Se, desde o início da Era Moderna, o homem começa a se desvincular da identidade social e da presença (monitoramento restritivo) de Deus, atualmente, vamos encontrar um novo ser, ciente da complexidade e profundidade de sua individualidade – um sujeito passível de interesse e capacidade para se autoanalisar e distinguir-se dos demais. Este indivíduo contemporâneo não é apenas capaz de diferenciar-se dos demais, como também está inteirado de que sua identidade pessoal está sujeita a constantes transformações (voluntárias e/ou involuntárias). O conhecimento desta flexibilidade identitária tanto facilita a manipulação da própria imagem, quanto viabiliza o tráfego do sujeito por variados tipos de grupos sociais, através do uso de máscaras condizentes com os padrões vigentes em cada um desses grupos.
Talvez, como uma maneira de afirmar (e de refletir sobre) a mobilidade identitá¬ria do sujeito, atualmente, há artistas que se dedicam especialmente à produção de ima¬gens ‘autorreflexivas’, em que o corpo do autor se mescla com o fundo (contexto sociocultural). Como não seria possível aqui, enumerar tantos autores, foram escolhidos dois nomes para serem comentados neste ensaio. Coincidentemente ou não, ambos saíram de suas pátrias para viverem, como estrangeiros, em outros paí¬ses.
Antes de apresentar os artistas, seria interessante recorrermos ao pensamento de Bourriaud (2011), que detecta o surgimento de um novo indivíduo contemporâneo, denominado por ele de “radicante”. Este novo sujeito, diferentemente do indivíduo modernista que buscava sua origem (raiz única e fixa), se mostra disposto a adaptar-se a novos territórios, onde vai lançando raízes, na medida em que se fizer necessário e conveniente. O radicante, assim, se desenvolve de acordo com o solo que o acolhe. O autor (BOURRIAUD, 2011, p.50) esclarece:
O adjetivo radicante qualifica o sujeito contemporâneo dividido entre a necessidade de um vínculo com seu ambiente e as forças do desenraizamento, entre a globalização e a singularidade, entre a identidade e o aprendizado do Outro. Ele define o sujeito como objeto de negociações.
Para Bourriaud (2011), a arte contemporânea disponibiliza novos modelos a esse novo sujeito em constante trânsito adaptativo, visto que ela constitui um vasto laboratório de identidades. A partir desse conceito, se torna mais claro o entendimento das práticas de artistas que, de alguma forma, discutem a dinâmica identitária.
Uma artista que trabalha, de forma inusitada e arriscada, sobre o conceito desse novo sujeito radicante é a coreana Nikki S. Lee (1970), residente em Nova York desde 1994. De acordo com o texto publicado no site do MOCP (anônimo e s/ data), a partir da observação de subculturas específicas e de grupos étnicos, Lee adota seu estilo e atitude geral através de roupas, gestos, postura e linguajar, e, dessa forma, em sua nova camuflagem, se aproxima do grupo, apresentando-se como artista e deixando clara a sua proposta; embora nem todos a levem a sério. Costuma passar várias semanas participando de atividades de rotina do grupo, enquanto algum membro dessa comunidade a fotografa junto aos ‘novos amigos’, com uma simples câmera automática. Algumas vezes, para reforçar o grau de semelhança entre ela e os membros do grupo no qual pretende se infiltrar, Lee faz dieta para engordar ou emagrecer, pratica musculação, aprende a praticar skate, tem aulas de dança, se submete ao bronzeamento artificial, etc.
Segundo o mesmo texto, a eficácia dos projetos de Lee está diretamente relacionada à aparência final do registro fotográfico. O uso da estética do ‘instantâneo’ – típica da fotografia vernacular – é, em parte, o que nos convence de que a artista pertence ao grupo de referência, assim como a sua irrepreensível habilidade de lograr a pose correta. Apesar de as fotos serem tomadas por terceiros, Lee mantém o controle da imagem final, na medida em que ela escolhe quando pedir uma foto e em que edita as imagens que são expostas. A impressão da data eletrônica no canto da foto confere especificidade ‘documental’ e autenticidade, ao mesmo tempo em que caracteriza a imagem como espontânea e afetiva, como o trabalho de um amador despretensioso. Entretanto, quando expostas em grande formato e emolduradas, dentro do contexto museológico, as fotos revelam a base conceitual dos projetos de Lee.
