Introdução
Ao longo da história da estética filosófica tem-se discutido conceitos e termos buscando definir o que é a arte. Muitas teorias foram, e ainda são construídas; seja aquela que cumpre com determinadas propriedade as condições adequadas ao campo da estética, seja aquela mais estreita que não alcança a extensão de seu próprio objeto. No entanto, o debate tem sido profícuo, pois tem gerado diferentes posicionamentos que, entre as mais diversas teorias, apresentam possibilidades transversais que instigam novas discussões. Nesse sentido é proposto um confronto entre Richard Wollheim, que inicialmente propôs em seu ensaio “Art and Its Objects” (1968), aprofundado em “Painting as an Art” (1987) em defesa de que um objeto é uma obra de arte por conter valores internos referentes à intencionalidade do artista; e Nelson Goodman, em “Languages of art” (1968), a quem compete à alegação de que todas as propriedades de uma obra devem ser interpretadas como símbolos. Assim, o presente trabalho resgatará dois pensadores que mesmo pertencendo à linha funcionalista da arte, ao divergirem em intensas posições, muito contribuíram para a história da filosofia da arte.
Antes de tudo, é importante esclarecer que Wollheim defende sua teoria com mais profundidade quando faz estudo sobre a pintura. Por ela estar inserida no universo artístico ao qual Goodman se refere, o modelo aqui mencionado será este. Portanto, neste caso entende-se que pintura é o mesmo que arte.
Breve debate entre duas teorias
A arte e o universo psicológico de Richard Wollheim
Richard Wollheim nasceu em 1923, e foi um filósofo de destaque na estética contemporânea. Foi professor de filosofia por mais de vinte anos na Universidade de Londres e professor visitante na Universidade de Berkeley, Califórnia. Também psicanalista e crítico de arte, ficou conhecido não só por seus trabalhos relacionados à psicologia freudiana, mas também por sua rejeição às correntes estruturalistas e pós-estruturalistas. Mas seu enfrentamento mais acirrado foi com as teorias institucionais da arte, isto é, aquelas que advogam que para um objeto ser considerado arte, basta que alguém, integrante de um sistema artístico, diga que é arte. Na obra “Art and Its Objects” Wollheim expõe suas ideias quanto aos problemas da filosofia analítica e inclina-se à filosofia substantiva com abordagens das filosofias da mente, da política, da ética e da ciência. Ao estender sua teoria em “Painting as an Art” Wollheim, agradece a contribuição de Ernest Gombrich em seu entendimento sistemático referentes às artes visuais e às questões referentes a uma teoria geral da natureza humana. Diz-se enraizado e comprometido com a pintura e a causa socialista e afirma que em sua experiência com a primeira, anexou a psicanálise.
Para Wollheim, a representação pictórica não se limita a questões de semelhanças e de convenções. Sua indagação refere-se à natureza da arte pictórica e busca respostas à questão: “O que faz de uma pintura uma obra de arte?”. Primeiramente, diz que o ato de pintar deve ser intencional e que junto à intenção deve estar “os desejos, pensamentos, crenças, experiências, emoções e compromissos que levam o artista a pintar como pinta”. (2002, p. 19). Durante o processo de intencionalidade o agente segue uma orientação e se dá conta dos aspectos certos e errados. A esse processo Wollheim dá o nome de “tematização”. Nessa experiência, o agente enxerga além do que está a sua frente e passa a ver em.
