O REAL E O FICCIONAL NA CENA TEATRAL
O teatro acompanha uma lógica cultural desde o final do século XIX de aproximação com a vida. Se na primeira metade do século XX, os encenadores da corrente naturalista e realista negavam o teatro como arte da ilusão, a perfomance art surgiu nessa lógica contemporânea e propôs questionamentos sobre a noção de representação. “Mediante a reinvenção do realismo, o Living Theatre materializava o projeto artaudiano: nesse novo realismo, a realidade já não é objeto de representação, mas sim, espaço de vivência”1 (SÁNCHEZ, 2007, p.114). O Living Theatre, criado por Julian Beck e Judith Malina, surge em Nova York depois da Segunda Guerra Mundial. Motivados a modificar a sociedade a partir de uma lógica de participação efetiva do público no evento teatral, objetivavam um envolvimento visceral dos sujeitos, pautados num caráter ritualístico.
Destarte, o intuito do grupo não era somente um engajamento imaginativo e intelectual para refletir e comentar a vida, mas, também por meio de provocações sensoriais, buscavam uma comunhão entre platéia e publico, a fim de provocar uma efetiva participação da realidade. Para tal, o Living buscava colocar o público em situações similares ao cotidiano, e assim funcionar como metáforas reconhecíveis da vida.
Josete Ferál (2011) aponta uma clara distinção da presença do real das performances dos anos sessenta em relação ao teatro contemporâneo das últimas décadas. Para a autora, a performance dos anos 1960 preocupava-se com a questão política de retirada da arte de museus e ambientes relacionados ao consumo, investindo no aspecto processual. Buscava-se romper com a representação e prevalecer à ordem da presença. Os artistas anulavam a noção da personagem, para “performar” ações reais em tempos e lugares reais. Já no teatro das últimas décadas, essa ideia da presença já foi adotada, e deste modo, o real visa provocar o espectador e instaurar uma nova relação com o espetáculo:
Então, o fato de colocar hoje o real em cena surge para provocar o espectador, suscitá-lo a ver o espetáculo de outro jeito, a reagir de outra forma. Para resumir, diria que se a performance estava centrada no performer, o teatro hoje está voltado para o espectador. Em descobrir como acordar um espectador que está dormindo toda hora. Não é apenas o intuito de fazê-lo reagir só pelo prazer, mas fazê-lo reagir de forma inteligente, não só pela provocação. Claro que ainda existem espetáculos que trabalham somente com essa vontade de provocação. Vi em Nova York o Força Bruta [Fuerza Bruta], que é um espetáculo corporal meio Broadway, ele passa pelo corporal o tempo todo, pelo sensorial, mas não é contextualizado, enquadrado, não é interessante. Já em outros casos, existe uma contextualização, uma simbolização do que está colocado em cena. Porque se o real é mostrado de qualquer jeito, ele deixa de ser interessante. (FERÁL, 2011, p.182).
Por muito tempo o teatro foi considerado uma arte da ilusão. Inúmeros mecanismos eram utilizados para evidenciar esse caráter ilusório na tentativa de se passar por realidade. Posteriormente, com o drama burguês, o teatro passou a ser reconhecido como ficção. Deste modo, o teatro confirma suas características ficcionais distanciando-se do caráter ilusionista. Contudo, fatores como a presença dos atores, tempo e lugar cênico fazem com que a realidade esteja presente nos momentos construídos de ficção. Nessa perspectiva, Anne Uberfeld destaca:
O que figura no lugar cênico é um real concreto, objetos e pessoas cuja existência concreta ninguém põe em dúvida. (...) [Porém] tudo o que ocorre em cena (por pouco delimitado e fechado que seja o lugar cênico) tem o toque de irrealidade. A revolução contemporânea do lugar cênico (...) não fere essa distinção fundamental: ainda que o ator estivesse sentado no colo do espectador, uma corrente de cem mil volts promoveria uma radical segregação entre os dois (UBERSFELD, 2005, p.21-22).
Diferentemente do cinema, sabemos que no teatro podemos interferir diretamente na cena, visto que há um espaço real compartilhado entre atores e espectadores. O teórico alemão Han Thies-Lehmann afirma que “teatro significa tempo de vida em comum que atores e espectadores passam juntos no ar que respiram, juntos daquele espaço em que a peça teatral e os espectadores se encontram frente a frente”. (LEHMANN, 2007, p.18). Ciente do caráter ficcional, a tendência do teatro contemporâneo utiliza a zona fronteiriça entre realidade e ficção, para gerar jogo e por vezes deixar o espectador num estado de indecisão se o que ocorre é ficção ou realidade. O sujeito do teatro contemporâneo, por sua vez, atua como coautor e partícipe da cena. “O essencial não é a afirmação do real em si [...], mas sim a incerteza, por meio da indecibilidade, quanto a saber se o que está em jogo é realidade ou ficção. É dessa ambigüidade que emergem o efeito teatral e o efeito sobre a consciência”. (LEHMANN, 2007, p.165). Na cena contemporânea, não é possível mais distinguir, como no drama burguês, se o espectador é sujeito ou objeto da cena. Se no drama burguês a cena operava no espectador, visto que o conduzia a um efeito esperado pautado num eixo dramático linear e focado no caráter emocional; na cena contemporânea o espectador é sujeito e objeto ao mesmo tempo. O ato de recepção na contemporaneidade mobiliza o espectador a desorganizar uma percepção de lógica racional. O espectador é posto em jogo e cabe a ele operar a partir das proposições. A complexidade do jogo se estabelece pela própria radicalidade de autonomia que é proposta. A apropriação de produção de subjetividades é potencializada nos meandros dos processos internos do espectador. Ao assistir, também está em jogo e suas estratégias de leitura da cena são construídas por meio de um ato autoral intransferível e pessoal.
