Ao olharmos um retrato pintado, somos remetidos à presença da pessoa retratada, e ao mesmo tempo à sua ausência, já que ela não se encontra realmente na tela; somente sua imagem (Fig. 01). Jean-Luc Nancy, em seu livro Le Regard du Portrait (NANCY, 2000), afirma que retratar é “tornar presente. Retratar é tirar a presença para fora – seja ela a presença de uma ausência”1 (NANCY, 2000, p. 51).

Maurice Blanchot, em seu texto As duas versões do imaginário (BLANCHOT, 1987, p. 255-265), analisa essa dualidade da imagem que lhe confere o poder de se desdobrar em duas versões. A primeira seria aquela que nos remete à presença do objeto, que parece trazê-lo de volta através de sua imagem. Já a segunda versão seria aquela que nos traz e nos afirma a ausência deste objeto: “A imagem pode, certamente, ajudar-nos a recuperar idealmente a coisa [...] mas corre também o constante risco de nos devolver não mais a coisa ausente, mas a ausência como presença[...]” (BLANCHOT, 1987, p. 264).


Estas duas versões, no entanto, são como faces da mesma moeda: a imagem as apresenta simultaneamente. Há uma oscilação permanente entre uma versão e outra, nos apontando assim para a ambiguidade da imagem, que não nos permite uma escolha entre uma coisa ou outra, e sim, é sempre uma e outra, apostando na coexistência de opostos, ou seja, não se decide de uma vez por todas. Nesse sentido é mais fácil entender porque a imagem de um retrato nos remete ao mesmo tempo a uma presença e a uma ausência: ao mesmo tempo em que parece nos aproximar de seu modelo, nos lembra o quão distante ele está daquela imagem pintada na tela.

Na mesma perspectiva, Georges Didi-Huberman também trabalha a ambiguidade inerente à imagem ao abordar o ato de ver, que a princípio parece nos dar aquilo que vemos: segundo o autor, “ao ver alguma coisa temos a impressão de ganhar alguma coisa”, mas na verdade “ver é sentir que algo inelutavelmente nos escapa, isto é: [...] ver é perder” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p.34).

Um bom exemplo deste movimento do ato de ver é quando temos diante de nós um retrato de uma pessoa (conhecida) que já morreu. Primeiramente, temos a sensação de tê-la de volta, para logo em seguida percebermos que ela nos escapa para uma ausência incontornável.

A morte é a maior das ausências. Como retratista, sei que é comum haver encomendas de retratos de pessoas que já faleceram. Já que não se pode ter o ente querido de volta, é a sua imagem, o seu retrato que vem suprir um pouco essa falta.

Permanecer, nas palavras de Blanchot, não é acessível àquele que morre, e fixar sua imagem em um retrato é uma tentativa dessa permanência. Em imagem, pode-se permanecer. Para o autor, a imagem seria “[...] a coisa presente em sua ausência, apreensível porque inapreensível, aparecendo na qualidade de desaparecida, o retorno do que não volta [...]” (BLANCHOT, 1987, p. 257). O retrato de alguém que já morreu, nesse sentido, traz, de alguma forma, essa pessoa de volta, mas ele também traz, a sua ausência, o seu distanciamento, o retorno do que não volta como presença no tempo e no espaço.

A relação do retrato com a morte é algo que vem desde a antiguidade, como nos mostra Régis Debray ao afirmar que o nascimento da arte está ligado com a morte, já que nossos primeiros objetos de arte se relacionam com ela: sepulturas, sarcófagos, múmias... As religiões do passado exigiam que as pessoas sobrevivessem em imagem. Máscaras mortuárias, duplos (manequins) dos mortos eram feitos para receberem as homenagens póstumas, e acreditava-se realmente que a alma do morto ocupava esses manequins, a cópia tendo mais valor do que o original. A imagem era tida como um substituto vivo do morto, um prolongamento de sua carne, ainda que sublimado. Esses duplos do morto podem ser considerados as primeiras formas de retrato, e dessa forma o retrato também surge com a morte, com a necessidade de fazer permanecer.