Sua defesa está justamente na experiência visual do espectador que ao fruir uma obra de arte deve estar sintonizado com a intenção do artista, com a experiência de ver em. “Compreender a experiência artística significa, na minha maneira de pensar, ver a obra que causa a experiência como o efeito de uma atividade intencional do artista” (WOLLHEIM, 2002, p. 8), o que significa que para Wollheim o artista, ao produzir uma obra, deve incluir na intenção seus anseios, crenças e emoções. É possível exemplificar esta declaração através da experiência de se estar em frente a uma obra abstrata. Num primeiro momento, não identificamos nada que conhecemos; porém, a seguir passamos a ver formas, cores e todos os elementos físicos desta obra, então passamos a ver possibilidades formais não identificadas anteriormente. É nesse instante que passamos a ver em. Portanto, para Wollheim a experiência é dualista, pois qualquer representação envolve dois aspectos. O primeiro se articula à experiência de ver somente a materialidade da obra, enquanto que no segundo é quando vemos em, isso é nos sintonizamos com a intenção do produtor, por meio das “aspirações do agente” (WOLLHEIM, 2002). Seu primeiro olhar é onde só objetos são vistos é o ver como. Num segundo momento alarga seu pensamento por meio da intenção para ver em.
No aspecto referido, Wollheim advoga que todo espectador deverá partir do ponto de vista do agente para que a obra seja compreendida. Para isso é necessário que o espectador possua três aptidões perceptivas: “o ver em; a percepção expressiva; e a capacidade de experimentar deleite visual” (2002, p. 45). Ora, no primeiro a experiência não se sustenta tamanha a sua subjetividade, afinal, se vejo x em y, pode haver y que não é visto através de x, o que é visto por um pode não ser visto por outro. No caso da percepção expressiva x expressa y exatamente quando x causa no receptor o y que causa no agente, também não se mantém, pois o sentimento que a obra desperta no espectador pode ser diferente daquele que o artista sentiu ao produzi-la. E no último, o deleite visual, x proporciona deleite quando x converte nossa aptidão de experimentar prazer através de y; aqui Wollheim afirma que a origem do deleite visual está nas relações sinestésicas produzidas durante a recepção de uma obra de arte, essas relações envolvem sensações promovidas por lembranças de cheiros, paladar, sons, etc. Nesse âmbito, não há nada que assegure que esta justaposição venha acontecer para todas as pessoas.
Outro aspecto apresentado por Wollheim, também estudado por Goodman é a representação. Para ele a representação, em especial na pintura, advém da capacidade que temos de ver algo diferente do que está diante de nós. É o ver em, ou seja, aquilo que vemos sugerido por formas, porém sem a necessidade de que estas formas tenham descrições detalhadas. “Tudo que a representação exige é que vejamos na superfície marcada coisas que têm relações tridimensionais.” (WOLLHEIM, 2002, p. 21). Ao delimitar a representação, Wollheim associa-a com o ver em e afirma que ela não apresenta limites muito concisos e oferece como exemplo os sinais de trânsito, explicando que além desses serem superfícies marcadas, representam algo. Já nas artes visuais, pode ou não haver representação. Ao discutir sobre a as obras abstratas, defende que elas podem ser ou não representacionais, vai depender do que podemos ver na superfície diferenciada, ou seja, em sua profundidade, pois a obra que demonstra somente uma superfície marcada configura-se como uma obra não representacional.
Ao questionar o que pode ser representado, Wollheim refaz a questão de outra maneira: “quais são as variáveis da representação?” Para ele, tudo o que pode ser visto cara a cara pode ser representado. “A representação é essencialmente do visível” (WOLLHEIM, 2002, p. 64). Todo o quadro representacional representa algo em especial. Se um quadro estiver representando um tipo de coisa em especial, estará representando tudo o que é essa coisa como algo pertencente àquele tipo. Diferencia as obras que representam coisas específicas das que são simplesmente de um tipo específico. Para isso, tudo dependerá das intenções do artista, pois ela antecipa a visão de representação. Nesse sentido, tudo o que está representado é exclusivamente o que se pode ver numa superfície marcada e não o que se pode ver frente a frente.
Na obra “Art and Its Objects”, explica que a visão da representação incide em ver x (a representação) como y (aquilo que é representado). Nesse aspecto, a defesa de Wollheim não satisfaz a problemática conceitual da arte, afinal a experiência de ver x em y não implica que exista um x que vemos. Se virmos x há um x que vemos, mas ao vermos x em y, pode não haver um x.