CICLO BIODRAMA
Muitos trabalhos artísticos utilizam a dimensão biográfica e ficcional para questionar a noção da representação. No campo do teatro, Vivi Tellas2 criou em 2002 o Ciclo Biodrama. Sobre la vida de las personas.3 Neste projeto, foram convidados alguns diretores para levar à cena materiais biográficos de pessoas consideradas “comuns” ainda vivas de nacionalidade argentina.
Vivi Tellas destaca que a concepção do Ciclo Biodrama foi impulsionada pelo período pós-ditadura e as precárias condições da população argentina desencadeada pela crise econômica de 2001:
Tem a ver [o ciclo biodrama] com a falta de valor que tem a vida das pessoas aqui na Argentina. Depois da ditadura, onde muita gente morreu, as pessoas não se importaram quem eram, o que faziam, sua história de vida, ainda que isso é a única coisa que tivessem: quem de fato eram. O mais importante é somente o dinheiro. Ademais, me fascina a vida das pessoas. É como uma falta de norma que existe aqui, o modo que as pessoas se tratam, a humilhação, as más condições de trabalho e sanitárias, a educação. As condições de vida. Tudo mostra que a vida não é muito importante para as pessoas.4 (TELLAS, 2007, p.02).
A Lei do Ponto Final,5 instituída no Processo de Reorganização Nacional, ampliou a impotência gerada pela impunidade judicial e contribuiu para uma amnésia sociocultural. “O ‘trauma’, sequela da ditadura, não é somente uma ferida mnêmica pessoal, é uma ferida social no presente. Nestas condições a arte que persiste em não esquecer, além de denunciar, sugere formas de restauração simbólica” (CABALLERO, 2011, p.104). Deste modo, o Ciclo Biodrama, alicerçado no trabalho de materiais biográficos de cidadãos argentinos, faz com que o ato de relembrar se transforme em ação política. O plano de trabalho deste ciclo questiona o valor da vida, experiências e vivências de diversas pessoas. Ademais, busca investigar como os recortes de vida levados à cena constituem a história argentina:
Em um mundo descartável, que valor tem nossas vidas, nossas experiências, nosso tempo? O Biodrama se propõe a refletir sobre esta questão. Busca investigar como os feitos da vida de cada pessoa – feitos individuais, singulares, privados – constituem a história. É possível um teatro documental? Testemunhal? Tudo que se apresenta na trama se transforma inevitavelmente em ficção? Ficção e verdade se propõem em tensão nesta experiência6 (TELLAS apud TRASTOY, 2008).
A proposta do Biodrama confronta o campo do teatro e da vida por meio da ficção e da realidade. No desenvolvimento desse projeto, as esferas supracitadas foram ponderadas seguindo a concepção de cada diretor. Isso posto, podemos pensar nas seguintes problemáticas: os materiais biográficos levados à cena se transformam invariavelmente em ficção? Será possível dissociar e identificar momentos de ficção e realidade?
Nessa perspectiva, Oscar Cornago analisa o efeito de “atuação” e “não atuação” sobre o espectador. O mecanismo teatral percebido pelo espectador através de uma bifurcação entre ficção e realidade pode ser “[...] problemática, já que uma representação que não se apresente como tal, uma não atuação, pode ser recebida pelo público como atuação, ou vice-versa”7 (CORNAGO, 2005, p.11). Na montagem de Mi mamá y mi tia, Vivi Tellas apresenta uma proposta nomeada pela mesma como “teatro de família”. O espetáculo encenado pela mãe e tia da diretora sugere um caráter familiar, acentuado pela inexistência de bilheteria. Para Cornago o desenrolar do espetáculo quase como um ato privado num espaço intimista, evidente pelo compartilhamento de narrativas e vivências familiares, se posiciona no limiar entre teatro e apresentação testemunhal. Contudo, a presença de um roteiro que visa ser repetido a cada apresentação, denota uma ideia de representação. No final do espetáculo, o público é convidado a encerrar essa experiência compartilhando um jantar preparado pela mãe e tia da diretora Vivi Tellas. Nessa perspectiva, o efeito de “atuação” ou “não atuação” confronta o espectador e os limiares da ficção e da realidade não são passíveis de delimitação.
O diretor suíço Stefan Kaegi, em ¡Sentate! mostra a relação de algumas pessoas com seus animais de estimação, dentre eles: catorze coelhos, três tartarugas e um cachorro. Nesse caso, a presença dos animais em cena coloca a noção de representação em risco. “Um animal na cena supõe uma espécie de escândalo semiótico que questiona o funcionamento da re-presentação desde sua não consciência teatral, desde sua inegável presença e carência de distância sobre si mesmo”8 (CORNAGO, 2005, p.17). Nesta montagem, a presença dos animais configura uma tensão, devido ao caráter imprevisível de uma realidade “não atuada”.
Durante o Ciclo Biodrama, foram abordadas histórias de pessoas que nasceram no mesmo dia e ano (Los 8 de Julio, Beatriz Catani e Mariano Pensotti), relatos de uma imigrante espanhola (Temperley, Luciano Suardi), narrativas referentes à infância (El niño en cuestión, Ciro Zorzoli), memórias de família (Nunca estubiste tan adorable, Javier Daulte), entre outros. Destarte, em escalas diferentes, as montagens buscaram confrontar as esferas da previsibilidade e acaso, teatro e vida e, portanto, criar um jogo de tensão entre ficção e realidade.