Segundo Didi-Huberman, a atividade de produzir imagens tem muito a ver com um escape pretendido pela pessoa que perde alguém. É a forma de afastar o morto (em imagem) do lugar real em que se encontra (uma tumba), e mantê-lo “vivo”, e é também uma forma de deixar de encarar a realidade angustiante de se estar diante da morte e constatar ser ela nosso destino futuro. É como se a vida perdida do morto se transferisse para a imagem, “onde o corpo será sonhado como permanecendo belo e bem feito, cheio de substância e cheio de vida” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 40), ao passo que seu rosto real continua a esvaziar-se fisicamente.

É interessante trazer ao texto a lenda de Dibutades , considerada como a origem da pintura, contada por Plínio o Velho em seu 35º livro das Histórias Naturais: Uma moça de nome Dibutades sabia que seu prometido iria partir em breve para uma longa viagem. No último encontro dos dois, ela aproveita a sombra projetada do rosto do rapaz na parede para marcar com um carvão sua silhueta, pois, já sabendo de sua ausência futura, ela queria conservar algum traço de sua presença atual. Sob esse olhar, o retrato nasce da necessidade de construir uma imagem de alguém que irá se ausentar – por um afastamento ou pela morte. Esta é uma lenda sobre o nascimento da pintura, que se dá através de um retrato, já nos remetendo para a questão da presença e da ausência. (Fig. 02).


Ao pretender fixar seu modelo em vida, o retrato nos aponta também para a morte deste, que lhe é inerente: mesmo se o modelo ainda é vivo, um dia ele vai morrer. Logo, a morte já está inserida no retrato, se não como um acontecimento passado, como um acontecimento futuro, ainda por vir. Porém, Nancy observa que o retrato está ligado à morte em um sentido mais geral, e não somente à morte específica do retratado: ele não apresenta o morto, e sim, a morte. Desta forma, se o retrato carrega essa relação intrínseca com a morte, o retratado está então imortalizado na morte.

Retratar alguém com vinte anos, por exemplo, nos leva a pensar que aquela pessoa está imortalizada em seus vinte anos, estará para sempre viva com essa idade, e nesse sentido ela “escapa” da morte. Ao mesmo tempo, podemos pensar que, ao ser retratada com vinte anos, é como se ela morresse nesses vinte anos. No retrato ela estará sempre fixada naquele momento, não passará daquela idade, e isso é uma espécie de morte. Temos contato assim com uma ambiguidade: o retrato nos remete à vida e à morte simultaneamente, ele mata alguém que está vivo e revive alguém que está morto, tudo isso devido à oscilação permanente entre presença e ausência que a imagem/retrato carrega, que ora se desdobra para a frente (para a morte), ora se desdobra para trás (para a vida).

Essa vida que se pretende dar a um retrato é ilusória, já que, por fim, o retrato vai nos remeter mesmo à ausência. No entanto, ainda que reafirme essa ausência, o retrato vai de alguma forma confortar os que aqui estão. Nas palavras de Blanchot, a imagem, “permite-nos crer, no âmago de um sonho feliz que a arte autoriza com demasiada frequência, que à margem do real e imediatamente atrás dele, encontramos, como uma pura felicidade e uma soberba satisfação, a eternidade transparente do irreal” (BLANCHOT, 1987, p. 256).

A imagem apazigua. É nesta eternidade transparente do irreal que se apega quem está buscando, através de uma imagem, o que se perdeu. Ter um retrato de alguém que já morreu, servir-se de sua imagem, ou de imagens da vida após a morte, são partes do processo de luto, são formas de atenuar a crua dor de se deparar com a morte, pois o homem “prefere esvaziar os túmulos de suas carnes putrescentes, desesperadamente informes, para enchê-los de imagens corporais sublimes, depuradas, feitas para confortar [...]” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 48).

Geralmente coloca-se esse retrato em um lugar de destaque na casa. De certa forma ele pode até mesmo contribuir para que os familiares passem a lidar melhor com a perda. Ao verem o retrato com frequência, a presença/ausência que ele carrega é mais assimilada, mais digerida, a perda passa a ser encarada com mais naturalidade, pois ela está ali, materializada no quadro, diariamente, e torna-se algo normal do cotidiano. De acordo com Debray, “o trabalho do luto passa, assim, pela confecção de uma imagem do outro valendo como liberação” (DEBRAY, 1994, p.30). Através de imagens, tenta-se superar a perda.