Wollheim usa a representação num sentido extensivo, porém em contradição usa o ver em num sentido estrito e o que interessa na representação de algo é determinado pela cultura. Tanto no que refere a este aspecto quanto ao caráter expressional, Wollheim e Goodman se aproximam, afinal a expressão para aquele é anunciada por signos, enquanto que para este é um modo de simbolização. Para Goodman os signos são estabelecidos por convenções culturais e nesse sentido chama-os de símbolos. Já Wollheim chama estes acordos culturais de signos icônicos. Nesse âmbito, o que os diferencia é apenas uma questão terminológica.
Nelson Goodman e o mundo construído por símbolos
Nelson Goodman, nascido em Massachusetts em 1906 foi certamente uma das figuras mais influentes na estética contemporânea e da filosofia analítica. Sua obra sobre estética “Languages of art” foi publicada em 1968, mesmo ano em que Richard Wollheim divulgou seu trabalho “Art and Its Objects”. Este pensador representa um ponto de viragem fundamental na abordagem analítica para questões artísticas não somente no âmbito angloamericano, mas também na filosofia universal. Sua abordagem nada ortodoxa da arte é parte de uma abordagem geral ao conhecimento e à realidade e por isso foi uma das figuras mais originais da filosofia contemporânea no século XX. Ficou conhecido principalmente por sua proposta referente ao problema da indução em “Facto, ficção e previsão” (1983); sua abordagem ao tema da metafísica em “Modos de fazer mundos” (1978) e também por sua obra “Languages of art”. Nesta última, Goodman defende a função cognitiva e simbólica da arte e analisa minuciosamente seus diversos sistemas e processos de simbolização pelos quais essa função se demonstra.
Goodman adota o nominalismo no livro “Modos de Fazer Mundos” e assume uma forma de construtivismo relativista, pois afirma que não há um mundo a espera de ser descoberto por nós. Segundo Goodman, a questão fundamental a ser discutida não é “Que tipo de conceito é a arte?” nem “O que é a arte?”, mas “Quando é arte?”. Ao redimensionar a questão da arte nesses termos Goodman desenvolve uma análise da função simbólica da arte. Diz que o labor do artista, do cientista ou do homem comum consiste em organizar e classificar as coisas, construindo versões de mundos. Para ele, as artes são modos de obtenção de conhecimento e para compreendermos uma obra de arte é necessário que compreendamos seus símbolos. Os sistemas simbólicos são construções humanas e têm aspectos convencionais, mesmo quando são produtos de hábitos. A seleção entre sistemas simbólicos deriva das nossas necessidades e interesses e "é avaliada fundamentalmente em função de como serve o propósito cognitivo: pela subtileza das suas distinções e pela justeza das suas alusões; pelo modo como apreende, explora e dá forma ao mundo; pelo modo como analisa, categoriza, ordena e organiza; pelo modo como participa na produção, manipulação, retenção e transformação do conhecimento", (GOODMAN, 2006, p. 271). Portanto, a interpretação de um símbolo, no que tange a um sistema, é uma questão de fato.
Goodman agrupa os sistemas simbólicos em uma teoria geral dos símbolos, comparando os sistemas simbólicos da arte com outros sistemas de símbolos. Um símbolo, para Goodman, envolve quatro dimensões: representação, denotação, exemplificação e expressão. A primeira compromete o recurso de algum sistema de convenções. É possível se reconhecer nas convenções, entre os indivíduos pertencentes a culturas, práticas pictóricas muito diversas entre si. Desse modo, os diversos sistemas simbólicos encontrados na pintura derivam de práticas diversas de culturas também diversas. O que diferencia os sistemas simbólicos representacionais pictóricos dos sistemas linguísticos está contido nas peculiaridades formais dos sistemas linguísticos. Ao conceber uma analogia entre a representação artitística e a descrição verbal, afirmando que ambas integram a construção e caracterização do mundo, Goodman esclarece que na representação pictórica uma imagem funciona num sistema simbólico determinado que o que é denotado depende “inteiramente das propriedades artísticas do símbolo”. (GOODMAN, 2002, p. 71).