A obra de Lee é subdividida em projetos definidos pelos grupos sociais em que a artista se infiltra. Entre eles: The Drag Queen Project (1997), The Lesbian Project (1997), The Hispanic Project (1998), The Exotic Dancers Project (2000), The Skateboarders Project (2000), The Hip Hop Project (2001), e Layers (2007), em que a artista, partindo de retratos dela (desenhos) feitos por artistas de rua mundo afora, sobrepõe as imagens – buscando a multiplicação de representações alheias sobre a sua pessoa (seu rosto, diz ela1). Depois disso, produz o FALSO (segundo ela ) documentário A.K.A. Nikki S. Lee.
Em uma entrevista, Monty DiPietro (2000) pergunta à artista se sua vivência de múltiplas identidades dentro de seus projetos não poderia, ocasionalmente, fazê-la se sentir um pouco esquizofrênica. Aos risos, Lee responde que não – afirma possuir sua própria identidade; no entanto, pontua que, em cada um dos relacionamentos que estabelece em sua vida pessoal, emerge uma faceta diferente de sua personalidade. Ela diz se portar de forma diferente em relação ao seu namorado, seus pais, amigos, etc. Na mesma entrevista, ela diz contar com uma série de filósofos orientais entre as fontes de referência para os seus projetos, e comenta que o trabalho a ajudou a descobrir as diferenças entre os paradigmas de identidade ocidentais e orientais. "Nas culturas ocidentais as pessoas tendem a identificar-se de certa maneira, no que diz respeito à forma como elas pensam", diz Lee, "enquanto no Oriente, penso que as identidades das pessoas são desenvolvidas através de seus relacionamentos com outras pessoas". Para DiPietro (2000), a obra de Lee aponta para a maneira como os relacionamentos e o contexto informam sobre as impressões que recebemos das pessoas.
De acordo com Adrian Parr (2010), as identificações projetivas de Lee com ‘o outro’ exemplificam a ‘identidade como representação’ e a facilidade com que a identidade pode ser mimetizada e apresentada como genuína. O fato de a artista assumir estilos visuais e gesticular como, por exemplo, negros e hispânicos urbanos, revela como a identidade é uma forma restrita de pensar e agir de acordo com normas fixadas que podem ser ‘facilmente’ copiadas.
Marriner (2004) observa que a consciência da construtibilidade e das forças de construção de representações expõem a falácia de identidades essencializadas e a inutilidade da busca das ‘principais causas’ de sustentação do ser. Em vez disso, o nosso constante ‘tornar-se’ é exposto, permitindo-nos desafiar compromissos epistemológicos, sobre os quais julgamentos sobre o outro são feitos, tais como os estereótipos. Parece que estamos moldados por oposições e hierarquias que são formuladas para determinar a compreensão em termos de alteridade e pelo ‘o que’ / ‘quem’ somos, ou não. Nossa compreensão do ‘eu’ está, portanto, relacionada a certos organismos de conhecimento.
Já o fotógrafo Rafael Goldchain, nascido em Santiago do Chile em 1953, e residindo em Toronto, Canadá, desde 1983, é o autor da série de autorretratos intitulada I Am My Family, tendo como referência, retratos de seus ascendentes. Para uma melhor compreensão da obra de Goldchain, é importante que tenhamos conhecimento de que alguns de seus antepassados (judeus poloneses) emigraram para a América do Sul, na década de 1930, enquanto muitos outros morreram na Polônia durante o regime nazista. Perdidos, no turbilhão da guerra e a emigração, se encontravam a maioria dos retratos de sua família.