O retrato “localiza” o morto. Devolve a ele um lugar no mundo que ele não frequenta mais. Ali falta alguém que antes preenchia o espaço com sua presença real, com seu corpo físico. Agora não há mais ninguém.

A morte suspende a relação com o lugar. Um morto, um cadáver que vemos diante de nós não está no seu lugar. Na verdade, ele está aqui na nossa frente, mas ele está também alhures, e não sabemos onde. O morto já não é desse mundo, no entanto resta aqui ainda um despojo como que um elo de ligação com a possibilidade de um outro mundo, um outro lugar inacessível e desconhecido. Depois que é enterrado, essa sua relação com o lugar continua incerta para nós que aqui ficamos. Sabemos localizar sua sepultura, no entanto aquele corpo inerte não é mais ele, não é o vivo em si, aquele de quem sentimos a falta. E, em breve, nem mesmo aquele corpo estará ali. “O lugar que ocupa é preparado por ele, deteriora-se com ele e, nessa dissolução, ataca, mesmo para nós que ficamos, a possibilidade de permanência” (BLANCHOT,1987, p. 261). Continuamos sem saber onde ele está, a morte rompe a localização.

Já que não podemos localizar aquele que partiu para sempre, já que essa nossa necessidade não será suprida realmente, procuramos localizar sua imagem. Encontrar um lugar para a imagem daquele que não está mais entre nós, para um retrato seu, é dar-lhe de novo essa relação humana com o lugar. É um meio de fazê-lo permanecer, de devolver-lhe um espaço em meio aos vivos. É “como se a imagem estivesse aí para preencher uma carência, aliviar um desgosto” (DEBRAY,1994, p. 38).

Quando uma pessoa encomenda seu próprio retrato, podemos talvez pensar que, embora inconscientemente, ela esteja buscando essa permanência. Em imagem, ela irá permanecer para além da morte. Não será esquecida (o esquecimento é uma forma de morte), de alguma maneira estará aqui, marcando sua presença (ainda que a presença de sua ausência). A imagem, nossa própria imagem, nos dá segurança, pois ela resiste - e nós não resistimos. “[...] Somente aquele que passa, e sabe disso, quer permanecer” (DEBRAY, 1994, p. 28). É por saber da fugacidade da vida que queremos salvaguardar nossa imagem. É claro que não há certeza de que uma pintura, uma escultura, vá durar para sempre. Mas é quase certo que elas vão sobreviver a nós, lembrando e prolongando nossa existência, ainda que em imagem.

Porém, ao desejar essa sobrevivência através de uma imagem, seja ela uma fotografia ou uma pintura, a pessoa está ao mesmo tempo se deparando com a morte, a morte daquele momento, como nos mostra Roland Barthes, em seu livro A Câmara Clara (BARTHES, 1984), ao falar sobre a fotografia: “No fundo, o que encaro na foto que tiram de mim [...] é a Morte” (BARTHES, 1984, p. 29). Assim é também com um retrato pintado, ele estabelece uma relação com a vida e com a morte simultaneamente.

Para fazer retratos de pessoas que já morreram, baseio-me em fotografias que os familiares guardam do morto. Barthes chama a fotografia de “[...] imagem que produz a Morte ao querer conservar a vida” (BARTHES, 1984, p. 138). Seu objetivo é fixar um momento, uma pessoa. Mas na verdade a fotografia nos diz que aquele momento não existe mais, aquela pessoa ou já morreu, ou ainda vai morrer. Mesmo em uma foto cujo modelo ainda se encontre vivo, radiante, saudável, estamos vendo “[...] um futuro anterior cuja aposta é a morte. Ao me dar o passado absoluto da pose [...], a fotografia me diz a morte no futuro” (BARTHES, 1984, p. 142).

Barthes também está lidando com a ambiguidade da imagem revelada pela fotografia, ao dizer que ela leva a crer que o objeto está vivo (pois ele foi real, a fotografia atesta que ele um dia existiu), ao mesmo tempo em que sugere que ele já está morto (pois já é passado, aquele momento não existe mais), ou seja, ela nos remete simultaneamente à vida e à morte, à presença e à ausência do objeto fotografado:

Quando o retrato é pintado a partir de uma foto, essas questões de presença e ausência são duplicadas, as questões que concernem à fotografia se somam às do retrato. Também ele carrega esse jogo entre o tempo da pose, que existiu, e o tempo atual, que implica que aquela pessoa retratada pode não mais estar no mundo.