Na visão representacional de Goodman, uma imagem que representa algo o denota; “a denotação é uma condição necessária da representação” (GOODMAN, 2006, p. 56); a representação é a representação como; a representação de uma imagem que representa algo ficcional é a imagem-de-algo (hífen do autor) como algo inteiro ou como parte de algo; assim x é representado como algo por uma imagem y se e somente se y contém uma imagem que como algo inteiro represente x e seja respectivamente uma imagem-de-algo.
As representações são imagens que funcionam semelhantemente às descrições e dão identidade a uma classe de algo, pertencendo concomitantemente a certa classe ou classes de imagens. Assim como a descrição linguística, a representação denota, pois x representa se e somente se, x denota y e existe um sistema de convenções simbólicas que fazem com que x denote y.
Quanto à expressão, Goodman (2006) diz haver uma diferença dessa com a representação, pois essa refere-se a objetos e acontecimentos, e aquela a sentimentos ou outras propriedades. Tanto a representação quanto a expressão são modos de simbolização e posicionam-se contrárias à denotação, mas emergem dela. “Pode-se dizer que um objeto que seja literal ou metaforicamente denotado por um predicado, e que refira esse predicado ou a propriedade correspondente, exemplifica esse predicado ou propriedade.” (GOODMAN, 2006, p. 80). De acordo com Goodman, há dois tipos de exemplificação: a literal e a metafórica. Como expressão formal, a exemplificação metafórica prevalece em diferentes artes e contrariamente ao que Wollheim defende, afirma que essa expressão exclui a noção de que obras de arte expressam as emoções de seu autor, pois exprimem somente as propriedades contidas nelas mesmas. Nesse sentido x exprime y, se e somente se (a) x possui y metaforicamente e (b) x exemplifica y. Assim, alerta para a confusão e interpretações equivocadas sobre a função primária de que a arte deve provocar emoções.
Considerações finais
Vimos no curso deste debate duas visões referentes ao universo artístico através do instrumental filosófico. De Wollheim é possível reafirmar sua posição em defesa do valor intrínseco da arte, bem como ratificar sua posição frente à análise psicológica da arte. A experiência induzida da qual Wollheim defende, pressupõe e direciona o espectador a suscitar seu estado mental à compreensão estética. Contudo, para compreender a obra, dependerá de estar ou não em sintonia com o estado mental do agente. Mesmo quando Wollheim rejeita as perspectivas externalistas, institucionalistas, de semelhança, semiótica ou ilusionista, ele defende que todos nós somos dotados de uma capacidade anterior de ver em e por isso captamos a intenção do artista. Sua maior defesa está centrada nos valores internalistas da obra de arte. Não obstante, não há problemas em nossa visão externalista, que possa atrapalhar nossa compreensão estética e histórica das obras de arte, pelo contrário, a contribuição está em seu alargamento.
Quanto a Goodman, pode-se dizer que em traços gerais é uma teoria com melhor poder de esclarecimento. A flexibilidade de sua abordagem autoriza a visualização de distintas formas de organização e classificação dos objetos enquanto obras de arte. Mesmo diante de divergências, seu olhar é unificador e detalhista frente à análise do universo artístico. Enquanto Wollheim deixa a desejar em sua teoria, apresentando uma visão prospectiva, fragmentária e ambígua quanto à representação, Goodman, contrariamente a qualquer outra forma passional de doutrina, deixa claro, por meio de um relativismo moderado, sua intenção de construir mundos através da compreensão simbólica contida na arte; apesar de não deixar muito claro o funcionamento simbólico alusivo a sua permanência. Entretanto, a maleabilidade da teoria goodmaniana abrange não somente questões expressivas como uma das propriedades da obra de arte, mas também refere a sua constituição física, o que possibilita a interpenetração nos vários domínios que nela habitam.
A breve comparação historiográfica aqui elaborada serviu para verificar a direção vantajosa do debate ao que tange a arte, pois assim como a história da ciência, da sociologia ou da própria historiografia, a história da filosofia estética prossegue com fendas e em constante circulação.