Tulchinsky (2008) explica que o que motivou Goldchain a investir nesse projeto foi o fato de ele não possuir um álbum de família que pudesse mostrar ao filho. A partir dessa constatação, o artista decide construir o álbum, e, para isso, consultou velhos membros da família e lhes pediu que lhe enviassem todas as fotos antigas que pudessem encontrar. Ele usou esses retratos como referencial e, após fazer uma pesquisa genealógica, assim como um estudo aprofundado das tendências fotográficas do início do século 20, cuidadosamente reuniu roupas, adereços e solicitou a assistência de maquiador especializado em maquiagem cênica. Então, como um ator, ele usou técnicas de autorretrato para "se tornar" cada um de seus parentes perdidos, em retratos formais muito bem executados, de acordo com o estilo característico do período histórico em questão.
Entre os primeiros retratos da série, me chama especialmente a atenção o velho de expressão ambígua (Figura 3), usando barba branca e boné preto. As duas sobrancelhas se portam diferentemente, sendo que a da esquerda é arqueada de forma um tanto diabólica. O conjunto das duas resulta em uma expressão indecifrável e, por sua vez, o olhar do homem exprime um tipo de satisfação, aliada à curiosidade e certa malícia. Vejo nele, inclusive, uma discreta generosidade. A barba anelada, bifurcada e longa, contribui para uma recepção dicotômica do caráter do personagem retratado.
Desconheço o retrato que o artista usou como referência para a construção deste personagem, mas, de qualquer forma, o resultado é de grande complexidade, revelando um ser humano fascinante, de múltiplas nuances de humor. Esta imagem mostra, além do personagem representado, o artista (ator?) Goldchain, com toda sua habilidade para interpretar papéis de forma tão rica, intensa e convincente.
São muitos e diversos os tipos interpretados pelo fotógrafo; e ele não só partiu de retratos referenciais, como, no decorrer do projeto, começou a criar personagens que, segundo Tulchinsky (2008), poderiam ter existido em sua família ou na comunidade onde viviam. O próprio artista conta que os personagens criados livremente por ele resultam da pesquisa sobre a retratística judaica do leste europeu do período pré-2ª guerra.
Entre os trabalhos mais recentes da série, há, por exemplo, o retrato de uma noiva circunspecta e um tanto fantasmagórica (Figura 4), carregando o seu singelo buquê de margaridas. Nesta representação, é possível notar o constrangimento típico de uma camponesa recatada e resignada. Em contraponto, temos um esfuziante tocador de acordeom (Figura 5) que se diverte, alheio à presença da câmera, como se estivesse tocando para alguém posicionado em um balcão ou janela. Estes dois, assim como tantos outros personagens recriados por Goldchain, são dotados de muita personalidade, o que revela o artista como um ator bastante eficaz na interpretação de variados temperamentos.
Para Tulchinsky (2008), do ponto de vista político-sociológico, este projeto poderia ser recebido como uma reflexão profunda sobre o genocídio, a história perdida, a importância (para a psique) de se conhecer as próprias raízes e sobre o lugar vital que a arte e a história asseguram à imaginação humana e ao processo de cicatrização. A autora ainda chama nossa atenção ao fato de que a família Goldchain pertencia a um grupo étnico específico e viveu um momento especial na história, mas sua história tem se repetido em outras comunidades culturais e em outros momentos da nossa história coletiva.
De acordo com Rosa Severino (2009), Octavio Paz (2002) descreve a existência do homem como uma rede de relacionamentos de interseção. Segundo Paz, a identidade do homem estaria vinculada a um contexto social e cultural bastante amplo. Severino (2009) ainda cita Michael Torosian (2002), a fim de esclarecer que Rafael Goldchain se debruçou sobre uma investigação em relação a sua herança e sobre si mesmo, e ao longo do percurso, ele adquiriu, inclusive, um novo senso de pertencimento.
O próprio Goldchain (2011) afirma que, em cada um desses seus retratos, existem pelo menos dois objetos: o antepassado sendo revivido, e ele mesmo, como performer. E explica: “Estes dois sujeitos pairam como fantasmas dentro da foto, forçando o espectador a se deslocar entre eles, nunca sendo capaz de ver ambos ao mesmo tempo”. Ou seja, ele tem ciência da presença do ‘outro’ (um personagem) e de sua própria presença cênica, logo, o objeto de investigação não é o próprio artista (o ator), e sim o personagem – o que parece ser o suficiente para desca¬racterizar as imagens como autorreflexivas (autorretratos).