A morte exige uma mediação para tornar-se mais aceitável, o além exige a mediação de um aquém: “A imagem – primeiramente esculpida; em seguida pintada – é, na origem e por função, mediadora entre os vivos e os mortos [...]” (DEBRAY, 1994, p. 33). Essa mediação é feita através das imagens, e o retrato, nesse sentido, é um grande mediador.

Logo, o trabalho do pintor, tomando emprestadas as palavras de Jean-Luc Nancy, deve “[...] tornar intensa a presença de uma ausência enquanto ausência”3 (NANCY, 2003, p. 84). Quando algo desaparece, a ausência deste algo torna-se presente de forma tão intensa, tão sentida, que é como se fosse concreta, como se ela aparecesse: uma “[...] ausência que se vê porque ofuscante” (BLANCHOT, 1987, p. 24).

O retrato daquele que não está mais entre os vivos é feito a partir de sua falta, vem ficar no lugar dessa falta, como uma aparição, como se estivesse concretizando essa ausência, transpondo-a para a tela. Ao morrer, a ausência do morto passa a existir para sempre, ela “aparece”.

O mito de Orfeu pode nos ajudar na compreensão das questões abordadas neste texto por também estabelecer relações com a presença, ausência, morte e desaparecimento. Após a morte de Eurídice, Orfeu desce ao mundo dos mortos para buscá-la, e consegue a permissão de trazê-la de novo à vida com a condição de não olhá-la durante a travessia entre os dois mundos. Já quase no final do trajeto ele não resiste e volta o olhar para ela, que no mesmo instante desaparece. Olhar para Eurídice era uma tentativa de apreendê-la, e ela não era para ser apreendida. Sua presença dependia de não ser vista, dependia de sua “invisibilidade” que é também uma forma de ausência. Ela está morta. Agora Orfeu só dispõe dela em imagem, aquela imagem onírica, que não pode ser fixada. E, como nos sonhos em que acordamos no momento em que vamos realizar algo que queremos, Orfeu a perde quando a olha, quando, ao olhá-la, deseja tê-la de novo, da forma como era antes, e ela escapa.

Nesse sentido, a leitura de Blanchot do mito de Orfeu é pertinente para se pensar na questão da imagem e da morte, na medida em que, para o autor, Orfeu não quer Eurídice em sua verdade diurna e em seu acordo cotidiano, ele a quer:

[...] em sua obscuridade noturna, em seu distanciamento, [...] quer vê-la, não quando ela está visível mas quando está invisível, e não como a intimidade de uma vida familiar mas como a estranheza do que exclui toda a intimidade, não para fazê-la viver mas ter viva nela a plenitude de sua morte. (BLANCHOT, 1987, p. 172).

O mundo julga Orfeu por sua impaciência, mas em sua leitura sobre o mito, Blanchot mostra que, na verdade, Orfeu quer Eurídice em imagem, inalcançável, para continuar a cantar por ela.

Associo esse desejo de Orfeu por Eurídice, ao mesmo desejo de quem quer o retrato daquele que não está mais presente. Como se sabe que não é mais possível ter a pessoa real, na vida cotidiana, procura-se por ela em sua presença velada, na presença de sua ausência, em imagem. O que se quer na verdade é a realidade (a presença real da pessoa), mas o que se pode ter é só o véu (o retrato, a imagem – a ausência).

BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

DEBRAY, Régis. Vida e morte da imagem. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1994.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998a.

DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 2008.

NANCY, Jean-Luc. Le Regard du portrait. Paris: Galilée, 2000.

NANCY, Jean-Luc. Noli me Tangere : Essai sur la levée du coprs. Paris: Bayard, 2003

1  José Maria Ribeiro, Retrato de Kiki, 2005, acrílica sobre tela, 60 x 80 cm. (Fonte: Acervo do artista).

2  David Allan, A origem da pintura, 1745. (DUBOIS, 2008, p. 119).