partira, o muro de ontem seria o choro da criança de hoje; o poste de ontem, o bêbado xingando de hoje; aquela fonte luminosa de ontem, o barulho de água escorrendo de hoje. O labirinto, pensei, estava em minha memória e não nesta cidade, que se estende no espaço como partitura de uma música que jamais se repete. (GUIMARÃES, 2001, .s.p.: sétimo sequestro).
Os mesmos caminhos percorridos no dia anterior e, no entanto, tudo se apresenta diferente. Assim transcorre o sequestro executado por Luiz Henrique Horta, em Barcelona. A mudança do sentido orientador da percepção a reverberar inevitavelmente em uma mudança de interpretação do mundo a sua volta. A heterogeneidade, a pluralidade da experiência vivida e da realidade que o abarca transpostas em seus passos cegos. O que antes, visualmente, era um labirinto em que se perdera, era então revelado “na extensão de seus ruídos” (GUIMARÃES, 2001, s.p.: sétimo sequestro). “A dissonância e a livre associação de sons iam mapeando um caminho que cada vez mais se abria cada vez mais se horizontalizava”. (GUIMARÃES, 2001, s.p.: sétimo sequestro). O exercício da escuta acarreta assim o desarrolho do pensamento: o indivíduo e sua relação com a cidade. A transmutação da cidade em um organismo sonoro onde as referências se modificavam a cada instante, e isso, somado aos flashes mnemônicos do dia anterior, produzem novas impressões. Por hora, então, recorro às palavras de Basbaum (2008, p.01):
Se os sentidos podem constituir o mundo de diversas formas, cheias de intenções, podemos dizer que eles nos dão um mundo que nunca é neutro, ou melhor: um mundo já banhado em significação. Diremos então que os sentidos são o berço do sentido. Isso faz de todo nosso campo percebido a instalação de um modo de significar e ordenar o vivido, segundo os modos dominantes de perceber e significar pessoas, coisas, espaço e tempo. É aí, falando de modo sintético, que intervém a arte: multiplicando os modos da experiência sensível e da significação do mundo, por meio de práticas estéticas ao mesmo tempo sensíveis e conceituais, a arte legitima um habitar essencialmente plural, aberto às singularidades, implodindo assim as possibilidades de uma verdade hegemônica num mundo onde as coisas e os outros são muito melhor compreendidos na medida mesma em que são melhor percebidos.
Os registros na trama são, dessa maneira, como as bolhas a deixar rastros da passagem do corpo na água. São rastros-palavras-imagens-delírio-memória. A noturnidade das imagens, o seu “embaçamento”, a predominante ausência de suas cores, o movimento da câmera a deixar vultos, que “desenquadrada”, deixa de captar um “objeto” específico para revelar possibilidades. Tudo é “rastro e movimento” (GUIMARÃES, 2001, s.p.: terceiro sequestro). Parece ser mesmo um sonho em que o leitor invade a experiência do artista através dos fragmentos que lhe são oferecidos. A cegueira e a incógnita aproximam então o artista/vivente e o leitor/espectador, uma vez que agem como combustível para divagações, para o despertar da imaginação. Não há intenção de buscar certezas porque essas restringem o pensamento, limitam a forma. Pelo contrário, o próprio artista (2013) revela procura por um certo “desnudamento da razão”. Nesse sentido, o silêncio tem grande importância em seu(s) trabalho(s), compõe e preenche os vazios da imagem, abafa as palavras, mas nos inunda em sua imensidão de pensamentos suspensos no ar, na água, na bolha...
Naquele lugar não havia onde. Eu estava em algum lugar entre o lugar nenhum e o por toda parte. Eu estava presente e as coisas estavam em gerúndio. Tudo estava estando. Eu apenas estava. Tudo indo e vindo e passando. Aquilo não era um lugar, era o rastro de um lugar. (GUIMARÃES, 2001, s.p: terceiro sequestro).
A incrível sensação do “presente em gerúndio” despertada pelo roçar dos véus, o cheiro das flores, os ruídos. O corpo sentindo as coisas e as coisas perdendo o sentido, se movimentando, o desnorteando, perdendo-se em um labirinto. A sensação de não lugar é vivificada pela aleatoriedade dos rastros. Tudo colaborando para a instauração da incógnita, para sobrevivência do silêncio. Assim se passa o sequestro, orquestrado pela sequestradora Patrícia Lacerda. Impregna o espaço, o espírito de Guimarães e do ‘leitor/espectador’ de ausências. Após uma sucessão de imagens, a branquidão de um véu inunda a página vizinha com sua cor e, nas que sucedem, em preto... o silêncio transportado para um vazio em cores diferentes... o respiro, o fechar dos olhos... o intervalo entre uma braçada e outra... entre o respirar e o inspirar... entre uma palavra e outra... entre uma página e outra... entre palavra, imagem, emoção e delírio. Revela em sua narrativa a capacidade que as histórias têm de nos transportar a outros tempos e espaços diferentes, de nos deslocar daquilo que é conhecido. Além de indicar a potência do silêncio, a dimensão do “não dito” em sua obra.
Como no sequestro feito por Eduardo Motta, apenas uma foto, não há relato escrito do acontecido. Só a foto e suas cores vivas. A sombra ocupa a forma central da fotografia, apenas a silhueta do objeto se instila. Matéria e sombra se fundem e recriam um novo objeto não identificável. Enquanto o chão reflete a luz do sol com sua claridade contrastante, lá no fundo a paisagem só se insinua em toda sua corporeidade deitada no horizonte. Será a ausência aqui um indício da duração do momento? Da instauração da incógnita? Ou a afirmação de sermos apenas espectadores de histórias não vistas, mas intensamente vividas? Ou estamos nós “leitores/espectadores” tão “cegos” quanto o artista vivente? Não podemos ver, mas também sentimos? A incompletude na trama nos faz também narradores desses momentos. Nessa perspectiva:
A percepção dos acontecimentos reais sempre estará intimamente relacionada ao imaginário. Nenhum olhar é isento de si ao olhar para fora. Vejo, e ao ver, também me vejo. Vendo-me inserido nisso ou naquilo, aquilo inserido em mim, a coisa se forma, um algo mais, o inesperado. Imagino, ajo na direção do que imagino, depois salto para o lado de lá, para o lugar do desconhecido, que é muitas vezes mais forte e intenso do que o que antes eu imaginava. (GUIMARÃES, 2007, p.01).
Histórias do não ver é uma experiência “compartilhada”, um convite ao mergulho em um caótico mundo de pensamentos e sensações. “Re-sonhar um sonho recém sonhado” (GUIMARÃES, 2001, s.p: introdução), mergulhar em uma experiência outra e projetar-se sobre ela, como em um sonho. Ler Histórias do não ver é também ser sequestrado por palavras, sentidos, sonhos e lembranças. O narrar dos acontecimentos, a reverberação dos “sentidos”... no final, já não sei se sou eu sequestrada, ou se espio a tudo sem poder fazer nada.