Considerações finais
Tanto Nikki S. Lee, quanto Rafael Goldchain usam seus próprios corpos para construir representações identitárias. São artistas visuais (leia-se performers) que se aventuram na arte da interpretação de personagens, na medida em que, cada qual a sua maneira e medida, representa ‘o outro’. No caso de Lee, temos os tipos étnicos urbanos, encontrados na sociedade culturalmente estratificada americana; e, em segundo lugar, Goldchain, que incorpora seus ascendentes familiares.
Com que gênero de imagens estamos lidando? São fotografias que, em uma primeira leitura, podem ser recebidas como autorretratos, pelo fato de que os autores usam seus próprios corpos como suporte para as representações, mas que, após uma avaliação mais criteriosa, deixam dúvidas sobre sua categoria. Minha hipótese é de que tais retratos (pois retratos são, mesmo que imaginários) refletem muito mais o universo alheio do que a individualidade de seus autores. Eu parto do princípio de que o autorretrato seria uma imagem representativa da individualidade de seu autor; e que, assim como o retrato genérico, busca revelar particularidades do retratado, valorizando sua singularidade, em detrimento do típico. Bem, a partir desse pressuposto, os trabalhos tratados desses dois artistas não se enquadram na categoria ‘autorretrato’. Daí, a questão: estaria esse tipo de imagem inaugurando uma nova categoria de retrato, ainda por ser nomeada? É possível que sim...
Esta nova categoria, antes de tudo, parece ser uma reflexão sobre a flexibilidade, transitoriedade e fragilidade das noções de identidade, dentro da pós-modernidade – contexto denominado de “sociedade líquida”, por Zygmunt Bauman (2003), em tese muito análogo a do “sujeito radicante” de Bourriaud (já citado, anteriormente). Para Bauman (2003, p. 5), “tudo está agora sempre a ser permanentemente desmontado, mas sem perspectiva de nenhuma permanência”. Daí, ele ter sugerido a metáfora da “liquidez”, a fim de caracterizar a pós-modernidade, a qual, tal como os líquidos, se caracteriza pela incapacidade de manter a forma. “Agora, as coisas todas – empregos, relacionamentos, Know-hows, etc. – tendem a permanecer em fluxo, voláteis, desreguladas, flexíveis”, conclui.
É nesse contexto descrito por Bauman, que surge um novo indivíduo com autonomia para assumir diferentes identidades ao longo da vida – o “sujeito radicante” de Bourriaud (2011), capaz de se deslocar e adaptar-se às mais diversas realidades. Penso que seja sobre este objeto que os trabalhos dos dois fotógrafos tratem; no entanto, não se deve ser ingênuo a ponto de, por exemplo, receber os retratos produzidos por Nikki Lee, como representações da individualidade do ‘sujeito Lee’, mas sim de mutações identitárias intencionais, provocadas pela própria artista. Ela, como uma performer, se propõe a disfarçar-se de tipos que se confundem com outros componentes do grupo social em que ela se infiltra, e essa ação nos faz pensar sobre a facilidade com que a identidade pode ser assimilada e simulada; mas, como a própria artista afirma, ela tem a sua própria maneira de ser – sua própria individualidade.
As razões que levam uma artista como Lee a trabalhar com a encenação identitária, deixando que sua própria imagem se mescle com a do ‘outro’, não tem nenhuma relação com a incapacidade do homem pré-moderno para se diferenciar do contexto cultural, isolando-se como indivíduo. Hoje, cientes da relativa autonomia do sujeito e do poder da máscara identitária, vários artistas têm se proposto a refletir sobre ‘identidade como imagem’ e, dessa reflexão, surgem os desconcertantes jogos de máscaras. E, no caso dos artistas Lee e Goldchain, as máscaras não revelam o ‘eu’, mas, ao contrário, representam o ‘outro’ – social, familiar, iconográfico ou lendário, mas, invariavelmente, o ‘outro’ – mesmo que filtrado pela mentalidade e afetividade dos artistas performers. E este outro nada mais é que o sujeito da alteridade.